Despertamos na ressaca de uma noite de convívio na casa partilhada por Andrey Ignatiev e Alexey Sidnev, originários de Arkhangelsk, moradores temporários de Solovetsky, um arquipélago disperso pela Baía de Onega do Mar Branco, o mesmo mar que acolhia Bolshoi Zayatsky.
Andrey e Alexey são ambos engenheiros geólogos. Preparavam uma rede de canalização de que a ilha há muito carecia. O duo só falava russo. Fluente em inglês, Alexey Kravchenko, o cicerone de São Petersburgo que nos acompanhava e guiava, apoiava-nos como tradutor e elo relacional.
Teve a ajuda do incontornável vodka, claro está. Nem conscientes de que tínhamos que acordar às 7h30, nos ocorreu rejeitar a oferta genuína e generosa de bebida dos anfitriões. A vodka que nos serviram só podia ser de excelente qualidade.
Os gherkins de pepinos e outros vegetais, parte dos acepipes com que os russos em geral se habituaram a acompanhar e a mitigar o álcool, concederam-nos uma alvorada sem grandes dramas, o que não significa fácil, muito menos bem disposta.
Alvorada e a Navegação Rumo a Bolshoi Zayatsky
Também o novo dia amanhecia assim: cinzento como há dois dias não o víamos. Arrumamos as mochilas. Tomamos um pequeno-almoço improvisado com as mercearias que nos acompanhavam. Batemos a porta do apartamento soviético e entregamo-nos à labuta.
É com as faces apertadas pelo frio da madrugada que caminhamos em direcção ao pequeno porto local, pouco mais que um paredão reforçado que limitava uma água espelho. Quando lá chegamos, já um grupo de visitantes russos aguardava na galhofa, nas imediações do “Pechak”, um barco baptizado com o nome de um dos cabos emblemáticos do arquipélago.
Dois tripulantes que aparecem do interior dão ordem de embarque. Pouco depois, zarpamos para o Mar Branco.
O vento fraco pouco ou nada agitava a vastidão neutral que sulcávamos. Mas só a deslocação da embarcação chegava para nos enregelar os ossos e a alma de turistas ocidentais e acidentais de que os restantes passageiros se esforçavam para compreender a proveniência.
Quase uma hora após a partida, avistamos o recorte de edifícios numa das ilhas quase rasas que se sucediam. Com a aproximação do “Pechak”, percebemos que o mais alto e irregular era uma velha igreja ortodoxa de madeira instalada para lá de uma faixa litoral repleta de grandes calhaus arredondados e troncos. Logo ao lado, duas casas de tijolinho e pedra pareciam servir o templo. Estávamos em Bolshoi Zayatsky.
O Desembarque e os Primeiros Passos
O “Pechak” atraca na extremidade de um pontão de madeira. Um jovem tripulante alto, esguio, alourado e enfiado num uniforme militar camuflado concretiza a amaragem e nova ordem de soltura.
Um a um, todos percorremos o passadiço instalado sobre uma base de pedras e que ligava o pontão à entrada da igreja. À frente, segue o único passageiro em trajes destoantes, aconchegado num oleado amarelo de corpo inteiro.
Forma-se um grupo mais composto que o do embarque. O jovem do oleado assume o seu papel de guia e dá início a uma longa dissertação em russo. De início, mantemo-nos no grupo, atentos às explicações traduzidas que Alexey Kravchenko nos transmitia.
Pouco depois, a comitiva divide-se. Nós tresmalhamo-nos também de Alexey. Ficamos entregues à nossa própria descoberta sensorial de Bolshoi Zayatsky que, apesar da adjectivação (bolshoi = grande) tem apenas 1.25 km2
Uma Misteriosa Ilha Sub-Árctica
Uma vegetação multicolor forrava a ilha. Arbustos avermelhados e amarelados destacavam-se acima do verde predominante. E uma colónia desgarrada de pedras salpicavam o tapete formado por uma espécie de tojo viçoso da tundra.
Regressamos ao grupo. Tinham-se detido uma vez mais junto do guia, numa área da ilha em que a vegetação verde e rasteira formava um enredo intrincado de sulcos.
O líder volta à sua carga verbal. Nós, juntamo-nos a Alexey que, por sua vez, se mostra intrigado. De tal maneira que se limita a escutar e pouco ou nada nos transmite. “Isto é realmente muito muito bizarro!” solta por fim, atónito com o que o que o guia não conseguia explicar.
É essa a manifestação normal de quem se confronta com aqueles estranhos monumentos agora lítico-vegetais ou ouve descrições fidedignas sobre eles. Não é só a sua composição esotérica que espanta.
Também está por apurar a razão porque os labirintos se concentram numa área de apenas 400m2 do oeste de Bolshoi Zayatsky, enquanto que cerca de 850 moledos surgem sobretudo a leste. Como é, aliás, enigmática a própria dispersão de ambos os elementos megalíticos por várias ilhas do arquipélago de Solovetsky.
Em Bolshoi Zayatsky, os labirintos são catorze. No cômputo geral das ilhas Solovetsky, contam-se trinta e cinco, todos eles feitos com pedras locais. O mais pequeno tem seis metros de diâmetro. O diâmetro do maior mede vinte e cinco metros. À parte dos labirintos e dos moledos, existem ainda diversos petróglifos.
Questões que os Labirintos não Respondem: Quem? Como? Porquê
O cerne desta questão espiralada é óbvio: quem os construiu? Quando? Para quê? Em qualquer caso, as tentativas de explanação vêm de há muito e são díspares, um pouco à imagem da paragens boreais em que labirintos de pedra do mesmo tipo podem ser encontrados: Inglaterra, Islândia, Dinamarca, Suécia, Finlândia, Estónia e Rússia.
Na maior parte dos casos, foram criados em ilhas, penínsulas, estuários e fozes de rios, com formas uniespirais, biespirais, concêntricas e radiais. As suas formas envolventes são circulares ou ovais. Só em raros casos, quadradas.
A distribuição europeia destes labirintos remeteu vários dos cientistas intrigados pelo fenómeno para o perfil étnico dos povos nórdicos, no caso particular da Península da Kola e da zona em redor do Mar Branco, para os antecedentes do actual povo Sami que habita, hoje, o norte da Noruega, da Finlândia e o noroeste da Rússia.
Os Saivos e Outras Teorias Para todos os Gostos
Em 1920, o cientista russo N. Vinogradov teorizou que os labirintos eram Saivo, montanhas sagradas em que as almas dos falecidos deambulavam. No entretanto, a definição de Saivo recebeu sérios complementos. A Encyclopedia Britannica define-os como “uma das regiões Sami dos mortos, em que os saivoolmak (falecidos) viviam vidas felizes no mundo saivo sobrenatural com as suas famílias e ancestrais.
Os Sami acreditavam que os saivoolmak construíam tendas, caçavam, pescavam e viviam tal e qual tinham vivido à face da Terra. Os saivo eram considerados sagrados e fontes de poder que podiam ser usados pelos xamanes. Quando os xamanes desejavam entrar em transe, convocavam os espíritos guardiões dos saivo.”
Interpretou-se, assim, que os labirintos funcionavam com uma espécie de fronteira entre o mundo dos vivos e dos espíritos e que eram usados em rituais levados a cabo para ajudar as almas a passar de um mundo para o outro.
A Caminhada Labírintica de Vlad Abramov
Estivemos sobretudo entretidos em achar as melhores perspectivas e a documentá-los. Mas, foram já várias as pessoas que se deram ao trabalho de seguir os seus trilhos místicos. Vlad Abramov, um investigador dedicado aos labirintos de Bolshoi Zayatsky, experimentou percorrê-los.
Descreveu assim o que sentiu. “Depois de entrar num labirinto e andar repetidamente em volta do centro, deixa-se o centro pela mesma entrada. Depois de várias voltas, torna-se pouco claro quanto é que já se andou e quanto falta caminhar. Em termos subjectivos, o tempo pára mas, num relógio, o grande labirinto percorre-se em quinze minutos.
É difícil ser distraído; o trilho é estreito. Requer que se olhe para os pés. O trilho gira tanto no sentidos dos ponteiros do relógio como ao contrário. Por fim, aparece a saída e fica-se contente por a jornada ter terminado.”
O guia do peculiar oleado amarelo prosseguia as suas explicações em russo. Estas, exigiam de tal forma a concentração de Alexey, que continuávamos sem a sua transmissão do conhecimento. Para nós, como para todos os mortais, o mistério prolongava-se. A teoria dos saivo é uma. Contradita por várias outras gradualmente mais terrenas.
Calendários? Armadilhas Para Peixes ?
Alguns estudiosos defendem que os labirintos foram construídos por pescadores durante dias de tempestade, de maneira a encurralarem maus espíritos, ou uma espécie de duendes mitológicos que traziam má sorte. Neste contexto, os pescadores caminhavam até ao centro dos labirintos e atraíam os espíritos até os despistarem no mar.
O matemático ex-soviético, agora russo Yuri Yershov, chegou a uma terceira explicação, mista: que os labirintos serviam como espécie de espelhos esquemáticos da órbita da lua e da órbita aparente do sol, usados como úteis calendários.
Segundo outra postulação, de 1970, da autoria da historiadora e antropóloga Nina Nikolaevna Gurina (1909-1990), em vez de servirem para afugentarem os maus espíritos para o mar, os labirintos de Bolshoi Zayatsky não passavam de armadilhas para os peixes.
Seria essa a razão porque quase todos eles foram erguidos junto ao mar, em zonas que, entre há três a cinco milénios atrás, eram abrangidas pelo avanço e recuo das marés. De acordo com Gurina N.N., os peixes nadavam pela entrada e ficavam aprisionados nos labirintos o que facilitava a sua captura pelos nativos.
Um Mistério Para Durar
Seja qual for a sua verdadeira razão de ser, milénios depois, os labirintos de Bolshoi Zayatsky, das ilhas Solovetsky e do norte pré-Árctico da Europa em geral continuam a seduzir viajantes e cientistas ávidos por resolverem o enigma.
Vários, publicam obras e mantêm blogues dedicados ao tema, alguns repletos de esquemas gráficos e análises e fórmulas geométricas. Em qualquer dos casos, estas obras e blogues são fontes de conhecimento tão herméticas como os dédalos que abordam. E geram acesos debates.
Invertemos a direcção sobre o passadiço e voltamos às imediações da igreja. O templo antigo, foi ali erguido também como forma de afirmação cristã face às crendices pagãs que os povos ancestrais tinham disseminado em Bolshoi Zayatsky e pela região.
Foi de tal forma castigado pelo clima rigoroso destas partes da Rússia que se encontra frágil. Mesmo assim, o guia abre-nos a porta para que todos, religiosamente todos, pudéssemos espreitar o interior.
Através de uma janela logo embaciada do templo, percebemos que a tripulação do “Pechak” já recolhia as cordas que retinham o navio. Pouco depois, zarpamos de Bolshoi Zayatsky rumo à ilha Solovetsky, também ela senhora dos seus segredos.
A TAP www.flytap.com voa de Lisboa para Moscovo à 2ª, 3ª, 5ª, 6ª e sábados às 23h10, chegada às 06h20. E voa de Moscovo para Lisboa à 3ª, 4ª, 6ª, sábados e domingos, às 07h15, chegada às 11h10.