A antiga Casa Trias que nos acolhe é uma das haciendas mais antigas da cidade.
Não só. A sua fachada integra o limite sudeste da Plaza de Armas, o âmago de Chihuahua.
Abençoa-a, como é suposto em qualquer urbe de génese colonial hispânica, a catedral metropolitana, um templo católico majestoso e, durante séculos a fio, sobranceiro, há algumas décadas suplantado pelo edifício da Unidade de Informação do Congresso.
Malgrado o desaforo arquitectónico, a catedral preserva intacta a sua função nas vidas dos chihuahuaenses. Os sinos das duas torres gémeas marcam o tempo pelo tempo fora. Com tal afinco que, ali ao lado, nos servem de despertadores indesejados.
Bem cedo, mas com algum lapso, devido às elevações a leste, a luz solar morna incide no topo da catedral e recarrega a cidade para o dia que se segue.
As Emblemáticas Botas de Piton e os Engraxadores que as Cuidam
Aos poucos, os engraxadores ocupam os seus postos em redor do jardim no coração da praça, preparados para renovarem o brilho das botas de piton com que, a par dos chapéus, dos jeans e das camisas, boa parte dos homens da região compõem os visuais de vaqueros viris tradicionais do norte mexicano.
Chihuahua é, aliás, um dos principais polos fornecedores dessa moda regional. Mal deixamos a Plaza de Armas para as ruas comerciais em redor, vemos lojas repletas dessas botas e chapéus, expostos e promovidos como os itens idolatrados que se tornaram.
As botas de piton em particular, são vendidas e usadas numa panóplia de materiais meritórios de um vigoroso ¡Ay Chihuahua.
Encontramo-las em couro, pele de avestruz, crocodilo, cobra, papa-formigas, tatu, enguia e mantas, entre outros.
Consoante os materiais, a arte empregue e, claro está, a notoriedade e solidez da marca, os preços podem ir de umas dezenas a mais de três mil euros o par.
Quanto mais conceituados os modelos, mais os engraxadores neles se empenham.
Às vezes vinte minutos a fio, o suficiente para os donos do calçado se recostarem, lerem meio jornal e debaterem os temas do dia, os escândalos políticos, os confrontos entre cartéis e as repercussões da outra, mais recente e viral, pandemia.
Chihuahua: uma Cidade cada Vez Mais Mural do México
Prosseguimos pela Calle Guadalupe Victoria, para fora da Plaza de Armas, na direcção da Hidalgo, outro “quadrado” em redor de estátua e ajardinado, justificado pela presença do Palácio de Gobierno.
Dedicamos um derradeiro olhar às torres da Catedral Metropolitana. Quando o fazemos, descortinamos o primeiro chihuahua de Chihuahua.
Em vez do verdadeiro cachorrito portátil e de latir estridente que conquistou o mundo, uma sua pintura modernista, quase psicadélica, a preencher toda uma fachada de um prédio amarelado.
Ao mesmo tempo, por baixo, passa um dos trenzitos infantis que nos habituámos a ver nas povoações turísticas do norte mexicano.
Dias mais tarde, haveríamos de embarcar no El CHEPE, esse sim, um comboio a sério, repleto de história, meritório de uma das ferrovias mais aventureiras à face da Terra.
De ambos os lados da rua, sucedem-se lojas de tudo um pouco. A espaços, outras ilustrações díspares contribuem para a ambição dos governantes de fazerem de Chihuahua uma ciudad mural que se destaque de tantas outras do México.
A próxima por que passamos, à sombra de uma parede sob uma laje de betão, tem o título musical de “Qué Bonito es Chihuahua”. Promove alguns dos atractivos do estado.
Povoações mineiras, uma queda d’água que interpretamos como a de Basaseachi, situada nas Barrancas del Cobre, a segunda mais alta do México, com 246 metros.
No centro, um indígena da etnia predominante das serranias e barrancos do estado, a Rarámuri, toca violino, como que a musicar a obra d’arte.
Por mero acaso, quando a examinamos, duas amigas da mesma etnia aparecem do fundo da rua. Detêm-se, ali, a conversar no seu dialecto, cada qual num vestido folhado, garrido, longo, subido quase até à base do queixo.
Homenagem a Alfaro Siqueiros e aos Muralistas Pioneiros
Prosseguimos por sentidos inversos.
Mais para o meio da rua, as pinturas murais repetem-se: o “Muralista en Llamas” de Lizeth Garcia Portillo, exibe um pintor aprisionado. Trata-se de David Alfaro Siqueiros, pioneiro do muralismo mexicano, a par de Diego de Rivera e de José Clemente Orozco.
Ao longo da sua vida e obra, David Siqueiros provou-se um anti-imperialista e anti-fascista, prodigioso, mas fogoso. Foi acusado de tentativa de assassínio de Leon Trotsky, pelo que se viu aprisionado e exilado no Chile.
Após o regresso ao México, foi condenado a mais alguns anos de prisão, afinal de contas, o motivo principal e dramático que nos tinha chamado a atenção, sobre o branco-sujo da parede.
Por fim, a Calle Guadalupe Victoria deixa-nos com o Palácio del Gobierno em frente.
Quando nele entramos, damos com um grande palacete com três pisos avarandados, uma imensidão de arcos a abrirem vista para um pátio central ladrilhado em cinzento.
O Museu Histórico-Político do Palácio del Gobierno
Em redor do piso térreo, desdobra-se todo um museu de história mexicana e de Chihuahua que conta, até, com um Altar de la Patria dedicado àquele que é considerado seu pai, o padre Miguel Hidalgo.
Também por aqui abundam os murais, nem mais nem menos de 360m2 de pinturas da autoria de Aarón Piña Mora. Hidalgo surge noutra delas, no centro de um mural que eternizou o momento do seu fuzilamento, às mãos de um pelotão de soldados espanhóis, a 30 de Julho de 1811, precisamente em Chihuahua.
Deixamos o Palácio do Gobierno pela fachada oposta à da entrada, directos para a Calle Libertad que, ali, o separa de um outro edifício imponente, em tempos, o calabouço pré-fuzilamento de Miguel Hidalgo.
Hoje, o edifício acolhe a Casa Chihuahua, um museu dedicado a exposições itinerantes.
Como a vemos, à entrada, a escultura de bronze do gorila “Alter Ego”, de três metros e uma tonelada, parece invejar os sorvetes devorados por um jovem casal e seus dois filhos, sentados num muro em frente.
Continuamos em modo hiperbólico, na direcção da Plaza de la Grandeza e da sua cara-metade, a Plaza del Angel, de que se destaca contra o céu azulão, um anjo dourado.
A Última Morada de Francisco “Pancho” Villa
Metemo-nos na Av. V. Carranza. Ziguezagueamos em ângulos rectos pela grelha geométrica da cidade em busca da Casa de Pancho Villa, o derradeiro lar habitado pelo revolucionário mexicano, com aquela que foi considerada a sua esposa número vinte e três.
A contagem provou-se, de tal maneira creditada, que o actual museu faz questão de exibir uma lista das suas amadas.
Desafogada, a vivenda é, hoje, pertença do exército mexicano.
Tem soldados de vigia nas tropelias dos visitantes em redor dos inúmeros pertences de Villa, sobretudo, do carro em que seguia quando foi emboscado a mando do presidente mexicano de 1924-28, Elias Calles.
O calhambeque continua estacionado para história num pátio da mansão, esburacado pelas muitas balas disparadas sobre Villa quando este seguia para uma festa familiar a ter lugar na povoação de Parral.
É em festa que achamos a Plaza de Armas quando a ela regressamos, mais para o fim da tarde.
O cair do lusco-fusco reforça os contornos de Antonio de Deza y Ulloa, o fundador de Real de Minas de San Francisco de Cuéllar, a cidade que daria origem a Chihuahua
A estátua em que o governante parece indicar o lugar em que mandou erguer o povoado, surge centrada entre o coreto no cerne do jardim e a Catedral Metropolitana, contra o rendilhado e minucioso da sua fachada.
Do lado oposto do jardim, centenas de moradores e visitantes partilham uma celebração pagã do dia e da vida que contrasta com a solenidade eclesiástica no interior da igreja.
Ao Ritmo dos Bailes Pachucos de Chihuahua
Lidera o movimento o duo de pachucos Mi Bárrio, activo e motivado como nunca, passados vários meses em que se viram barrados de animar a praça devido à pandemia.
Sergio Boy, gera e inspira passos de mambo e de outros ritmos, em trajes garridos e largueirões de moda zoot.
O Mi Bárrio e os pachucos em geral, são sobreviventes dos herdeiros mexicanos – sobretudo de El Paso – da subcultura de gangs que proliferou nos Estados Unidos durante a década de 30. Sergio Boy convida espectadores a participarem.
A espaços, interrompe as danças elegantes para produzir mais uma inusitada selfie, com uma pequena SLR apontada para si próprio. Enquanto isso, dançarinos de outros colectivos inauguram bailes paralelos.
A Doçura Incontrolável de Chihuahua
Circulamos em redor, entusiasmados pela inesperada exuberância popular da cidade. Passamos por bancas de elotes (espigas de milho cozinhadas) de churros, de tacos e outros petiscos.
Uma delas surge cercada por frutas cristalizadas de todas as cores e feitios, resplandecentes a dobrar devido à iluminação incandescente que emanava do interior. Quando nos aproximamos, percebemos que um enorme enxame de abelhas, atraídas pela doçura e inebriadas pela luz, se havia apoderado da banca, aparentemente deserta.
Ao perceber a nossa presença, Javier, o dono, interpela-nos. Educado, esforça-se por vender. Quando lhe perguntamos que fenómeno apícola era aquele, encolhe os ombros e desata-se a rir.
“Qué quieren que haga? Soy su esclavo. Vienen y ván cuando quieren. Aún solo me picaron una vez. Aqui!” e mostra-nos um inchaço na cabeça.
Uma família aparece, determinada a fazer a vontade aos miúdos. Pressionado a ganhar o dia, Javier reentra na banca. Para nosso espanto, serve-lhes os doces e passa-lhes o troco no meio de centenas de abelhas numa órbita tresloucada. Volta ao exterior incólume.
Ali, como na sua velha Plaza de Armas, Chihuahua rende-se à noite e aos passos de felicidade dos chihuahuaenses.