Ao darmos entrada na Waterfront de Charlotte Amalie partilhamos um inevitável espanto.
O ferry que temos pela frente e em que estamos prestes a embarcar parece saído de uma qualquer ficção científica de terceira categoria.
Denomina-se “QE IV”. A sua cabine centrada, repleta de janelas redondas de aquário, assenta em quatro flutuadores independentes, os frontais, elevados face aos posteriores, em jeito de grandes socas náuticas.
Olhamos para a embarcação e um para o outro com vontade de nos beliscarmos. Vivemos essa incredulidade quando os restantes passageiros começam a embarcar e nos trazem à realidade.
Estávamos no fim de Outubro, em plena época dos furacões das Antilhas e Caraíbas. Como se não bastasse, a Saint Croix que tínhamos como destino era a única das Ilhas Virgens Americanas isolada das restantes, 70 km para sul do Mar das Caraíbas.
A Navegação Suavizada do Excêntrico Ferry “QE IV”
Eram motivos para ficarmos de pé atrás e até de nos arrependermos. Em vez, subimos a bordo, instalamo-nos e esperamos para ver.
Contados vinte minutos, o “QE IV” deixa a enseada protegida de Charlotte Amalie e a sombra marinha da ilha de Saint Thomas. Tal como receávamos, o barco passou a enfrentar um mar cavado. De tal maneira, que, a espaços, pelas janelas de aquário, dele tínhamos uma perspectiva quase subaquática.
Onda após onda, percebemos melhor a excentricidade da embarcação. O “QE IV” subia. O “QE IV” descia. Pouco ou nada oscilava para os lados ou sofria embates das vagas. Navegava com uma elegância e suavidade que pensávamos impossível.
Muitas ondas, duas horas depois, atracamos. São cinco da tarde.
O Acolhimento Providencial da Família Shelley
Na doca da Baía de Gallows, esperam-nos os anfitriões Stewart e Sarah Shelley, um casal de origem mórmon que deixou o Utah e, mais tarde os Estados Unidos continentais, dispostos a disseminarem a sua fé e a viverem uma aventura caribenha, com tudo o que daí viesse, incluindo alguns dos piores tufões porque as Ilhas Virgens Americanas passaram.
Os Shelleys conduzem-nos à sua vivenda semi-perdida no meio de Saint Croix. Lá nos apresentam Miles e Gabe, os seus miúdos, e oferecem-nos um jantar em comunhão, em que os conhecemos e começamos a admirar a todos, pelas mais variadas razões.
Na manhã seguinte, Stewart tinha um serviço religioso matinal para conduzir. Dá-nos boleia até ao âmago histórico de Christiansted.
Às 8h30, já estamos à descoberta da capital secular de Saint Croix.
Na sua génese, Christiansted desenvolveu-se colonial, esclavagista e tenebrosa, como quase todas as Índias Ocidentais em redor.
Christiansted: a Capital Bela e Amarela de Saint Croix
Nesse dia, àquela hora, exibia-se solarenga, bela e amarela, a cor actual do Forte Christiansvaern e, por alguma obsessão de harmonia urbana, de vários outros edifícios históricos da cidade.
Quando o vimos pela primeira vez das janelas do “QE IV”, o amarelo-torrado da sua estrutura contrastava com o azul denso do Mar das Caraíbas a que quase se sobrepunha.
À segunda, encontramo-lo além do mar de relva aparada que atapeta boa parte do Christiansted National Historic Site.
Dela se projectam palmeiras e outras árvores tropicais com copas massivas, pousos de umas poucas iguanas esquivas.
Enquanto o calcorreamos percebemos que escasseavam os visitantes.
Os do forte e, dava-nos cada vez mais a sensação, os de Christiansted e até de Saint Croix em geral.
Os 70 km para sul da ilha, desviavam-na da rota dos cruzeiros que navegam as Antilhas, que vimos ancorados ao largo de Charlotte Amalie – a capital da ilha de Saint Thomas e das Ilhas Virgens Americanas – e que, por norma, percorrem o arquipélago de cima a baixo.
Hoje, a realidade destas paragens é de uma tranquilidade e peculiaridade afro-caribenha que deslumbra quem tem o privilégio de as visitar.
Só os forasteiros mais interessados no passado se inteiram de forma condigna das atrocidades por detrás dos monumentos e da civilização com que se deparam.
No caso das Ilhas Virgens Americanas, a história oculta um protagonista improvável.
A Inusitada Presença da Dinamarca nas Caraíbas-Antilhas
Das viagens de Cristóvão Colombo em diante (entre 1492 e 1504), as potências coloniais habituais das Caraíbas foram a Espanha, a Holanda, a França e a Inglaterra.
Menos conhecida é a acção do reino da Dinamarca-Noruega e, mais tarde, do da Dinamarca, tanto nestas partes das Américas como na Costa do Ouro africana.
Decorria a segunda metade do século XVII quando o reino da Dinamarca-Noruega logrou coordenar ambas as expansões.
Por essa altura, uma fatia significativa do comércio de escravos provinha da Costa do Ouro de África em que, a partir de 1452, com a fundação da fortaleza de São Jorge da Mina, os portugueses abriram caminho às futuras rivais coloniais.
O Comércio Triangulado: Dinamarca – Costa do Ouro – Índias Ocidentais Dinamarquesas
Ao mesmo tempo que se apoderavam de parte das actuais Ilhas Virgens Americanas, os dinamarqueses-noruegueses apreenderam aos holandeses o Castelo de Osu, (mais tarde Castelo de Christianborg) e o de Carlsborg, hoje, em Acra, a capital do Gana.
Entre 1680 e 1682, o primeiro ainda passou para a posse dos portugueses. Numa fase inicial, as duas fortalezas asseguraram aos dinamarqueses-noruegueses o sucesso das transacções sobretudo de ouro e marfim.
Quando a concorrência se revelou demasiada e estas comodidades escassearam, o reino escandinavo aderiu ao comércio de escravos. Em simultâneo, nas Américas, consolidou as suas próprias Índias Ocidentais.
Durante quase 250 anos – de 1672 a 1917 – os dinamarqueses encheram-nas de plantações de algodão, de café e, sobretudo, de cana-de-açúcar.
O Trabalho Forçado nas Plantações Caribenhas
A mão-de-obra, foi assegurada por outras Companhias dinamarquesas e nórdicas, dedicadas ao fornecimento de escravos, mas não só, que realizaram para cima de sessenta expedições de comércio triangular.
Estima-se que, parte dos “bens” transacionados, os dinamarqueses-noruegueses e a independentizada Dinamarca tenham transportado de África para as Caraíbas, em redor de 120.000 mil escravos.
Em grandes plantações como as de La Grange e Bethelem de Saint Croix, ilha mais plana que as restantes, devido às condições execráveis de sobrevivência e às doenças tropicais, morreram sempre mais escravos do que nasceram.
Assim aconteceu até que, em 1848, confrontados com uma revolta contra um recém-deliberado abolicionismo faseado, os colonos dinamarqueses se viram obrigados a conceder aos escravos a liberdade.
De imediato, as plantações e o comércio, até então, altamente rentáveis, tornaram-se inviáveis. Como insustentável se provou a manutenção das longínquas Índias Ocidentais Dinamarquesas.
Os dinamarqueses partiram. Os ex-escravos ficaram. À imagem do sucedido nas restantes Índias Ocidentais, os seus descendentes constituem a maioria dos habitantes de cada ilha.
Quando encerramos a deambulação pelo forte e percorremos a Kirke Gade (Church Street), depressa testemunhamos uma expressão religiosa do que é, hoje, a sua vida.
Missa em Ritmo Gospel, na Velha Igreja Luterana de Christiansted
De entre as sucessivas moradias de madeira colorida da rua, destacava-se a torre da antiga Igreja Luterana da cidade, o actual Steeple Building.
Como a víamos do exterior da arcada que antes garantia sombra aos enriquecidos proprietários, uma bandeira Stars ‘n Stripes ondulava, invertida pelo vento morno.
Fotografávamos o seu frenesim azul-vermelho quando jovens afro-acólitas trajadas de vestidos e albas brancas e faixas vermelhas se agruparam à entrada.
Cruzamos a rua. Metemos conversa.
Apuramos que estava prestes a ter início uma missa.
Na sua génese, a igreja pode ter sido dinamarquesa e luterana. A cerimónia desenrolar-se-ia ao ritmo Baptista-Pentecostal característico do sul dos Estados Unidos.
Subimos ao coro. Admiramos a veemência do pastor e os Gospels contagiantes entoados pelos fiéis que complementavam o seu, já de si, semi-cantado, sermão.
De regresso à Church Street e à Christiansted em volta, cruzamo-nos com famílias estadounidenses.
Umas com casas veraneantes em Saint Croix, outras, como os Shelleys, residentes em pleno, apostados numa existência mais simples, suave ou aventureira que a proporcionada pelos E.U.A. continentais.
Passado mais de um século, a capital de Saint Croix mantém o nome dinamarquês e o colapso caribenho da Dinamarca continua a favorecer os americanos.
O Abandono da Dinamarca e a Aquisição Oportunista dos Estados Unidos
Em 1916, o resultado de um referendo nacional ditou que 64.2% dos dinamarqueses eram a favor da venda das suas Índias Ocidentais.
Os Estados Unidos concordaram em pagar 25 milhões de dólares, em ouro. A transferência das ilhas oficializou-se em 1917. Dez anos depois, os nativos das recém-renomeadas Virgin Islands conquistaram a cidadania dos E.U.A.
Saint Croix faz parte do Território Organizado e Não-Incorporado das U.S.Virgin Islands.
Enquanto caminhamos pela boardwalk da cidade, as distintas eras de Christiansted continuam a insinuar-se.
Uma velha torre de moinho de cana-de-açúcar que resistiu à destruição dos furacões Irma e Maria, remete para os tempos dinamarqueses da escravatura.
Logo ao lado, no The Mill Boardwalk Bar e no Shupe’s Boardwalk, americanos em modo tropical, emborcam cervejas a ver futebol-americano na TV.
Aqui e ali, distraídos pelos mergulhos dos pelicanos a rasar as esplanadas dos estabelecimentos.