De uma vez por todas desiludidos com o perfil demasiado industrial da costa norte da Tasmânia, atalhamos caminho para sul.
Nuns poucos quilómetros, regressamos a domínios rurais remotos da ilha, feitos de retalhos de plantações intercaladas com bolsas de mata anciã.
Conduzimos por uma via estreita e sinuosa de terra batida, subsumida na vegetação e atravessada por cangurus, wallabies e wombats.
Aos poucos, sempre por estradas com nomes naturais – Mersey Forest Road; Lake Mackenzie Road e afins – ascendemos das planícies campestres do coração da ilha para as suas alturas.
Com passagem por um lugarejo de tal forma imaculado e bucólico que os moradores se atreveram a chamá-lo de “Paradise”.
Subimos mais e mais.
Essa derradeira estrada termina num alto sem saída.
Lá se insinuam um passadiço de madeira e sinais que alertam para risco de queda.
Estacionamos, inspecionamo-los. Seguimos-lhe a pista curiosos quanto a onde nos iriam levar.
Devil’s Gullet – uma Tasmânia Diabólica-Magnificente
Trezentos metros e uns tantos passos depois, o passadiço desvia e revela-nos um dos cenários mais grandiosos que encontrámos na Tasmânia.
Entre a visão e a vertigem, impunham-se para diante os enormes penhascos e os vales glaciares do Devils Gullet, com vértice profundo no leito do Fisher’s River.
Apenas e só quando nos aventuramos até ao limiar da plataforma, os Roaring Forties, ventos gélidos que circundam a Terra a esta latitude e ali sopram furiosos, quase nos fazem levantar voo. Dão razão de ser aos avisos de perigo e exigem-nos mãos bem firmes no parapeito do varandim.
Aos nossos pés, centenas de metros abaixo, com uma dimensão e imensidão quase bíblica, estendiam-se os domínios de geologia caprichosa dos Walls of Jerusalem, assim denominados alegadamente porque vários dos seus recortes rochosos faziam lembrar os muros da cidade de Deus.
Dali, só após retrocedermos uns bons quilómetros no mapa, chegaríamos a algum lado. Voltamos a cruzar a floresta enigmática de Mersey e, logo, o rio Forth. Por altura da Mount Roland Regional Reserve, flectimos para oeste.
O que buscávamos a ocidente deste território extremo era o Parque Nacional Cradle Mountain-Lake St Clair.
O parque delimita uma das áreas selvagens idolatradas da Tasmânia, decretado Património da Humanidade pela UNESCO sobretudo por constituir uma das últimas vastidões de floresta temperada à face da Terra, numa área de desfiladeiros e gargantas que resultaram de uma longa e severa glaciação.
PN Cradle Mountain-Lake St Clair: o Coração Geológico da Tasmânia
Está provado que o Homem já habitava esta região há pelo menos 20.000 anos.
Mesmo numa fase de óbvio aquecimento global, o Parque Nacional Cradle Mountain-Lake St Clair é das regiões da Tasmânia (e, claro está, de toda a Austrália) que mais neve recebe assim que o Inverno se apodera da ilha.
Também é palco do concorrido Overland Track.
Com 80.5 km de extensão, este itinerário pedestre que liga Cradle Valley a Cynthia Bay seduz milhares de aventureiros provenientes sobretudo dos estados australianos mais próximos de Victoria e Nova Gales do Sul mas cada vez mais dos quatro cantos do mundo.
Durante cinco ou seis dias, os caminhantes que o enfrentam serpenteiam entre as montanhas e lagos inóspitos da região.
Do lado de lá do estreito de Bass, na grande Austrália continental. o simples som dos seus nomes chega a provocar arrepios. “Cradle Mountain? Overland Track?” They’re freaking awesome, mate!” comentam, sem reticências, Ian e Kate, dois irmãos que conhecemos em Melbourne.
Para nossa frustração, não estamos com tempo para nos metermos em tais andanças.
Em vez, espreitamos os seus lugares emblemáticos, com destaque para a beira do lago St Clair com vista para a dentada Cradle Mountain.
No preciso momento em que a admiramos e fotografamos, empoleirados sobre um calhau de granito, um caiaquer que percorria o lago surge de um seu meandro.
Dá por encerrada a volta da tarde na praia de cascalho fino ali ao lado.
Também não nos demoramos. Deixamos para trás o lago. E, logo, o parque nacional.
Em Busca da Esquiva Strahan, nos Confins Orientais da Tasmânia
Rumamos ao litoral arenoso e ventoso do ocidente da Tasmânia.
Percorremo-lo de norte para sul por uma imensidão de floresta mística alternada ou fundida com areais desgarrados e dunas imponentes deles projectadas.
Já na iminência do grande Estuário de Macquarie, a floresta rende-se a uma planura ensopada e, em boa parte, os areais surgem-nos cobertos de vegetação rasa.
Strahan, a vila costeira retirada que procurávamos, revela-se por fim, tímida, sob a protecção do pequeno porto de Macquarie. Descobrimo-la cercada de uma imensidão de mato e de pauis seus aliados.
Lá vemos ainda os pescadores entrarem e saírem da doca da vila.
Os que vivem a tempo inteiro na povoação e pescam a bordo de traineiras.
E os mais abastados que chegam com o estio de outras partes da Austrália e zarpam em lanchas milionárias para momentos de pescaria recreativa ou de contemplação das focas e dos leões-marinhos residentes.
Regressamos à Lyell Highway apontados ao interior. Quarenta quilómetros desta estrada A10 depois, a meio de uma inesperada e ziguezagueante descida, tudo muda do dia para a noite.
Em vez da imensidão ora bucólica ora luxuriante a que vínhamos habituados, confrontamo-nos com um panorama semilunar feito de montanhas e vales despidos de vegetação, mais que esculpidos pela erosão, escavados pelo homem.
Vemo-los numa palete rica de tons: ocre, magenta, esverdeados e outros com brilhos que oscilam consoante o sol incide.
A Cidade Desde Sempre Mineira de Queenstown
A via termina em Queenstown, uma povoação de aparência e atmosfera western que trocou uma era de mineração lucrativa mas erosiva pelo turismo.
Por volta de 1870, prospectores descobriram ouro aluvial nas imediações do monte Lyell. Em tal quantidade que, em 1881, o achado justificou a criação de uma tal de Mount Lyell Gold Mining Company. Como se não bastasse, decorridos onze anos, a empresa detectou prata.
Afluíram à zona gentes de todas as paragens australianas e não só. Esse influxo populacional deu origem a Queenstown, um povoado entretanto dotado de fundições, serrações, fornos de tijolo, entre várias outras infraestruturas.
Durante mais de um século, Queenstown manteve-se o centro operacional e logístico da Mount Lyell Mining and Railway Company.
A ascendência e declínio da cidade – incluindo os da sua população – desenrolaram-se de acordo com o desempenho e a fortuna desta empresa.
Na viragem para o século XX, a cidade e o vale em redor permaneciam ainda densamente florestados.
O corte intenso de troncos necessários à mineração, à fundição e aos fornos, à construção de domicílios, hotéis, correios, igrejas, escolas, lojas e tantas outras empreitadas fulcrais para a vida das suas mais de dez mil almas conduziu a uma dramática desertificação.
Enquanto descemos aos esses para o centro histórico, sob um céu azulão só possível no pino do Verão tasmaniano, surpreendemo-nos com os cenários algo alienígenas.
Por fim, os meandros do asfalto terminam. Completamos a ladeira final numa tal de Bowes St.
Entramos directos na Orr St., a rua central desafogada da cidade.
Do Passado Victoriano-Mineiro aos Dias de Hoje Sobretudo Turísticos
Até aos anos 90, a Orr Street preservou em funcionamento bancos, hotéis, escritórios e outros negócios lucrativos, erguidos no mesmo estilo arquitectónico victoriano que lá resiste em dois níveis bem distintos: o ao abrigo das arcadas de ambos os lados do betume. E o elevado das fachadas coloridas acima delas.
Passado um período de incerteza e angústia após a Mount Lyell Gold Mining Company ter soçobrado, os habitantes mais resilientes readaptaram-se.
A extracção da prata continua às mãos de um grupo indiano, já sem o significado financeiro da era próspera da cidade. Queenstown seguiu outro caminho.
O boom turístico da Tasmânia e o trunfo histórico, arquitectónico e da sua excentricidade facilitou-lhe a vida.
Visitantes como nós, com tempo para descobrir a grande Tazzie, incluem-na nos seus itinerários. Espreitam os correios seculares, o Hotel Empire e o teatro art deco Paragon.
Quando o calor e o cansaço apertam, refrescam-se nos pubs de atmosfera antiga e peculiar que servem a Orr Street, como as paralelas e perpendiculares.
Uma outra atracção que fazemos questão de espreitar é a velha estação ferroviária.
Foi conservada sob museu Rack & Pinion Steam Railway, parte do bem mais vasto West Coast Wilderness Railway que cruza a Tasmânia da Cradle Mountain até ao litoral de Strahan, via Queenstown.
E através de séculos de história, num percurso de 151 km, mesmo se a vapor, cumprido em pouco mais de duas horas.
A Vastidão Selvagem para Sul de Queenstown
O dia e as horas em que exploramos Queenstown não coincidem com a passagem do comboio.
De acordo, limitamo-nos a admirar a estação local e a paciência com que alguns dos seus visitantes mais idosos, eventualmente ainda do culminar da era do vapor, a estudam e fotografam ao mais ínfimo pormenor.
O mapa confirma-nos que por umas boas centenas de quilómetros a sul de Strahan e de Queenstown, a Tasmânia se revela de tal forma indómita que permanece desprovida de verdadeiras estradas.
O Franklin e o Gordon lá se destacam entre vários outros rios furtivos. Sulcam florestas quase impenetráveis e submetem-se a desfiladeiros profundos que tornam os seus caudais revoltos.
Se existisse um top para os povos intrépidos do mundo, os ozzies surgiriam, sempre em primeiro lugar.
Malgrado a rudeza da região, todos os anos, centenas deles cedem ao desafio e adoptam-na como uma espécie de parque de diversões em que se dedicam ao trekking e ao rafting ultrarradical dias a fio.
Apaixonados pelo dramatismo dos cenários, dependentes da adrenalina, voltam vezes sem conta.
Aventurarem como mais gostam nestes confins insulares da sua amada Austrália: sem regras ou limites.