Pouco tempo após desembarcarmos do ferry provindo de Road Town, capital das vizinhas Ilhas Virgens Britânicas, já sucediam os sintomas da bipolaridade de Charlotte Amalie.
Planeamos ascender de teleférico ao cimo de Paradise Point. Só que como, para variar, não havia nenhum navio cruzeiro atracado, nem norte-americanos de visita à cidade, o teleférico está inoperacional.
Cumprida uma hora de caminhada, atingimos o topo, derreados, mas prendados com uma das grandes vistas das Caraíbas.
Aos nossos pés, quase encerrada pelo recorte da ilha de St. Thomas, estendia-se a Long Bay de Charlotte Amalie. Apesar da distância, conseguíamos destrinçar as zonas que compunham a capital.
Mais próximo, no sopé da encosta que tínhamos ascendido, a doca dos cruzeiros que continuava para a marina dos iates.
Logo, o Frederiksberg Point. Esta reentrância separava a marina da Baixa que, por sua vez, víamos estendida no fundo da vertente oposta, a da Crown Mountain (474m), a elevação suprema das Ilhas Virgens Americanas.
Contemplamos o panorama por algum tempo. Logo, descemos para a estrada que contornava a baía, apontados ao âmago histórico da cidade. Com a sensação de que estávamos a desperdiçar tempo, mandamos parar um dos táxis comunais que circulam em redor, espécies de carrinhas com dezenas de assentos cobertos atrás da cabine.
Só seguiam passageiros nativos, negros ou mulatos. A passagem custava 1 dólar. No dia seguinte, já com um cruzeiro atracado ao largo, tentamos apanhar um outro em que quase só seguiam norte-americanos recém-desembarcados. O bilhete tinha aumentado para 4 dólares.
O Forte Christian na Génese Colonial Dano-Norueguesa de Charlotte Amalie
Saímos junto à fortaleza vermelha e amarela, destacada acima da marginal Waterfront Highway.
O forte Christian, assim se denominava, resiste à beira do Mar das Caraíbas desde os primórdios de Charlotte Amalie.
Lá nos acolhe Levi, um guia residente, disposto a fazer de cicerone por uma contribuição. Levi conduz-nos de secção em secção.
Descreve-nos a história colonial da estrutura, da cidade e da Índias Ocidentais em redor, por inesperado que parecesse, Dano-Norueguesas.
Durante quase três séculos, o forte Christian sustentou a defesa da capital do único arquipélago e território controlado pelo Reino da Dinamarca nestas paragens caribenhas. Compunha-o o trio de ilhas de St. Thomas, aquela mesma, St. John.
E mais a sul, St. Croix.
Como nos relembra Levi, os dinamarqueses, chegaram na senda dos espanhóis, ingleses, franceses e holandeses que, pouco depois, de Colombo ter desvendado a América à Europa, a passaram a disputar, com predomínio inicial dos espanhóis.
De início, os nórdicos confrontaram-se com indígenas Taino, Aruaques, Caribes e Ciboneis.
Pouco depois, também com os britânicos e holandeses que se debatiam no contexto da 2ª Guerra Anglo-Holandesa e visavam a povoação dinamarquesa para se abastecerem de víveres, armas e outros.
Charlotte Amalie viu-se cobiçada.
Um Nicho Colonial das Nações Nórdicas, numas Índias Ocidentais Disputadas
De tal maneira que, no término do século XVII, as suas autoridades tiveram que erguer torres de vigia fortificadas, em elevações com vista sobre o Mar das Caraíbas envolvente.
Mesmo frequentemente atacados, a abundância de Pequenas e Grandes Antilhas na região e a dedicação das potencias coloniais rivais a outras paragens, permitiu que os dinamarqueses mantivessem o seu nicho.
Puderam, assim, desenvolver a produção lucrativa de cana-de-açúcar, desde cedo, sustentada por escravos abduzidos em África.
Não tarda, uma única via que sulcava o sopé da Crown Mountain unia cerca de 50 plantações esclavagistas.
Contadas menos de duas décadas, os escravos adquiridos para essas plantações já eram mais que os colonos da ilha.
O forte Christian que explorávamos foi erguido apenas seis anos após os esforços iniciais dos dinamarqueses se estabelecerem em St. Thomas, estimados de 1666.
A presença dos nórdicos intensificou-se.
Taphus: da Povoação Cervejeira à Cidade de Charlotte Amalie
Terá justificado, inclusive, a fixação de diversos estabelecimentos cervejeiros, numa abundância que inspirou o baptismo (pelo menos informal) da povoação como Taphus, um termo popular dinamarquês traduzível como “casa de cerveja”.
Esse baptismo durou o que durou.
A coroa dano-norueguesa reconheceu que Taphos destoava da importância financeira e estratégica da colónia. Alterou-o para o actual Charlotte Amalie, nome da esposa do rei dinamarquês de então, Christian V.
Como constatamos enquanto caminhamos pelo âmago colonial da capital, apesar dos séculos passados, o legado dano-dinamarquês permanece intacto.
Detectamo-lo na colecção de edifícios por que passamos: mansões, palacetes, igrejas, cemitérios e outros e nas vias aglomeradas sob o termo “gade”, significante de rua.
Em boa parte, esses edifícios resultaram, até 1830, em emulações caribenhas da arquitectura georgiana britânica, a predominante nas Antilhas em redor.
Combinam elementos militares dinamarqueses e ainda alguns góticos.
Durante um largo período, o responsável pelo desenvolvimento urbanístico da capital foi o seu próprio governador, o dinamarquês Jorgen Iversen (1638-1683).
À imagem do teleférico e da vida da cidade em geral, quando os cruzeiros ancoram, as portas dos edifícios históricos abrem-se.
Sem Sinal de Cruzeiros, a Vida mais Genuína da Cidade
Revelam dezenas de lojas recheadas de tudo um pouco que atraia os passageiros endinheirados.
Assim que os navios hiperbólicos zarpam, as lojas voltam a encerrar.
Frequentam as ruas uns poucos moradores.
Em frente a uma tal de roulotte “Rudy’s” que vende gelo picado adocicado, convivemos com Betty, uma nativa que saboreia um desses refrescos de groselha.
“Ah, não chegaram num cruzeiro?
Olhem, devem ser dos poucos que cá param assim”.
Adiante, chama-nos a atenção uma grande touca beije projectada para trás da nuca de uma jovem transeunte.
Perguntamos se a podemos fotografar.
Conversa puxa conversa, confirma-nos que aquele toucado era uma forma clássica caribenha de manter protegidas e arranjadas as longas tranças, rastas e afro-penteados afins.
O Panorama do Centro Colonial
“Se vêm de Portugal, deviam subir e espreitar a sinagoga!” sugere-nos, no meio de explicações curiosas para os distintos usos da moda.
Charlotte Amalie assenta em três elevações de origem vulcânica, comedidas, a Frenchman Hill, a Berg Hill e a Government Hill, também conhecida como Mizzentop.
Do cimo desta última, apreciamos as suas mais exuberantes mansões, ocupadas pela administração da cidade e do território.
Quinhentos metros para ocidente e para baixo, com passagem pela Commandant Gade e um desvio propositado para a escadaria dos 99 Steps (em que contamos 102), damos com a sinagoga da Congregação Hebraica de St. Thomas.
A Sinagoga Elegante de Charlotte Amalie
À hora que lá desembocamos, não vemos vivalma. Como o templo está aberto, entramos.
Maravilha-nos a areia coralífera que lhe serve de piso e nos seduz, de imediato, a descalçar-nos.
Tanto os bancos dos crentes como o púlpito assentam nesses grãos infinitos que a luz solar que se enfia pela porta faz resplandecer.
Aquela sinagoga é apenas uma de cinco no Mundo com piso de areia.
Não por uma questão de decoração tropical, mas de acordo com o velho costume judaico com origem na Ibéria de, com a areia, abafar o ruído, ou zumbido das orações proibidas pela Inquisição.
Acima, ao sabor de uma leve corrente de ar, oscilam ventoinhas de tecto e um grande candelabro com velas há muito acesas para o Shabat.
A pouca distância, competem na fé várias igrejas, com destaque para a luterana evangélica de Frederick.
E as Origens Ibéricas dos Judeus de Saint Thomas
Se os fiéis e missionários dinamarqueses chegaram antes, os judeus pouco tardaram.
Os primeiros desembarcaram a partir do meio do século XVII.
Eram descendentes das comunidades sefarditas que, entre 1492 e 1496, convencidos pelas respectivas Inquisições, os monarcas de Espanha e Portugal, obrigaram a fugir da Ibéria para o norte da Europa.
O Poder Comercial duma Cidade Empreendedora
No fim do século XVIII, também graças ao empreendedorismo dos judeus, Charlotte Amalie tinha-se tornado a segunda maior cidade dano-norueguesa, apenas menor que Copenhaga.
Com o advento dos navios a vapor, a venda providencial de carvão intensificou o seu desenvolvimento. Isto, até que, após a viragem de século, três enormes incêndios a devastaram.
Cidades caribenhas vizinhas usurparam o papel abastecedor de Charlotte Amalie. Quando os poderosos britânicos proibiram o esclavagismo, muitos donos de plantações debandaram e entregaram St. Thomas, St. John e St. Croix, de vez, ao declínio.
Por essa altura, os jovens E.U.A. tinham-se tornado poderosos.
E a Aquisição dos Estados Unidos à Dinamarca
No contexto da 1ª Guerra Mundial, receosos que os alemães tomassem ou adquirissem o arquipélago, anteciparam-se.
Em 1917, compraram-no por 25 milhões de dólares.
O território serviu de base naval da Marinha Americana, até 1930.
Três décadas depois, o embargo a Cuba, espécie de “pátio turístico” dos Estados Unidos, fez com muitas agências de viagens promovessem as Ilhas Virgens quentes, tropicais e sedutoras a leste de Cuba.
Daí para cá, o turismo de cruzeiros desenvolveu-se sem retorno nas Caraíbas.
Charlotte Amalie soube reposicionar-se. Acolhe, todos os anos, milhões de visitantes de toca e foge.
Sentíamo-nos privilegiados de a poder descobrir, ao nosso ritmo, com bem mais tempo.
Foi o que continuámos a fazer.