O banho: esse tema transcendental e quase bélico do Circuito do Annapurna.
Intriga os anfitriões nepaleses a urgência dos mochileiros de se banharem. Exasperam-nos as sucessivas exigências por água quente: ao fim de cada dia. Logo após o despertar.
A maior parte dos nativos cresceram a tomar banho de quinze em quinze dias. Os mais velhos, fazem-no, com sorte, de mês a mês. Escapa à sua razão o porquê de os hóspedes implorarem por duches fluídos com água cálida. E, no entanto, quando interrogados sobre se os seus hotéis garantem banhos quentes, seja ou não verdade, prometem-nos.
Assim nos tínhamos decidido instalar na Ngawal Mountain Home, à entrada da povoação em vez de no seu centro. Uma hora após o check-in, estávamos deitados. Cobertos pelos sacos-cama polares e por todos os cobertores que o quarto oferecia, a tentarmos recuperar de uma inesperada hipotermia.
“Os alemães tomaram há pouco. Parece que estava bom!” assim nos incentivou o nepalês de serviço na pousada. Metemo-nos no duche, pensávamos que em segurança. Decorridos três minutos, ainda ensaboados, sentimos a água a passar de morna a gélida.
Vemo-nos forçados a continuar o banho a uns cruéis 0º (ou lá perto) e a nos enregelarmos ainda mais no regresso ao quarto.
Quando lá reentramos, estamos a tiritar que nem varas verdes. Só após meia-hora de recobro acamado recuperamos o normal controlo dos movimentos. Ainda a tempo do jantar.
À Descoberta de Ngawal
Derreados da subida anterior às alturas panorâmicas de Ghyaru, dormimos cedo. Acordamos mais tarde do que queríamos numa segunda-feira radiante. Saímos na direcção do casario de pedra e adobe que víamos à distância. Já em pleno reduto habitacional, encontramos uma das várias estupas da aldeia.
Na sua base, uma escadaria desenrolava-se encosta acima, a perder de vista, decorada por uma colónia multicolor de bandeirinhas budistas de oração que tremelicavam ao vento.
Havia ainda um letreiro que com três avisos em inglês de “notice” e o dobro dos pontos de exclamação alertava para a entrada do Nar-Phoo trekk, uma derivação do circuito Annapurna que ascendia aos 5300 metros de altitude do desfiladeiro de Kang-La.
Ficamo-nos pela escadaria. Pouco depois de meio, abandonamo-la para a encosta abrupta em que ziguezagueamos com cuidados redobrados para evitarmos rebolar por ali abaixo.
Mesmo antes de chegarmos a um ponto de observação que nos parece ideal, fazemos soltar uma grande pedra tão arredondada quanto instável.
O calhau ganha ímpeto. Rola na direcção das casas mais próximas e da estrada por que tínhamos entrado na aldeia e em que víamos cirandar alguns vultos.
Por momentos, fazemos fé em que se deteria na falda. A gravidade acelera-o de tal forma que o imaginamos a entrar por uma casa adentro e, a nós, a fugirmos de uma turba nepalesa em fúria.
Por sorte, a rocha acaba por se estatelar entre o mosteiro e uma outra estupa. Sem danos.
O alívio faz-nos apreciar o cenário abaixo e por diante com prazer redobrado.
De Volta ao Sopé de Ngawal
Ngawal estende-se numa área plana mas elevada do vale, sobranceira ao leito do rio Marsyangdi e à pista do aeródromo local que se aninha aos pés da cordilheira dos Annapurnas, ali, já da montanha Annapurna III, com a Gangapurna a sugerir-se a oeste.
Como a víamos daquele ponto panorâmico, era formada por um núcleo de telhados lisos de argila e palha, cada qual com o seu estandarte budista a esvoaçar ao vento.
Regressamos à escadaria e descemos para às ruelas ainda semi-solarengas da povoação.
Como tínhamos feito nas aldeias para trás, lá admiramos o dia-a-dia arrastado dos poucos habitantes e os detalhes arquitectónicos dos lares e edifícios religiosos: as janelas coloridas com molduras recortadas, os alpendres e varandins que se abrem para a atmosfera pura dos Himalaias e garantem aos moradores uma supremacia sempre útil face às ruas contíguas.
Aproximamo-nos do maior hotel de Ngawal, bem destacado no seu âmago. Duas senhoras nepalesas de alerta para a chegada de turistas insistem em impingir-nos o pequeno-almoço que já trazíamos tomado.
Continuamos a deambulação por mais meia-hora até que decidimos resgatar as mochilas grandes da Ngawal Mountain Home e avançarmos até à povoação que tínhamos prevista para o novo fim de dia.
Ngawal, a Caminho de Braga.
Mal passamos o portão da propriedade, esbarramos com Fevsi. Tínhamo-lo deixado, ao alemão Josh e ao casal ítalo-espanhol Edu e Sara em Ghyaru.
Nessa manhã, Josh retrocedera em busca do permit do circuito de que se esquecera em Chame. Edu e Sara já tinham passado para diante. Fevsi, caminhava sozinho no seu encalço. Saudamo-lo agradados por termos companhia.
Enquanto andamos, inteiramo-nos das novidades e entretemo-nos com sucessivos temas, dos relacionados com o circuito à vida de Fevsi na sua terra turca na iminência da Geórgia e até as incursões que fazia a Batumi e a outros litorais do Mar Negro e da antiga república soviética.
Descemos os três do cimo intermédio em que se espraiava Ngawal para o desfiladeiro do Marsyangdi abaixo. Caminhamos ao longo do prolongamento alpino do vale, com os picos bem nevados da cordilheira Annapurna a rasgarem o firmamento azulado. Ao contrário do que acontecera noutros, esse trecho mantêm-se movimentado.
Cruzamo-nos com um grupo de mulheres que trazem as suas crianças da escola. Não tarda, também com dois ou três motociclistas apontados a terras mais baixas.
Duas horas depois, contornamos o fundo raiado de uma zona de encosta que quase fechava o vale.
O lado de lá revela-nos novo lugarejo e um enfiamento de pequenos restaurantes locais em que, malgrado a proximidade do destino final, optamos por almoçar.
O Descanso Merecido de Munchi
Sabe-nos bem pousar as mochilas pesadas como chumbo. Quase tão bem como a tagarelice e os sumos de bagas de espinheiro-mar que bebericamos na esplanada diminuta enquanto esperamos pelos petiscos.
Sentimo-nos reanimados. Mesmo assim, não tão animados como o grupo de nativas instaladas no interior que, na companhia dos proprietários, alternam entre uma conversa matraqueada e ataques desenfreados de riso.
Pequenos pelotões de caminhantes, alemães, israelitas, na sua maioria, dirigidos a Manang, passam por nós e pela estátua dourada de Buda que abençoa a povoação.
Conscientes de que pouco faltava para o nosso destino, deixamos arrastar o repasto tardio de sopas, iaque guisado e pão tibetano. Até que o sol cai para trás das montanhas e o calorzinho que nos afagava as faces dá lugar à brisa frígida que, por norma, anuncia a noite.
Pagamos o almoço. Recolocamos as mochilas às costas. Retomamos o serpentear da longa via Manang Sadak que continuava a emular o do Marsyangdi. Vencidas mais umas centenas de metros, damos com uma profusão de tabuletas de beira-de-estrada que indicavam o Ice Lake e uma tal de Milarepa Cave.
Por essa altura, não estávamos disso conscientes, mas, viriam a provar-se ambas caminhadas árduas, cruciais para a aclimatização que a conquista do Thorong-La Pass, feita a 5.416 metros de altitude, nos exigia.
O Derradeiro Esforço
Deixamos para trás essas placas e deparamo-nos com uma estupa antiga envolta de bandeiras de oração. No meandro seguinte, cruzamo-nos com quatro ou cinco iaques negros a caminho sabe-se lá de onde.
Por essa altura, o grupo de mulheres que encontrámos em convívio dentro do restaurante de Munchi já quase nos apanhava. Ao perceberem o interesse fotográfico que tínhamos pelos animais, bloqueiam-lhes a marcha até que nos aproximássemos. Mesmo se o proveito fora pouco por os bichos terem, de imediato, debandado, agradecemos-lhes o esforço e a gentileza.
Fevsi continuava a sua caminhada. Encurtamos o espaço que dele nos separava na companhia das mulheres, que falavam algum inglês e seguiam na mesma boa-disposição em que as tínhamos visto pela primeira vez.
As senhoras despedem-se e retomam um passo acelerado que as nossas mochilas nunca nos concederiam. No entretanto, alcançamos Fevsi que, ao invés, tinha reduzido o seu ritmo.
Juntamo-nos a ele sobre um novo meandro. Contornamo-lo, uma vez mais curiosos. Até que vislumbramos um mosteiro budista branco e vermelho encaixado a meio de um fim de encosta coroado por penhascos afiados.
Só podia ser Braga. Ou Braka, como era também conhecida.
Enfim, Braga
Descemos da vertente que fechava o anfiteatro natural em que se abrigava a povoação para o prado inclinado e semi-encharcado no entremeio.
O pasto que ali se exibia bem mais viçoso que na maior parte do Nepal, servia de cama e de alimento a alguns iaques pachorrentos.
Mas não só. Bandos de patos selvagens e outras aves chafurdavam e vasculhavam a relva enlameada em busca de alimento. De tempo a tempo, aterrava um novo bando que reforçava o contingente de visitantes asados.
Ainda estávamos a chegar mas Braga já nos conquistava. Voltamos à Manang Sadak de que nos tínhamos perdido. Percebemos que quase todos os hotéis da povoação surgiam alinhados à beira da estrada.
Esta nova escala do Circuito Annapurna podia até ser bem distinta de Ngawal. O tema premente na altura de escolher a estadia, esse, era o da noite anterior e o de sempre: o banho.
O New Yak Hotel – o primeiro que encontramos em Braga – prometia duches aquecidos a gás de botija. Estava ainda servido de uma padaria repleta de tarte de maça e outras pastelarias de fazer água na boca.
Os preços da estadia e da alimentação destoavam pouco do habitual pelo que concordámos num ápice em lá nos instalarmos. Em boa-hora. Os banhos a gás de botija eram raros ao longo do circuito. Ofereciam-nos apenas hotéis que, como o New Yak, tinham conseguido fama online e que, como tal, se mantinham cheios.
Mesmo sem o dramatismo térmico do fim de dia em Ngawal, o duche inaugural volta a desiludir-nos. Ao contrário da Braga do Nepal, que não mais deixaria de nos encantar.
Mais informações sobre caminhadas no Nepal no site oficial do Turismo do Nepal.