Apanhar um autocarro num terminal de Manágua não é experiência em que se embarque de ânimo leve.
A cidade respira uma atmosfera de hostilidade latente.
As grades que contêm lojas, as habitações e os seguranças armados de caçadeiras de canos cerrados intimidam.
A nossa passagem pela capital confirmou-se, assim, apressada como a tínhamos previsto. Seguiu-se uma travessia tão desconfortável quanto enigmática do interior do país, por estradas de terra enlameada, rios escondidos pela selva e pela neblina.
Chegamos a Bluefields, já na costa Atlântica, ao fim do dia.
Com tempo para sentirmos, nas ruas e num ou outro bar, o seu pulsar caribenho garifuna e reggae, pesado e arrítmico devido ao tráfego de cocaína “white lobster” que há muito agarrou a povoação.
A Chegada Domingueira e Matinal à Big Corn Island
Na manhã seguinte, bem cedo, sobrevoamos 60 km do Mar das Caraíbas e as duas Corn Islands, antes de aterrarmos na maior, a Big Corn.
Instalamo-nos na Casa Blanca, uma pequena guest house familiar a funcionar numa vivenda verde e amarela de madeira, envelhecida, gasta como quase todas em redor.
Sem tempo a perder, refrescamo-nos no mar cristalino da praia em frente. Logo, saímos à descoberta, em duas velhas pasteleiras alugadas.
Os trilhos passam junto a grupos espaçados de habitações espartanas que as tempestades tropicais e os ciclones sacodem com frequência.
Como o fez, em 1988, o Joan que derrubou a maior parte dos coqueiros e a produção vital de copra da ilha, deixando-a dependente da pesca e de um turismo irrisório.
É Domingo. Cruzamo-nos com famílias pitorescas trajadas a rigor, a caminho das suas igrejas preferidas. Como noutras partes da Nicarágua e do Caribe, a religião sustenta a comunidade. ao mesmo tempo, divide-a entre as várias ramificações que se foram instalando.
Pela multidão que se dirige ao seu templo, a adventista parece ter conquistado a maior parte dos fiéis. Mesmo menos frequentadas, as anglicanas e as baptistas, capricham nas suas cerimónias, aqui e ali, realizadas à laia de musical gospel.
Os nativos que não aderiram a nenhuma das fés, ficam-se pelos domicílios e pequenos jardins contíguos.
Deixam-se embalar pelos ritmos caribenhos que chegam em onda curta do outro lado do mar.
Enquanto isso, verificam a longa cozedura de mais um almoço de arroz e feijão, quem sabe enriquecido por algum peixe frito.
A História e Aventura Étnica das Corn Islands/Islas del Maiz
A população de quase sete mil habitantes das Corn Islands / Islas del Maiz era predominantemente crioula. Formada por uma mescla sanguínea dos indígenas com escravos africanos trazidos de outras paragens das Caraíbas, como a Jamaica.
Os ingleses colonizaram as Corn Island até 1894.
Nos últimos tempos, o panorama étnico das Corn Islands complexificou-se.
As ilhas atraíram nicaraguenses hispânicos vindos do continente e miskitos (da Costa dos Mosquitos), ambos responsáveis por o castelhano estar prestes a ultrapassar o inglês crioulo como língua mais falada.
Os miskitos provaram-se eles próprios, uma improvável combinação genética.
Atestam vários historiadores que gerada pela displicência marítima de um português.
A Revolta no Navio de Lourenço Gramalxo que Africanizou a Costa dos Mosquitos
Lourenço Gramalxo era um capitão de um barco negreiro que transportava escravos da Ilha de Samba, ao largo do Senegal, com o Brasil como provável destino.
Durante a viagem transatlântica, os escravos apoderaram-se do seu navio.
Sem qualquer conhecimentos de navegação, não evitaram que naufragasse na zona dos Cayos Miskitos. Numa primeira fase, foram aprisionados.
Mais tarde, adoptados pelo povo Tawira que aceitou uniões dos africanos com mulheres da sua tribo e os seus filhos como membros livres.
Apreciamos a intrusão dos hispânicos e dos nativos miskitos nas Corn Islands nos bares da avenida principal e da praia Pic-nic Center.
Ali, o reggae e o calypso e as cervejas nacionais, a Toña e a Vitória animam o ambiente e puxam pelas conversas fáceis dos latino-americanos.
Prendados pela bonança meteorológica, os dias sucedem-se, gloriosos, sob um céu sempre azulão, afagados por uma brisa que suaviza o calor tropical.
Umas poucas nuvens aventuram-se junto ao pôr-do-sol.
A chuva que irriga a vegetação tropical da ilha cai apenas de noite, em bátegas fulminantes que limpam a atmosfera matinal iminente.
Tempo de Navegar da Big Corn para Little Corn Island
Após três dias de Big Corn Island, mudamo-nos de lancha para a irmã miniatura, a Little Corn island. A Pequeña Isla del Maíz, como preferem tratá-la os nicaraguenses continentais.
Depressa compreendemos que é bem mais que a dimensão aquilo que distingue a Big da Little Corn. A primeira abriga a alma cultural e a sede laboral do arquipélago.
Já a Little permanece à margem dos acontecimentos, num retiro tropical que só os seus seiscentos habitantes e umas dezenas de visitantes por dia, em época alta, têm o privilégio de usufruir.
Pouco depois de nos instalarmos, tomamos o trilho que contorna a ilha. Descobrimos as variantes do seu litoral, levemente urbanizado na costa oeste, a protegida do vento e da rebentação.
Selvagem de um modo quase divinal na oposta, onde o mar é quebrado por uma extensão da segunda maior barreira de coral do mundo. Ali, assume um estranho padrão listado de azuis e verdes que se estende ao areal branco e quase toca a linha de coqueiros que lhe faz sombra.
Ao longo desse trilho e de outros que dele ramificam, cruzamo-nos com nativos. Saudamo-los com um convencional “Hi” ou “Hello”. Mas, digamos o que dissermos, o cumprimento que deles obtemos é sempre “OK”.
Ao fim de algum tempo sem percebermos a lógica, confirmamos com um dos transeuntes a explicação para o fenómeno a que tínhamos entretanto chegado.
A ilha é tão pequena e tem tão poucos trilhos que os seus 600 habitantes acabam por neles se cruzar várias vezes ao dia.
De maneira a evitarem o desconforto e a chatice das constantes repetições de saudações, simplificaram as abordagens até ao extremo de omitirem a pergunta e trocarem apenas a mais básica das respostas, “OK”.
O Panorama Perfeito a Partir da Casa Iguana
Um declive acentuado leva-nos à propriedade da Casa Iguana, uma guest house de impacto ecológico quase nulo que se instalou junto a uma saliência elevada na costa e tem a melhor vista da ilha.
“É algo realmente especial, não é?” pergunta-nos Jeff, uma espécie de sócio-capataz do lugar que se mudou do Canada vasto e frígido para usufruir, por uns tempos, da beleza e do calor aconchegantes daquele cenário.
“Até tenho arrepios quando aqui volto.”, confessa-nos. E continua a contemplar a floresta verdejante do interior, a linha curva de costa delineada pelo areal e o Caribe azulado que o encontra.
O sol precipita-se sobre o horizonte. Sem qualquer fonte de iluminação, preocupamo-nos em regressar à costa oeste antes que o escuro nos escondesse os caminhos.
Seguimos por um atalho assinalado no croqui “oficial” da ilha. Numa zona quase cimeira da ilha, deparamo-nos com um enigmático prado amarelado.
Voleibol de Praia e Água de Coco Fresca
Já na povoação, paramos para assistirmos ao final de um torneio caseiro de voleibol sobre a areia. Disputam-no adolescentes e homens aguerridos.
Entre manchetes e remates esforçados gritam, discutem e praguejam tanto em castelhano como no inglês apiratado, quase incompreensível da ilha.
Quinhentos metros ao lado, num bar minimal à beira-mar plantado, um grupo de visitantes escandinavos delicia-se a beber águas de cocos.
Esteban, o dono hispânico, barman residente colhe-os de um coqueiro do seu quintal com a ajuda meticulosa de um machete e da esposa. Juntamo-nos ao convívio.
Nós, admiramos a simplicidade do seu negócio. Comparamo-lo com o frenesim do dia-a-dia europeu e elogiamos a vida pachorrenta daquelas quase desconhecidas Caraíbas.