A época seca do Planalto Central costuma ser inclemente com Brasília e a meteorologia cumpria os seus desígnios.
O ar mantinha-se há já alguns dias quente e áspero, quase desprovido de humidade, misturado com uma poeira leve que feria as gargantas mais sensíveis.
“Vamos lá pessoal, com determinação mas respeito…” alerta ao altifalante um “policial” experiente.
Quando as Manifestações Tomam Conta do Planalto
Nem o calor insuportável do meio da tarde tinha demovido uma mega-manifestação da Polícia Rodoviária Federal de se formar à hora marcada, junto à catedral exuberante da cidade.
Vemos o cortejo estender-se pelas principais avenidas. E demorar-se de propósito na Praça dos Três Poderes, em frente ao edifício do Congresso Nacional, junto ao Palácio do Planalto onde era crucial que as suas reivindicações de um plano de carreira e de mais vagas fossem ouvidas.
Os brasileiros procuram o seu caminho para a Ordem e o Progresso. Ao mesmo tempo, um outro protesto criativo, desta vez dos professores, instalava-se sobre o relvado adjacente ao Congresso Nacional.
A precaver a mais que certa indisponibilidade dos políticos para os receber, os responsáveis tinham colocado dezenas de imagens dos deputados sobre cadeiras. E era àquela plateia inanimada que exigiam um “piso” salarial, exigência proferida por um representante da classe a partir de um púlpito improvisado.
São elevados os custos da interioridade da capital e, em particular, destas expressões da democracia. As despesas com transportes, alimentação, infra-estruturas e outros chegam à ordem dos 2, 3, 4 e até bem mais milhões de Reais.
Apesar de ínfimos se comparados com o que foi gasto na construção de Brasília e com o potencial económico do Brasil, estes números afectam as organizações promotoras que, os divulgam com frequência à imprensa em jeito de queixa adicional.
Os Confins Históricos do Projecto Brasília
Não foi nada que preocupasse em demasia o governo do Marquês de Pombal quando ponderou, pela primeira vez, passar a capital do Império Português para domínios menos explorados da colónia.
À época, as riquezas mais fáceis do Brasil – ouro e diamantes, em vez do imenso petróleo actual – surgiam do litoral para o interior e convinha à Coroa efectivar um domínio o mais abrangente possível do território.
A ideia foi debatida e disputada por várias facções. Com destaque para os Inconfidentes Mineiros. Este grupo de rebeldes conjurava, desde há algum tempo, uma revolta separatista contra a derrama e outras formas de impostos implacáveis que levavam para a metrópole parte (1500 kg de ouro anuais) da riqueza acumulada pela população abastada de Minas Gerais.
Por ironia, o seu lugar de eleição para a capital da nova república chamava-se São João d’El Rei. O plano foi traído por um coronel que, em troca, viu perdoada a dívida que tinha para com a Coroa.
No mesmo ano da Revolução Francesa, os Inconfidentes foram condenados no Rio de Janeiro e aprisionados. Como exemplo preventivo de novas revoltas. Tiradentes, o conjurado de mais baixa posição social, foi enforcado e esquartejado.
A disposição de deslocalizar a capital subsistiu ao longo da história, antes e depois da independência brasileira.
O Lento Arrancar da Capital no Coração do Brasil
Em 1891, essa mudança foi incluída na constituição republicana e, ao mesmo tempo, constituída uma Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil.
Só muito mais tarde, em 1960, a desejada nova capital se tornaria realidade, viabilizada pela determinação política do Presidente Juscelino Kubitschek.
O urbanista Lúcio Costa e o arquitecto Oscar Niemeyer receberam uma carta quase branca.
Criaram uma cidade de tal maneira inusitada que, quando o astronauta russo Yuri Gagarin a visitou fez questão de declarar: “tenho a impressão de que estou a desembarcar num planeta diferente …”.
É a mesma sensação que temos enquanto caminhamos pelas suas avenidas largas, entre formas criadas como uma visão dos anos 60 do que seria uma cidade de um futuro longínquo.
Uma cidade que acabou por ser a única construída no século XX a conquistar o estatuto de Património Cultural da Humanidade da UNESCO.
À Margem do Urbanismo e Arquitectura, a Vida Humanizada de Brasília
Malgrado o seu aspecto de museu orgânico, Brasília depressa ganhou uma vida contrastante.
O Distrito Federal acolheu migrantes de todas as regiões do Brasil e até do estrangeiro de uma forma bem menos harmoniosa que o que era esperada.
Na proximidade do Eixo Monumental, das diferentes “asas” habitacionais e dos excêntricos sectores funcionais da cidade (diversões, cultura, comércio, hotéis, médico-hospitalar etc.), a população beneficiou dos empregos criados pelo estado e daqueles a estes ligados. Prosperou.
Ao mesmo tempo, os municípios goianos da periferia acolheram milhares de recém-chegados extra que procuravam alternativas à pobreza das zonas que tinham abandonado.
Brasília vai a caminho dos 3 milhões de habitantes. Em termos sociais, é considerada a 4ª cidade mais desequilibrada do Brasil e a até recentemente, a 16ª do mundo.
Os números da criminalidade surgem, como era de esperar, a condizer.
Pouco ou nada afectam a nata elitista dos políticos que mantêm o seu domicilio luxuoso na capital mas, voam sempre que podem para as grandes metrópoles históricas do litoral – leia-se São Paulo e Rio de Janeiro – onde, política à margem, se continua a desenrolar a “verdadeira” vida brasileira.
Para a classe média e, ainda mais para os pobres, Brasília é a cidade com que há que lidar.
Motorista Seu Zé e a Realidade Então Abastada do Brasil
Taxista a tempo inteiro, seu Zé mostra-se mais apoquentado com a praga de manifestações do que com os “passarinhos” (assim lhes chama), os radares de velocidade que as autoridades esconderam em várias árvores da avenida. Sempre que pode, acelera.
”Esses caras ainda me vão arruinar o fim do dia. Tenho que levar meu filho ao treino a horas, vocês sabem como é o famoso paitrocínio brasileiro…” Como não tem politico na família, a gente tenta se virar com o futebol, né? ”
Tanto a reclamação como a ambição são velhas mas Seu Zé admite: “pelo menos nas notícias internacionais desde há algum tempo que o Brasil só dá show. Vocês sabem … tem uma das economias com crescimento mais rápido do mundo e prevê-se que se torne uma das cinco maiores já nas próximas décadas…”
O motorista acaba ainda por aceitar que a carrinha hiper-moderna, quase luxuosa em que trabalha se pode considerar um fruto desta nova prosperidade. No entanto, por altura da última revisão deste texto, Abril 2020, o Brasil de Jair Bolsonaro vivia um período de crise social e económica agravada pela pandemia de Covid 19.
Dentro do táxi, perdemos a noção do tempo. Entretanto a multidão de protestantes tinha desmobilizado. Quando menos esperamos, o sol começa a pôr-se. Pinta uma parede celeste laranja que parece fechar a cidade a oeste.
Compõe-se ali mais um dos célebres ocasos exuberantes de Brasília. Segue-se um crepúsculo rival.
Na manhã seguinte, estavam previstas várias novas manifestações e, quem sabe, um ou outro escândalo dos que dão mais sentido aos jornais da nação.
Os deputados e senadores ocuparão os seus lugares na câmara do Congresso Nacional.
Como o faz desde a década de 70, através das suas decisões, para bem e para o mal, Brasília decidiria o futuro do Brasil.