São 2829 metros, os do vulcão Fogo.
Ascendemo-los e, logo, descemo-los, em boa parte, sobre lava áspera ou areia e cinza vulcânica em que cada dois passos para cima suscitaram um de deslizamento. A este revés, juntaram-se o factor altitude e o efeito dos raios solares, bem mais desgastantes que ao nível do mar.
Como nos acontece com demasiada frequência, a constância com que interrompemos a subida e a descida para contemplação dos cenários em redor e sua fotografia, causou um sério atraso da chegada à povoação, duas horas adicionais, sete em vez das habituais cinco, quatro empregues na subida, três na descida.
Regressámos em êxtase por tudo o que havia significado e proporcionado aquela nova conquista. Também extenuados pelo esforço que lhe dedicámos.
Foi, assim, sem surpresa que a noite que passámos na Casa Adriano, em Bangaeira, se provou aquela com o melhor sono de vários em terras cabo-verdianas.
A Dª Filomena tinha-nos preparado um almoço a tempo de uma hora normal da refeição. Em vez, almoçámo-lo já depois das três da tarde. Até ao pôr-do-sol, ainda deambulámos entre as casas soterradas e convivemos com famílias de Portela e Bangaeira.
Meia-hora após o sol se sumir a oeste da ilha, regressamos ao abrigo do casal Montrond.
Bebemos qualquer coisa quente. Às nove da noite, rendemo-nos ao cansaço.
Dormimos até às sete da manhã. Pouco depois da aurora e de pequeno-almoço devorado, retomamos a descoberta e a fotografia da Chã e da sua caldeira, devassada como se mantinha, por mais que uma erupção do caprichoso Fogo.
Por volta das onze, com o sol quase a pique, a luz confirma-se demasiado áspera para o nosso gosto. Era o estímulo solar que aguardávamos para nos pormos a caminho.
De Saída da Grande Caldeira do Vulcão Fogo
A jornada para Mosteiros passava por percorrer o trecho interno entre Bangaeira e a saída oriental da caldeira. Mesmo a um Domingo, as gentes da Chã viam-se forçadas a garantir a sua subsistência.
Nesse espaço, deparamo-nos com os derradeiros lares da Caldeira. Um deles exibia uma pequena montra de artesanato à beira do caminho. Uma mesa articulada verde, coberta de areia vulcânica, sugeria-nos sacos de café, casinhas e outras esculturas criadas com lava, palhota e outros materiais, sobretudo vegetais.
Já tínhamos comprado dezenas dessas casinhas tradicionais a moradores que encontrámos na entrada oposta da caldeira, junto à placa que dá as boas-vindas a quem entra no Parque Natural do Fogo. Limitamo-nos, assim, a contemplar o arranjo cuidado das peças e a prosseguir.
Umas centenas de metros depois, cruzamo-nos com uma senhora de vestes escuras e olhos claros, com um grande molho de feijão-pedra à cabeça.
Aos poucos, avançamos entre uma colónia de grandes eucaliptos e um mar de lava propagado por uma das dezenas de erupções do vulcão, tudo indicava ter sido a de 1951.
Despedimo-nos do Fogo, com o seu monte envolto numa bruma quente e seca que o reduzia a uma quase silhueta cónica, cada vez mais difusa contra o céu esbranquiçado.
Passagem da Chã das Caldeiras à Floresta do Monte Velho
Atingimos o limiar da bordeira. O caminho deixa o reduto lávico. Entra no Perímetro Florestal de Monte Velho.
Do nada, uma pick up azul surge de um meandro da via. Vem carregada de vigas de madeira, essenciais ao esforço de reconstrução a que se viam obrigadas as gentes da Chã das Caldeiras após a última erupção de 2014-2015.
Aquando da nossa passagem, o guarda-florestal está ausente do posto. Constrangido pelo dever de cobrar as entradas, alcança-nos numa correria. Pagamos-lhe os 200 escudos devidos. O rapaz passa-nos o bilhete respectivo e agradece, após o que volta aos afazeres que o mantinham ausente.
Prosseguimos na descida. Às tantas, uma aberta na vegetação revela-nos um cenário surreal.
Entre o plano das copas das árvores e o do céu azulão que servia de abóbada de tudo, uma grande frente de nuvens alvas desafiava o caudal em queda mas solidificado da escoada avassaladora que há muito acompanhávamos.
Por mais alva que nos parecesse, essa frente quase tangível da famosa bruma seca cabo-verdiana continha humidade.
Fazia despontar e irrigava o mato do leste-nordeste da ilha do Fogo, uma vegetação, no cimo, idosa e frondosa mas que em breve se se renderia a distintas expressões vegetais milagrosas.
Uma outra tabuleta farrusca identificava povoados e lugares alcançáveis pela ramificação de uma bifurcação: Montinho, Piorno, Campanas Cima e R. Filipe de um lado. Centro Monte Velho, Coxo, Pai António e Mosteiros Trás, do outro. Sabíamos que, ao tomarmos o segundo, estaríamos no caminho certo.
A Descida Semi-Vertiginosa Ladeada por Agaves
Não tarda, a quase estrada de terra dá lugar a um trilho apertado, íngreme e sinuoso, ladeado por centenas de agaves verdejantes e aguçados.
De tal maneira bicudos, que uma qualquer distracção e queda redundaria num sério ferimento. Íngreme como era, o trilho depressa nos levou abaixo do manto da “bruma seca”. Revelou-nos um mundo gradualmente mais fértil.
Para ambos os lados da sebe de agaves, preenchiam a falda os cafezais que dão origem ao prestigiado café do Fogo. Também bananais. E papaieiras. Aqui e ali, umas plantações perdidas no meio de outras.
Vacas leiteiras pastavam em pastos improvisados e inclinados, sulcados por uma rede de velhos muros que marcavam propriedades.
O Concelho e a a Aldeia de Mosteiros. Entre os Campos Agrícolas e o Mar
A vertente que descíamos integrava Mosteiros, um concelho-município com quase dez mil habitantes e uma população em crescimento desde, pelo menos, 1980, ao que não será alheia a fertilidade singular da região e a expressão turística que conquistou muito devido à sua posição no sopé do vulcão e à saída do trilho que procurávamos completar.
Quase todos os habitantes de Mosteiros vivem e dependem do meio rural, a principal razão porque víamos a encosta cultivada até mesmo em redutos de tal forma pendentes que rejeitavam socalcos.
Plantam-nos, mantêm-nos e colhem-nos com a ajuda de burros diminutos mas suficientemente poderosos e resistentes para carregarem os donos e grandes cargas encosta acima.
Uma vez mais a vegetação abre. Forma uma janela natural que enquadra a laje de lava vasta no sopé nordeste da encosta.
Dali, entre a folhagem, vislumbramos o casario de blocos, mal-acabado da Vila de Mosteiros, a sede do concelho homónimo, na prática, um aglomerado de pequenas povoações remediadas habitadas por cerca de quatrocentas almas.
Agricultura à parte, muitos dos seus foguenses aproveitam ainda o sustento piscatório que o Atlântico lhes garante.
Tinham passado duas horas. O sol caía para ocidente do Fogo.
Por razões que só a “bruma seca” conhecia, já só incidia sobre o povoado. Clareava o casario e fazia-o contrastar com a negrura desolada em que assentava.
O Prenúncio Musical de Pai António. E do Fim do Trilho.
Com os joelhos em intenso queixume, ao som de um inesperado e festivo batuque, fazemo-nos a uma escadaria improvisada. Do seu início, não conseguíamos ver o que estava mais abaixo mas suspeitávamos que sinalizava o término do percurso.
Por fim, a escadaria destaca-nos das árvores. Os primeiros degraus exibem-nos um castro longínquo de casas de que se projectavam enormes papaieiras. Os seguintes, desvendam-nos uma calçada de Pai António fundeira e a cena de vida cabo-verdiana inconfundível que lá tinha lugar.
A música provinha de um pequeno bar de grogue com telhado de palhota e em que uma mulher da povoação permanecia à sombra e ao balcão. Ao lado, no intervalo de partidas aguerridas de matraquilhos, dois conterrâneos discutiam a alta voz, tão à vontade que nem o batuko lhes abafava os argumentos.
À sua frente, Edilson, o nosso condutor de táxi “oficial” na ilha do Fogo, desesperava pelo atraso que levávamos. “Ah, aí estão vocês, até que enfim.
Estava a ver que se tinham perdido!” saúda-nos, assim, com a confiança que mantínhamos de parte a parte, conquistada em conversas bem-dispostas de outros trajectos.
Completávamos, ali, 11km de árdua descida. A água que levávamos não nos tinha matado por completo a sede. De acordo, sentamo-nos no muro a beber uma cerveja e um sumo, à conversa com os mosteirenses que, sem o esperarem, nos acolhiam. Seguiu-se um arrastado retorno à capital São Filipe.
E mais alguns dias no caloroso Fogo de Cabo Verde.