São oito e meia da manhã. Faz já algum tempo que o alvor estival se impinge às montanhas que cercam Castro Laboreiro e incita os castrejos a retomarem a sua labuta.
A nós, impunha-se uma distinta missão matinal: conquistar o castro sobranceiro da vila que, depois de séculos de regência visigótica, leonesa, muçulmana, portucalense e, por fim, portuguesa, resiste à ditadura do tempo, da chuva, da neve e do vento.
Tomamos o trilho que parte do extremo sul da povoação. Entre rochedos, tojos, giestas, fetos e silvas que nos prendam com amoras, ascendemos à colina que o acolheu o velho, desgastado castelejo. Uma escadaria cavada no granito leva-nos a atravessar uma das portas ogivais e às alturas do reduto muralhado.
Um Castelo entre as origens Portuguesas e o Minho de hoje
Lá nos damos a uma disputa aguerrida entre a visão e a imaginação. A norte, no vale de pedra e telhas abaixo, estendia-se o casario cinzento-avermelhado da Castro Laboreiro de agora.
Nos nossos imaginários, desenrolavam-se as aventuras e desventuras do conde Hermenegildo (Mendo) Guterres e de um tal de Dux Vitiza que se rebelou contra Afonso III das Astúrias.
A mando do monarca, o mayordomo Dom Mendo aglutinou a nobreza, pôs cobro à revolta já com sete anos que sabotava a solidez do reino da Galiza e aprisionou o renegado. Como recompensa, decorria a primeira metade do século X, foi prendado com os domínios ainda repletos de encanto medieval que, a muito custo, deixamos de contemplar.
Anos depois, os muçulmanos vindos do norte de África tomaram-nos.
Só em 1141, Afonso Henriques os conseguiu reconquistar para o lado cristão, reforçou o antigo castelo de Mendo Guterres e transformou-o numa fortaleza chave da linha de defesa na da cada vez menos embrionária nação portuguesa.
A Vida Empreendedora de um Castrejo dos Nossos Tempos
Neste encanto, as nove da manhã tinham por nós passado. Regressamos ao sopé do castro e deixamo-nos fluir na história e nas estórias de Castro Laboreiro.
Encontramo-nos com o anfitrião e cicerone Paulo Azevedo junto ao restaurante “Miradouro do Castelo” que os seus pais construíram, após quinze anos de emigração prolífica noutro dos territórios anciãos do topo montanhoso da Ibéria: Andorra.
Paulo nasceu e viveu até aos oito anos nas terras mais fundas de Ribeiro de Baixo, em pleno desfiladeiro no sopé das Serras da Peneda e da Laboreiro, com a fronteira e a aldeia espanhola de Olelas à vista.
De um lado para o outro daquela raia, constrangedora só para os menos industriosos, como tantas outras, a sua família encontrou sustento: “O meu avô levou muitas vacas para Espanha. E de lá trouxe café e chocolate tão raros e valiosos por aqueles lados. Nessa altura, sair daqui era uma aventura.
Nós sonhávamos em ir nem que fosse só até Melgaço. Na 4ª classe lembrei-me de inventar uma dor para ter que ir lá ir ao médico, mas a brincadeira fugiu-me ao controle.
Quando dei por ela, o médico estava a mandar-me para Viana do Castelo. Na escola, já eram quase heróis os que iam a Melgaço. Sem saber bem como, eu era o único que tinha chegado a Viana do Castelo.”
Desde cedo que Paulo e a sua industriosa família aprenderam a estabelecer pontes. Com ele serpenteamos na estrada e, uma vez mais, no tempo. Até encontrarmos uma das muitas sobre os rios e riachos que sulcam os montes e vales da Peneda e de Laboreiro.
Pontes de Castro Laboreiro: de um Lado ao Outro do Tempo
A da Varziela surge-nos sobre a ribeira homónima, envolta de uma daquelas pequenas lagoas fluviais em que apetece de imediato mergulhar. Crê-se ter sido reformulada entre os séculos XII a XIV, a partir de uma base erguida muito antes pelos romanos, parte da rede de Vias que ligavam Bracara Augusta (Braga) a Astúrica Augusta (Astorga) e tantas outras.
A Rómulo, que nos conduzia e acompanhava desde a primeira das urbes, uma pausa para banhos parecia ali fazer tanto sentido como a origem mitológica do seu nome.
Na era há muito latina em que nos deslumbrávamos com os sucessivos cenários idílicos e cristalinos de Castro Laboreiro, a ponte de Varziela resistia tão arredondada e firme como havia sido esboçada.
À falta dos comitatenses e limitanei que antes cruzavam a região rica em ouro, um pequeno destacamento espanhol de praticantes de canyoning liderado pelo guia português João Barroso, desfilava pelo caudal imaculado em uniformes contemporâneos de neopreno e capacetes garridos. Invejamo-los por alguns instantes.
A Ponte Nova, e de Volta ao Miradouro do Castelo
Após o que retomamos a nossa bem mais enxuta jornada em busca de algumas vizinhas, a ponte Nova. E, nas imediações, a ponte da Cava da Velha, ou da Cavada Velha, erguida com surpreendente engenho anti-gravitacional sobre o rio Castro Laboreiro que, mais acima, a ribeira Varziela abastece, no século I, pelos romanos.
Apesar da solidez dos factos, também chamada pelo povo de Ponte Nova.
Interrompemos o périplo para um almoço revigorante no “Miradouro do Castelo” onde Paulo nos prenda com novas estórias e com deliciosas especialidades gastronómicas castrejas. À saída do restaurante, passamos os olhos pelo castelo e pelo fraguedo massivo que coroa a serrania em redor.
Reparamos que, das brenhas longínquas, se destacam vultos animais. Paulo diz-nos que são cabras. Vamos buscar a nossa objectiva mais poderosa e examinamos os espécimes. De facto, eram cabras.
Mas domésticas, não as montesas que abundam no Parque Nacional Peneda-Gerês. “Quando formos ao Planalto, é provável vermos das outras.”
A Benção Apícola da Nª Sª de (A) Numão
Subimos a encosta da Serra de Laboreiro em direcção a outras enormes fragas, território de águias-reais que vemos pairar num inesperado bando de sete ou oito. Mais abaixo na estrada de terra batida, na base de uma dessas penhas, damos com uma capela de granito.
Um enxame de abelhas silvestres instalava-se de armas e bagagens numa fenda sobre a porta fechada. A capela tinha sido erguida para celebrar um milagre. Nem um milagre salvou Paulo de uma fatídica ferrada.
Ainda que os mais ateus e incrédulos clamem que eram os próprios crentes que lá colocavam as figuras, reza a lenda que, aquando da perfuração de um penedo, terá sido encontrada uma imagem de Nª Senhora, logo levada para a Igreja Matriz de Castro Laboreiro.
A Teimosia Mística da Nª Senhora de (A) Numão
Reza ainda que de lá escapava e voltava onde havia sido achada ou às imediações, mesmo após ser reconduzida à igreja-mãe. Tal terá sido a persistência dessa Nª Senhora que mereceu o seu próprio santuário de Nª Senhora de (A) Numão.
Permanece envolto de rochedos de granito e de um púlpito peculiar acrescentado à face de um deles. E adornado com um uma flor de água asturiana, de provável raiz celta.
Uma rosácea de seis pétalas simbolizadora de pureza e de beleza associada às janas (fadas asturianas) e à restante mitologia que, vinda do norte próximo, chegou a estas paragens.
Várias missas foram ditas na capela. Algumas em tempo gélido quando, de acordo com o livro Santuário Mariano, de 1712, da autoria de Frei Agostinho de Santa Maria “…para prova de frialdade da terra, baste que o vinho congelasse no Inverno, de modo que para a Missa é necessário aquentá-lo”.
Segundo nos descreve Paulo do imaginário popular de Castro Laboreiro, o púlpito também foi usado para selar uniões em que o noivo oriundo de outras paragens se propunha a donzelas da terra.
Nesses casos, a donzela subia ao púlpito. E de lá escutava as palavras que o noivo proferia a partir do chão.
Do Barreiro ao Planalto Raiano da Serra de Laboreiro
De Anumão regressamos a zonas povoadas da encosta de Laboreiro. Passamos pela aldeia de Barreiro. E por duas anciãs em trajes negros tradicionais que lá trabalham campos geminados separados por vedações modernas que impedem que o seu gado se tresmalhe.
Num deles, dona Maria da Conceição, de 85 anos, colhe batatas para a única de várias sacas por encher. “Boa tarde, foi a senhora que já apanhou essas todas?” metemos assim conversa. “Não, acham que sim. Com a minha idade já não dá para aquilo tudo. Foi a minha filha que tratou de boa parte delas.”
Continuamos a falar e não tardamos a pedir-lhe permissão para a fotografar, o que fazemos em alternância e com bastante persistência. “Ai que estes senhores de Lisboa são mesmo malandrecos”, queixa-se Dª Maria da Conceição, sem nunca desistir da sua paciência, simpatia e bondade.
Alzira de Fátima, a sua filha entra campo a dentro à frente de um rebanho. As ovelhas não perdem tempo. Atiram-se à rama e também às batatas.
Paulo tinha-se juntado a nós e afiançava à senhora que era lá da terra. “Ah! já estou a ver!”, diz-lhe Maria da Conceição, tu és o filho da Maria dos Prazeres, do restaurante. Casasteis com uma brasileira não foi?” A anciã e a filha alternam esforços.
Ora interrogam Paulo para porem a coscuvilhice em dia, ora se viram para atrás e apedrejam as ovelhas que insistiam em devorar as batatas. Como se diz com lógica acrescida no campo, alguém tem que trabalhar. Não queríamos atrapalhar mais a lida das senhoras.
Comunicamos-lhes que íamos subir ao Planalto e despedimo-nos. “Planalto? E isso fica onde?” questiona Maria da Conceição intrigada, que nunca ouvira tratar por tal nome as terras mais planas acima da sua aldeia e de Castro Laboreiro.
O Planalto: entre as cachenas e os garranos de Castro Laboreiro
Regressamos ao jipe. Atravessamos Curral do Gonçalo que, a quase 1200 m, é a povoação mais elevada da freguesia de Castro Laboreiro e Lamas de Mouro, uma das mais altas de Portugal. Conquistamos a encosta íngreme da Serra de Laboreiro.
Damos entrada num mundo inabitado e silvestre bem destacado acima da realidade que vínhamos a viver, mas há muito percorrido pelos povos que por ali se sucederam.
Detemo-nos na pequena Ponte dos Portos que se crê ter sido erguida pelos Celtas parte da rede viária que ligava estas paragens ao iminente norte da Galiza.
Algumas centenas de metros depois, o verde dá lugar a um vasto prado multicolor de tojo em flor verde-amarelo, de feto e de urze roxa.
Nas zonas de nascente, manadas de vacas cachenas e barrosãs partilham os pastos tenros com outras de garranos semi-selvagens e ariscos. Alguns de tal forma avessos a incursões humanas que, para nos evitarem, galopam, desalmados, de crinas ao vento.
A fauna não se fica por aí. Num outro meandro do trilho, já com a Galiza à vista, deparamo-nos com uma família de javalis também eles apressados. Após alguma discussão, concordamos que, pelo menos até se sumirem nos fetos altos, os perseguia um lobo juvenil.
Prosseguimos ao largo da raia planáltica com Espanha. Espreitamos uma das antas que dotam o prolífico campo megalítico.
Conformamo-nos com a ausência de cabras montesas.
E apreciamos o ocaso de um promontório fronteiriço com vista para a armada de hélices eólicas que agora giram sobre os cumes das Serras da Peneda e Laboreiro.
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