Já faz parte do senso comum do circuito Annapurna.
Ficar alguns dias em Braga ou Manang era essencial para percebermos se estávamos mesmo em condições físicas. Ideal mesmo seria testá-lo num dos percursos que partem das margens do Marsyangdi para lugares bem acima nas encostas de um ou outro lado do vale.
O Ice Lake era um dos mais aconselhados. O trilho partia logo ali da frente do casario de Braga. Por mais que calculássemos o que nos custaria, não tínhamos como nos esquivarmos.
Tínhamos pedido o pequeno-almoço para as 7h30. Já despertámos vinte minutos depois disso. A tempo de vermos o sempre madrugador grupo teutónico deixar a frente do New Yak Hotel, apontados ao caminho que tomaríamos.
Despachamos o pequeno-almoço em três tempos. Voltamos ao quarto e reempacotamos as mochilas com mais isto e mais aquilo. São quase nove quando saímos, com aquela impressão tão portuguesa de estarmos atrasados, mesmo se ninguém estabeleceu horários.
Passamos pela base do mosteiro de Braga, seguimos os contornos da povoação e entramos pelo seu casario adentro, como o tínhamos feito no dia anterior. Numa das ruelas sombrias, encontrarmos uma primeira tabuleta a indicar o destino final. Tomamos essa direcção até que o caminho nos faz deixar para trás o casario, encosta acima.
De Braga (Brakka), Pela Montanha Acima
Pouco depois, damos com o trilho principal que retrocedia na direcção do Mosteiro de Karma Samtem Ling e na de Ngawal, a aldeia de que tínhamos chegado a Braga.
Quanto mais o percorremos, mais panorâmica se torna a vista de Braga e da espécie de ranhura geológica que a acolhera e do vale principal do Marsyangdi. Víamo-lo serpentear desde Manang e ainda mais para montante.
Pouco ou nada recuamos. Uma indicação pintada numa rocha alerta-nos de que estava na hora de ascender a sério. Cortamos para a encosta e iniciamos um ziguezaguear inclinado por ela acima.
Duzentos metros depois, o nosso custoso avanço é travado por uma grande fila de caminhantes com mais idade que ocupava todo o estreito trilho. Passamo-los agitados por uma discussão sem fôlego de se o devíamos fazer à pressa ou aguardarmos retidos ao ritmo deles não sabíamos por quanto tempo.
Acabou por vencer a lei do que ia à frente. Ultrapassamo-los em óbvio sobreaquecimento. Recuperamos a respiração o mais que podemos e tranquilizamo-nos. Regressamos à nossa passada normal, durante todo o resto do percurso sem mais trânsito digno de registo.
A determinada altura, o trilho ajusta-se a uma aresta sobressaída da vertente. A posição desta aresta revela um cenário mais aberto que nunca, tanto para o lado de Manang como para o oposto.
A Primeira Escala Panorâmica do Trilho
Sensíveis à sua bênção contemplativa e a de que seria lugar perfeito para um primeiro descanso mais longo, os nativos instalaram lá uma um longo estendal multicolor esvoaçante de bandeirolas budistas.
Sentamo-nos em rochas mais lisas, devoramos as primeiras barritas energéticas e ficamos a louvar o privilégio algo esotérico de podermos apreciar tais paisagens. De Braga, que ficava logo abaixo, já só vislumbrávamos uma ponta mais próxima do Marsyangdi.
Em jeito de compensação, todo o vale para leste surgia exposto. O casario mais moderno de Manang sobre a sua excêntrica meseta aluvial, o lago Gangapurna um pouco abaixo num contacto íntimo com o Marsyangdi.
No dia seguinte, haveríamos de caminhar paralelos ao rio, até nos instalarmos em Manang. Mas, para diante, tal como o víamos, o vale do rio bifurcava. Queríamos perceber ao certo qual dos desfiladeiros seguintes a Manang nos levaria ao ansiado Thorong La Pass.
A olho nu, ainda era demasiado complicado percebê-lo. Como tal, suspendemos o estudo do vale. Já com as coxas arrefecidas, tiramos umas derradeiras fotos e regressamos à subida.
Nova Paragem. Os Sintomas Bem Audíveis do Mal da Montanha
Um quarto de hora depois, voltamos a deter-nos num ponto similar mais acima. Com vista para o vale, mas também para o miradouro das bandeiras budistas anteriores. Nesse preciso momento, a fila de caminhantes que tínhamos ultrapassado chega ao ponto de descanso.
O vento sopra na nossa direcção. Ouvimos dois ou três deles tossirem desalmadamente. Sabíamos que era um péssimo prenúncio e sentíamo-nos seguros por não nos ter ainda acontecido o mesmo. Auguramos que os seus guias não permitiriam que aqueles seus três clientes prosseguissem.
O sucedido extravasou ou que esperávamos que acontecesse. Os guias até eram dois e, segundo nos parecia, um deles poderia descer com o trio com sintomas de mal da montanha. O outro, assim pensávamos, tinha condições para prosseguir com o resto do grupo. Ainda hoje continuamos sem perceber porquê. Em vez, desceram os dois guias e os dez ou doze caminhantes por eles guiados.
Nós, continuávamos sem nenhum contratempo. Encosta acima.
Às tantas, somos prendados com a visão súbita do cume nevado e supremo da Annapurna, recortado por uma aresta acima do nosso plano.
Um bando de veados selvagens que pastava sobre essa aresta servia-nos de escala para a montanha avassaladora que ali se insinuava. Entusiasmamo-nos de tal maneira a majestosidade do seu cume que quase nos esquecemos do que as pernas sofriam.
Retomamos os passos. Os meus, mais de rebenta e recupera, os da Sara, quase sempre uniformes e bem medidos.
A Visão Reconfortante da Tea House do Ice Lake
Vencemos mais umas centenas de metros. A meio de nova rampa, o trilho revela-nos uma casa. Por fim, tínhamos chegado ao “Ice Lake Restaurant, Tea & Coffee Shop”, assim indicava uma placa branca e azul colocada a um canto, junto ao telhado de zinco.
Oposta ao cavalo que o proprietário montava todos os dias para de descolar entre o seu lar no já distante vale e o estabelecimento em que ganhava a vida.
Sopra um vento gélido pelo que nos sentamos no interior. O dono dá-nos as boas-vindas e instala-nos. Pedimos chás de gengibre, limão e mel acompanhados de chapatas com queijo de iaque.
Saboreamo-los com o prazer redobrado do esforço e metemos conversa com o nativo que, tem que fazer na cozinha e não está para aí virado.
Por muito que nos apetecesse arrastar a recompensa, não nos retivemos mais que vinte minutos. Com a desistência do grande grupo mais abaixo, tínhamos a sensação que ninguém nos seguia.
A placa no exterior do edifício também anunciava que estávamos a 1h30 do Ice Lake.
Sermos os últimos a descer era sempre de evitar. De acordo, pusemo-nos uma vez mais mexer.
Nós a Chegarmos, Quase todos a Iniciarem o Regresso.
Nessa hora e pouco (não chegou a 1h30) que demoraríamos até ao topo, cruzámo-nos com os restantes do dia. Todos os grupos tinham saído bem mais cedo que nós. Cada qual descia do lago à sua maneira e na forma que a saúde e forma física lhes permitia.
Sara Peréz e Edo, o casal hispano-italiano com quem já tínhamos convivido antes, desciam a grande velocidade, sem qualquer problema. Também encontrámos os alemães. Um deles estava com mal de montanha, zonzo, com dor de cabeça e dificuldade para descer. Acompanhavam-no dois deles. Outros dois tinham-se demorado mais acima.
Num esticão adicional, entramos numa secção em que o trilho se mostrava enlameado pelo descongelar diurno da neve. A lama escura, obrigou-nos a refrear os passos.
Não impediu que, mais pausa menos pausa, mais fotografia menos fotografia, chegássemos ao destino final.
Por fim, o Gelado e Ansiado Ice Lake
Quase cinco horas após a partida de Braga, tínhamos conquistado os 4.600 do Ice Lake. Assim provava uma estupa branca e dourada, decorada com bandeirolas budistas.
Bem mais que o lago em si. Tal como o nome deixava antever e, em Março, o lago pouco passava de uma superfície nevada com limites difusos. Já só lá encontramos um casal a tirar as suas derradeiras fotos, apressados para iniciarem o caminho de volta.
Percebemos então que éramos os últimos. Conscientes de que muitas das tempestades do circuito chegam, fulminantes, mais para o fim dia. Sem vontade de sermos apanhados por uma delas, sozinhos, àquela altitude, num trilho exíguo com precipícios de quilómetros de altura à direita, apreciámos os cenários em redor.
Respiramos bem fundo. Fazemos as derradeiras imagens, as nossas e as do casal, a afastar-se sobre o solo branco, ínfimo, contra o fundo avassalador das Annapurnas. Findo esse ritual do habitual, inauguramos a descida. Agraciados com a misericórdia da gravidade, aceleramos a bom acelerar.
A Descida Apressada de Volta a Braga
Temos as coxas, os gémeos e todos os músculos fortes das anteriores caminhadas e da subida o que nos permite travar em pouco tempo.
Vemos nuvens escuras aproximarem-se dos lados de Chame, apontadas aos lados de Manang e o seu tom desagrada-nos.
A vista já a tínhamos apreciado na subida.
Optamos por descer em modo de quase corrida, pelo menos até que os joelhos reagem à sobrecarga e nos começam a doer. Passamos pelo casal que saíra antes de nós.
E por outro pequeno grupo. Tinham sido cinco horas a subir. Foram só duas a descer. De volta a Brakka, recebemos o merecido galardão.
Tínhamos subido e descido sem quaisquer sintomas do mal da montanha. Estávamos bem mais aclimatizados que antes para a travessia dos 5.416m do Thorong La Pass.
Celebrámos, de imediato, a reconfortarmo-nos com chás de gengibre com mel e limão e um par de pães tibetanos.