Como a vemos e vivemos, a Victoria & Alfred Waterfront revela-se uma espécie de legado modernizado da sua história colonial.
Uma moldura amarela que identifica a Montanha da Mesa coberta de névoa e uns poucos prédios do CBD (Central Business District), enquadra também uma doca, estaleiro e marina estendidos por um braço de mar adentro, onde o Atlântico mais se aproxima da Table Mountain, no espaço do porto mais antigo da África do Sul.
Uns poucos trabalhadores tratam da reparação e manutenção de embarcações batidas e desgastadas pelas águas bravas ao largo.
Dotam esta zona litoral, restaurantes, bares, hotéis, cinemas, casas de recordações e bugigangas, outras, que asseguram distintos tipos de animação.
Somos dois dos mais de vinte milhões de forasteiros que, em anos turísticos normais, percorrem a V&A Waterfront.
No dia-a-dia, exploram os seus recantos e divertem-se ao mesmo tempo que incontáveis barcos de pesca e cargueiros dão entrada e zarpam, parte do frenesim náutico que contribui para que a Cidade do Cabo seja o terceiro centro económico do vasto continente africano.
Com a tarde a render-se e o sol quase a sumir-se na lonjura ocidental, a pressão atmosférica sobre o sopé da montanha diminui. Aos poucos, a névoa desliza da meseta.
Também ela se faz àquela beira-mar colorida pelo lusco-fusco e pela iluminação artificial com predomínio de dourado. Uma ferris wheel gigante rodopia acima do casario, contra o firmamento, não tarda, estrelado.
Aos poucos, os visitantes, convivas e comensais nocturnos instalam-se nos seus estabelecimentos preferidos.
A Victoria & Alfred Waterfront foi baptizada em honra do príncipe Alfredo que a visitou, em 1860, e, claro está, da sua mãe Victoria, rainha do já vasto Império Britânico.
A fama de escala, de entreposto oceânico, de Taverna dos Mares quase obrigatória, já a tinha há mais tempo.
Após as passagens de Bartolomeu Dias e Vasco da Gama pelo Cabo das Tormentas, os portugueses procuraram marcar uma presença e posição que sabiam ter grande valor estratégico. Confrontaram-se, todavia, com a resistência dos nativos.
Em 1510, Francisco de Almeida e os seus 64 homens sofreram as agruras do primeiro confronto entre europeus e indígenas da actual África do Sul. Todos pereceram naquela que ficou conhecida como Batalha do Rio Salgado.
Apesar da tragédia, nos anos que se seguiram, navios portugueses e, mais tarde, das nações coloniais rivais, continuaram a ancorar na base da Montanha da Mesa.
Numa primeira fase, lá reparavam os navios danificados e se reabasteciam de água e de mantimentos que, mal se pacificaram os contactos com os nativos, trocavam por tabaco, por prata, ferro e outros.
Os portugueses acabaram por se estabelecer e por manter fortificações noutras partes do sul e sudeste africano. À imagem do que aconteceu em distintos contextos coloniais, os holandeses que quase sempre lhes seguiam os passos, assentaram arraiais no Cabo.
Servidos pela Companhia Holandesa das Índias Orientais, garantiram, na sua Kaapcolonie, um entreposto para os navios que rumavam às Índias Orientais Holandesas, ilhas da actual Indonésia.
Castelo da Boa Esperança e as Origens Holandesas da Cidade do Cabo
Lá ergueram, entre 1666 e 1679, a primeira estrutura militar da actual Cidade do Cabo, o Forte da Boa Esperança, mais tarde, substituído pelo Castelo da Boa Esperança.
Esta última fortificação constitui o cerne civilizacional da colónia e da cidade.
O edifício colonial mais antigo da África do Sul mantém-se preservado e grandioso. É outro dos lugares da Cidade-Mãe que nos apressamos a desvendar.
O castelo preserva a sua configuração pentagonal.
As muralhas de pedra e argamassa contrastam com a leveza e beleza amarela dos edifícios no interior, separados por um relvado que, em função de uma reencenação histórica, soldados em uniformes seculares e em formação, percorrem de espingarda com baioneta ao ombro.
Num dos extremos ainda relvado do pentágono, encontramos a bandeira sul-africana a ondular ao vento.
Admiramo-la, quase da base, destacada acima do pico pontiagudo da Lion Mountain, um cerro a oeste da Montanha da Mesa que os marinheiros usavam como referência náutica complementar.
O Castelo da Boa Esperança provou-se de tal maneira fulcral, que o acompanha, entre palmeiras, uma ex-Prefeitura imponente, erguida já pelos britânicos, em 1905, em pedra-calcário tom de mel importado de Bath.
O CBD, acima do Velho Centro Histórico da City Bowl
O centro financeiro e empresarial e a baixa da Cidade do Cabo espraiam-se pelas terras baixas e alisadas que temos em redor.
Por ali, uma colónia recente de prédios corporativos de aço e vidro, sedes dos mais poderosos bancos sul-africanos e afins, eleva-se acima do Castelo da Boa Esperança, a desafiar a supremacia quartzosa das falésias da Montanha da Mesa.
Em óbvia disparidade temporal e arquitectónica, formam a outra secção da Downtown da Cidade do Cabo, ruas como a Long Street e a Kloof Street.
Lá abundam edifícios com arquitectura holandesa adaptada, alargados, com pedimentos simplificados e arcadas na base.
Suplantam-nos outros, mais modernos, em tempos habitados, hoje, devido a uma quase inevitável dinâmica de gentrificação, ocupados por um sortido de negócios lucrativos.
Por esses lados da também chamada City Bowl, o entardecer gera um jogo de sombras, formas e cores que, a par com as gentes e os vultos que percorrem as ruas, a tornam sobretudo enigmática.
Entre os edifícios com génese e influência holandesa, insinuam-se outros, laicos e religiosos, dos estilos eduardianos e victorianos que o fluir da história impôs à cidade.
De Colónia Neelandesa e Britânica à uma Intrincada Independência
A Cidade do Cabo foi holandesa e bóer de 1652 até 1795.
Neste ano, com a Holanda alinhada com a França Napoleónica que os Britânicos e aliados submeteram, os Britânicos aproveitaram para capturar a maior parte do território bóer na África do Sul.
Após um período de vaivéns, a Cidade do Cabo tornou-se, em 1814, britânica em definitivo.
A capital da colónia, entretanto, renomeada de Cape Colony, foi expandida, ao longo do espaço vago, entre o sopé da Montanha da Mesa e o litoral da ainda mais imensa Baía da Mesa.
A descoberta de diamantes e de ouro, no final do século XIX, gerou um fluxo migratório para a África do Sul que aumentou sobremaneira o número de habitantes e a diversidade étnica da cidade.
O Bairro Multicolor de Bo-Kaap e a MultiEtnicidade de Cape Town
Ao deambularmos pela Cidade do Cabo, damos connosco no multicolor Bo-Kaap, o bairro malaio de Cape Town.
Geraram-no descendentes dos escravos trazidos pelos holandeses da Malásia, da Indonésia e de partes de África, na sua quase totalidade, muçulmanos.
Durante vários séculos, muito antes da institucionalização do Apartheid, o bairro de Bo-Kaap foi segregado.
Aquando da sua libertação social, os proprietários das casas pintaram-nas de cores alegres.
A multiculturalidade da Cidade do Cabo não mais parou de se complexificar.
O Bo-Kaap e outros bairros menos garridos acolheram imigrantes indianos, filipinos, italianos, das mais distintas partes de África e, como é conhecido, portugueses, sobretudo madeirenses.
Admiramos um mural que exibe uma face sorridente do Madiba Nelson Rolihlala Mandela, pai da moderna nação sul-africana, a que triunfou sobre o desprezado regime segregacionista Apartheid imposto, de 1948 a 1994, pelos governos afrikaners do Partido Nacional.
Sul-africanos de diferentes etnias e tons de pele que passam entre o mural e as nossas objectivas ou não reagem ou sorriem de leve.
Assim se sucedem as suas posturas até que uma mulher de pele bem escura e cabelo curto enrodilhado em trancinhas ergue o punho direito, bem fechado.
Comprovamos, nesse momento, como, malgrado a sua complexidade, decorridos, não tarda, quatro séculos, a África do Sul e a Cidade do Cabo são, por história e por direito, dos seus.