Maurício Barrera torna a repetir, debaixo do seu chapéu de palha: “Ustés no lo saben pêro… yo soy actor! … “ “Participé en La Queimada, com Marlon Brando filmado acá en Cartagena …”. Apesar de a carreira ter sido curta, deixa implícito que teria que haver um cachê para as fotos que íamos tirar.
O filme mencionado é “The Burn“, realizado, em 1969, por Gillo Pontecorvo. Marlon Brando faz de Sir William Walker, um mercenário que é chamado a Quemada – ilha das Antilhas – para fomentar uma rebelião escrava contra o domínio português e beneficiar os mercadores de açúcar britânicos.
É só um dos vários registos do longo passado literário e cinematográfico da cidade, que tem nas suas ruas, praças e edifícios coloniais cenários perfeitos para os inúmeros filmes de época e adaptações de romance que vão sendo feitos.
Uma Cidade Tropical, Colonial e Desejada pela 7ª Arte
São bons exemplos “A Missão”. E o mais recente “Amor em Tempo de Cólera” baseado no romance homónimo de Gabriel García Marquéz, um escritor e personagem que se provaram tão controversos na Colômbia e em Cartagena (onde teve uma casa) quanto Saramago o foi em Portugal.
As claquetes praticamente não param.
Benjamim Bratt, Javier Bardem, John Leguizamo e Fernanda Montenegro, entre tantos outros do elenco do filme tinham deixado Cartagena das Índias havia uns meses e já John Malkovich se passeava com a família e amigos sobre a muralha da Ciudad Vieja, estimávamos que devido a algum novo projecto cinéfilo.
Logo ao lado, Thierry Forte, informa-nos com sotaque gaulês inconfundível, sobre o seu hotel La Passion: “… estamos llenos, tenemos la equipa de “L’Homme de Chevet…” “… és una nueva película francesa con Sophie Marceau e Cristopher Lambert. Saben quién son, no ? …”.
Mesmo na história a sério, Cartagena das Índias sempre foi uma cidade apetecida.
A Fundação Há Quase Meio Milénio do Conquistador Pedro de Herédia
Em 1533, o conquistador espanhol Pedro de Herédia rumou a uma enorme baía que já em viagem anterior havia parecido “perfeita para navios” ao “colega” Rodrigo de Bastidas. No exacto local de uma aldeia Kalamarí, fundou Cartagena das Índias, baptizada segundo o porto homónimo da região de Múrcia.
A localização privilegiada da cidade, junto à quase confluência centro-americana do oceano Pacífico com o Atlântico fez com que, da sua origem ao fim do século XVII, se tornasse num dos principais entrepostos coloniais hispânicos.
Depois de uma curta jornada por terra, metais preciosos, principalmente ouro e prata oriundos de Nueva Granada, do Peru e outras paragens mais longínquas do Pacífico eram ali carregados em galeões para a viagem atlântica até aos portos espanhóis, quase sempre via Havana.
Ou, como se passou mais tarde, transformados em dólares que eram distribuídos por todo o império.
Transformou-se também num porto de comércio de escravos. É algo que salta hoje à vista nos tons de pele escuros e mulatos da maior parte dos cartageneros, na sua música, nos ritos e rituais de origem africana praticados nos palenques (povoações de fugitivos) circundantes.
Cartagena e Veracruz (México) eram, aliás, as duas únicas cidades hispânicas que podiam realizar este tipo de comércio. E terá sido a companhia portuguesa Cacheu a principal responsável pelo fornecimento de negros à Venezuela, Índias Ocidentais, Novo Reino de Granada e Virreinato de Perú.
A fama crescente de Cartagena das Índias fez dela um alvo prioritário dos piratas e corsários que patrulhavam o mar das Caraíbas.
Apenas trinta anos passados da sua fundação, sofreu uma longa série de cercos, ataques e pilhagens.
Inaugurou a saga o francês Robert Baal. Seguiu-se Martin Cote. Meses depois, foi a vez de um incêndio tomar a cidade de sobressalto. Esta última desgraça veio a inspirar a criação do primeiro batalhão de bombeiros das Américas, destacado de entre os seus menos de 2000 habitantes.
Os Piratas e Corsários que Não Conseguiam Resistir a Cartagena das Índias
Recuperada dos escombros, restabelecido o esplendor, vários piratas ingleses e franceses regressaram à carga.
Em 1568, John Hawkins pediu autorização ao governador de Cartagena para montar uma feira estrangeira na cidade com o objectivo real de a dominar a partir de dentro. Recusado o pedido. Acabou por a cercar, sem êxito.
Já Francis Drake – sobrinho de Hawkins, ambos mais tarde proclamados Sir – optou por simplificar processos: chegou com uma frota gigantesca e conquistou Cartagena em três tempos e obrigou o governador e o arcebispo da altura a pagarem 107.000 dólares espanhóis da época (avaliados em cerca de 150 milhões de euros) de resgate.
Com a casa assaltada, a coroa espanhola disponibilizou mundos e fundos para pôr trancas à porta e contratou engenheiros militares europeus proeminentes a quem encomendou a construção de novas muralhas e fortes, um projecto que viria a ser conhecido por “Situado”.
A Cidade Mais Bem Muralhada de Toda a América do Sul
O custo da obra cresceu exponencialmente. Entre 1751 e 1810, atingiu a soma inacreditável de 22 milhões de dólares espanhóis, cerca de 1,5 triliões de euros.
As defesas não aumentaram, no entanto, o suficiente para agradar a Carlos III de Espanha que, ao passar os olhos pelos gastos, gritou num seu já famoso estilo irónico: “É revoltante! Por este preço, esses castelos deviam ver-se daqui!” (referindo-se à sua corte, em Espanha).
Apesar do desagrado do monarca, Cartagena das Índias passou a ser considerada impossível de tomar as suas muralhas são, ainda hoje, as maiores do continente.
Abrigam, agora, a ciudad vieja da invasão urbanística que grassa, logo ao lado, precisamente numa das zonas em que os canhões do Castillo de San Felipe afundavam as embarcações inimigas.
A Vida Colombiana Moderna que Cercou Cartagena das Índias
Desde 1980 que os arranha-céus têm vindo a alastrar-se e fecham o horizonte por detrás de Boca Grande, diz-se nas ruas que com o dinheiro branco do narcotráfico. A concentração massiva de investimento turístico nesta zona exterior acabou por salvar a baixa histórica.
Ali, aos fins de semana, famílias numerosas e casais de namorados percorrem os adarves para a frente e para trás.
Apreciam vistas interiores e exteriores tão distintas como a Plaza de los Coches e as pequenas frotas de barcos de pesca no Mar das Caraíbas, sempre sobrevoadas por fragatas e bandos de pelicanos oportunistas.
Certas zonas mais largas das muralhas servem inclusive de rampa de lançamento para centenas de cometas (papagaios de papel) coloridos, um dos passatempos vespertinos preferidos dos cartageneros mais jovens.
Por volta dos anos quarenta, a Colômbia percebeu que a sua vieja Cartagena era uma das cidades coloniais mais bem conservadas do mundo, começou a restaurá-la e a promovê-la.
Impôs aos moradores as regras intransigentes da UNESCO que interditaram as antenas parabólicas nos telhados e submeteram os locais à tirania das novelas sul-americanas e dos incontáveis “reinados” de beleza.
A recompensa demorou mas, em 1984, tornou-se Património Mundial da Humanidade com a contribuição preciosa da Universidade de Veneza, que ajudou a recuperar a arquitectura original.
Cartagena, uma Cidade Colonial Resplandecente Mas Não Demais
Ainda longe da restauração perfeita – o que só lhe protege a alma – Cartagena tem agora um milhão de habitantes e é a quinta cidade da Colômbia. Continua a impor o peso esmagador da sua história.
As ruas, são estreitas e longas, delimitadas por edifícios seculares imponentes, com dois, três e até quatro andares de que se destacam as torres da Iglésia de Santo Domingo e da Catedral.
Cruzam-se numa grelha ampla que contem quatro bairros distintos: El Centro, San Diego, La Matuna e Getsemani, onde viviam os escravos. Homenageia ainda com placas de ruas todas as figuras do seu passado, países vizinhos, batalhas e monumentos colombianos.
Aqui e ali, estas ruas desembocam em praças inesperadas que se ajustam ao traçado e acolhem estátuas castigadas pelo sol quase equatorial: a de los Coches, a de la Aduana e, claro está, não podia faltar, a de Bolívar. Nada que se pareça com um museu, no entanto.
A Vida Genuína e Festa a Valer de Cartagena das Índias
Apesar dos turistas, vive-se muito a sério, em Cartagena. O trânsito circula livremente até ao fim da tarde quando as caleches se apoderam das ruas. Universidades, escolas de dança e de música animam as ruas e ruelas.
Aqui e ali, surgem obras e construções barulhentas e faz-se sentir o frenesim dos mil e um negócios locais, dos hotéis e boutiques elegantes aos vendedores espontâneos de llamadas telefónicas, fijo y nacional, o artesanato das Bovedas e negócios do sombrio Portal de los Dulces.
Depois do lusco-fusco, a rumba – leia-se festa – toma conta da cidade.
Seja qual for o dia da semana, os seus incontáveis restaurantes e bares seduzem com ritmos latino-americanos escaldantes que se misturam nos habituais 90% de humidade envolvente e, tantas vezes, na chuva morna.
Se o fim-de-semana estiver à porta, os cartageneros já sabem de antemão como recuperar as energias gastas.
O mais certo é darem um salto até às vizinhas Islas del Rosário, um arquipélago-refúgio situado a apenas 40 minutos de lancha, em pleno mar das Caraíbas.