Nenhum outro país é tão diverso de alto a baixo.
De tal maneira que os chilenos se divertem a contar que, depois de ter criado a maior parte da América do Sul, já farto da tarefa, Deus pegou no que sobrava – bocados de deserto, montanha, vale, glaciar, floresta húmida – e criou o Chile, à pressa, para, por fim, poder descansar.
Depois de explorarmos o PN Torres del Paine, os fiordes chilenos da Patagónia num cargueiro transformado em cruzeiro e subido ao cume do vulcão Villarica, na província da Araucania, chegava a altura de nova mudança radical, de zona e de paisagem. Foi ainda a recuperar da dura ascensão do Villarrica que partimos de Pucón.
À medida que nos aproximamos do Norte Grande, a região que se estende da fronteira com o Peru ao Chañaral é dominada pelo Deserto do Atacama e pela desolação ali cinzenta que, segundo a lenda, Deus ali terá criado.
NASA e a Escolha do Único Lugar sem Vida à Face da Terra. O Atacama
Em 2003, uma equipa internacional de cientistas, na sua maior parte pertencentes à NASA é à Universidade norte-americana Carnegie Mellon, mudou-se de armas e bagagens para estas paragens.
Em pouco tempo, deu início a Life in the Atacama, um programa minucioso de pesquisa de campo que tinha como objectivo aperfeiçoar novos veículos robóticos para a missão astrobiológica Spirit.
O primeiro planeta a acolher a Spirit e o rover homónimo foi Marte, em Janeiro de 2004. Sete meses depois, Chris McKay, um geólogo da NASA justificou, assim, a um repórter, a escolha do deserto de Atacama para preparar a missão: “Pode ir à Antárctida, ao Árctico, a qualquer outro deserto em que já estivemos, recolher uma amostra de terra que vai encontrar bactérias…este é o único lugar da Terra onde passámos realmente o limiar e não encontrámos vida …”
Em termos visuais, se existem sítios comparáveis ao que conhecemos e imaginamos do planeta vermelho, o deserto de Atacama tem que ser um deles.
A adjectivação das suas paisagens como extraterrestres ocorre a toda a hora a quem o visita. Entre tantos cenários dignos de outros mundos, basta pensar nos tons ocres dos Vales da Lua e da Morte para se chegar a um imaginário marciano.
E a Vida Prolífica do Deserto de Atacama
E, malgrado as condições adversas, vivem em bolsas do deserto de Atacama mais de um milhão de pessoas. Graças às suas matérias primas, as regiões a que pertence – El Norte Chico e El Norte Grande – foram e são responsáveis pelo disparar e recente consolidar da economia chilena.
No século XIX, as primeiras explorações do famoso nitrato do Chile atraíram milhares de trabalhadores, até à invenção das alternativas artificiais.
Actualmente, os nitratos foram substituídos pela mineração de cobre, da prata, do ouro e do ferro, que o Deserto de Atacama e redondezas fornecem em abundância.
Sem surpresa, cresceram do nada povoações improvisadas que deram origem a novas infra-estruturas e oportunidades. Entre as que já existiam: Arica, Iquique, Antofagasta e São Pedro de Atacama.
São Pedro evoluiu para explorar outro recurso altamente rentável do Chile, o turismo.
A Excentricidade Geológica do Deserto de Atacama
Estendido por 1000 km, ao longo do sul do Peru e norte do Chile, o deserto de Atacama tem limites longitudinais bem marcados. A oeste, o oceano Pacífico; na direcção oposta, a cordilheira dos Andes.
Prolonga-se por uma plataforma costeira estreita, cinzenta e poeirenta. Logo, ergue-se até às pampas, planícies inóspitas que mergulham em gargantas fluviais pré-históricas cobertas de sedimentos minerais provenientes dos Andes.
As planícies, por sua vez, dão lugar ao Altiplano
Nesta pré-cordilheira, inúmeros salares, lagoas salgadas e campos geotérmicos que anunciam cerros e vulcões nevados e imponentes. São os casos do Toco, do Licancábur, do Putana ou do Águas Calientes, quase todos próximos dos 6.000 metros de altitude.
Do outro lado do horizonte montanhoso, o território é boliviano ou, mais para sul, argentino.
A zona central do Deserto de Atacama é considerada o lugar mais seco da Terra.
Ali, em certas áreas específicas de “deserto absoluto”, nunca se conseguiu registar queda de chuva. Noutras, menos centrais, a pluviosidade mede-se em milímetros por década.
O contexto meteorológico e climático deste deserto remoto é tão misterioso como fácil de explicar.
E as Condicionantes Também Climáticas que Mantêm Árido o Deserto do Atacama
Nestas latitudes, corre ao longo da América do Sul a corrente de Humboldt, assim chamada em honra do naturalista prussiano Alexander von Humboldt. A corrente, ascendente, tem efeitos contraditórios.
As suas águas, provenientes da Antárctida e do fundo do oceano, tão gélidas quanto nutritivas, fazem dela um ecossistema marinho de Classe 1 (>300gC/m2-yr), o mais produtivo do mundo, de onde provém cerca de 20% de todo o peixe pescado à face da Terra.
Ao mesmo tempo, a corrente de Humboldt é responsável pelo arrefecimento do ar sobre a zona costeira do sul do Peru e do Chile. Alimenta um núcleo de altas pressões. E bloqueia a formação e a deslocação para terra de nuvens favoráveis à precipitação.
Junto à costa, ainda paira a camanchaca, um nevoeiro denso que reina durante o Inverno local, de Junho a Outubro. Alguns quilómetros mais para o interior, a cordilheira costeira do Chile detém o avanço da névoa. Do Pacífico, o deserto de Atacama recebe apenas secura.
Já do lado oposto, a cordilheira dos Andes impede a passagem de nuvens carregadas de humidade provenientes de leste, da bacia do Amazonas e restante interior da América do Sul. As montanhas mais elevadas apreendem essa humidade, condensam-na e geram chuvadas ou nevões, consoante a época do ano.
Por cima e para oeste, só passa um vento estéril.
Água dos Andes: o Degelo que dá Vida ao Mais Seco dos Desertos
O milagre da vida no deserto de Atacama é produzido nas alturas. Quando o sol tropical, pouco filtrado pela atmosfera fina, derrete a neve que coroa os picos andinos, enche os aquíferos que se formam no sopé das montanhas.
Dá assim origem a oásis. O que abençoou São Pedro de Atacama, por exemplo.
A sul e oeste de São Pedro, a Reserva Nacional Los Flamencos inclui sete sectores geograficamente independentes, cada qual com o seu cenários insólito. O Salar de Atacama, em particular, dá-nos uma ideia inequívoca do contraste porque se rege o deserto.
Quando o cenário branco do sal sem fim nos começa parecer de absoluta desolação, encontramos a Laguna Chaxa.
A natureza volta a surpreender-nos, desta vez, nos tons rosados dos milhares de flamingos que a ocupam.
Ao pôr-do-sol, o Salar de Atacama resplandece ali de cor. Além da chegada permanente dos flamingos à lagoa, para oeste, o horizonte andino contrasta mais que nunca com o branco sem fim do sal.
Pela menor distância a que estão, sobressaem do horizonte os cones perfeitos e avermelhados do vulcão Licancábur e do cerro Toco. Se virarmos o olhar para sul, vislumbramos a cadeia de montanhas a prolongar-se até perder de vista, algumas centenas de quilómetros para diante, já Argentina.
Inspeccionamos o mapa. É nestas latitudes, acima e abaixo do Trópico de Capricórnio, que o magríssimo Chile atinge a sua máxima largura. Isso deve-se a uma extensão improvável da fronteira para ocidente que incorporou parte substancial da cordilheira.
Um Reduto Extraterrestre nos Limites da Vida na Terra
Quando exploramos essa espécie de adenda geográfica, encontramo-la salpicada por salares e lagoas de Altiplano com água de coloração caribenha.
À saída de San Pedro de Atacama, passamos a fortaleza de Quitor. Deparamo-nos com o mais deslocado dos sectores do PN Los Flamencos.
Mesmo conscientes que os sul-americanos recorrem ao termo Vale da Lua para denominar qualquer superfície esculpida por torrentes de água, vento e restantes agentes erosivos, ao explorarmos aquela vastidão inóspita, acabamos por admitir que o nome lhe faz justiça.
Há 60 milhões de anos, os Andes tinham completado a sua ascensão aos 6.000 metros e a maior parte do sul do Chile estava coberta de glaciares. Esta região continuava debaixo do oceano. Essa submersão justifica a abundância de campos de sal.
Numa ampla área de geologia excêntrica, sucedem-se dunas cor de canela, miniaturas de montanha ocres em que os elementos escavaram arestas afiadas e pequenos “degraus” sem fim.
Estas elevações dão para desfiladeiros apertados, como os da Quebrada de Kachi. Ou para vales alisados pelo vento, fendidos pelo calor e pela aridez, aqui e ali, inundados de salitre.
Em certas zonas, a cobertura de nitrato de potássio torna-se tão densa que mais parece ali ter caído um forte nevão. O sol é escaldante, a humidade roça o zero.
Avançamos em direcção à Panamericana e ao Pacífico.
Cruzamos o Vale da Morte local, bastante menos escaldante que o Vale da Morte na fronteira da Califórnia com o Nevada. Este, parte da Cordillera de Domeyko e ainda o rio Loa que tem o efeito de enganar quem por ele passa quando a ilusão líquida se desvanece perante a aridez impiedosa da paisagem.
À medida que nos voltamos a embrenhar no Atacama, os Andes ficam para trás. A água doce revela-se uma miragem eternamente adiada. Sem subterfúgios tecnológicos, a sobrevivência fica por um fio. A morte eterniza-se. Tal lógica tem expressões surpreendentes.
Quando, em 1985, os arqueólogos acharam várias centenas de múmias ao longo da costa chilena, custou-lhes a crer no seu estado de preservação e no dos objectos que as acompanhavam.
Os túmulos encontravam-se sob o sol do deserto de Atacama havia mais de meio milénio. Durante esse tempo, a secura extrema anulou a acção das bactérias e impediu a decomposição.
Preservou o legado espiritual de um povo que venceu as probabilidades e se habituou a pagar o preço de viver no limite.