Deixamos os arredores da capital egípcia.
Aladino desliga o aparelho que limitava a velocidade do jipe. Em jeito de magia inesperada das Arábias, liberta-nos para uma viagem pelo Deserto Branco por certo menos segura, mas cumprida num tempo genial. O prodígio cedo se prova imperfeito.
Passada a cidade de 6 de Outubro, já bem a sério no Deserto Branco, o dispositivo dá de si e inaugura um tilintar irritante de alarme que se repetiria ao longo de toda a viagem.
Um pouco antes do meio-dia, aproximamo-nos de uma estação de serviço perdida na vastidão arenosa. Ayman, o guia, avisa-nos que vamos parar para esticar as pernas. Juntamo-nos a uma pequena multidão de outros condutores e de passageiros de autocarros.
Bebericamos chá e café ferventes sem grandes pressas. Ayman abrevia o seu chá e retira-se.
Ao sairmos do estabelecimento para aguardarmos lá fora o regresso à estrada, reparamos que tinha entrado numa sala de orações.
Quando espreitamos, Ayman fazia parte de uma comunidade masculina casual que partilhava um mesmo manto de retalhos atapetado, a direcção de Meca e prostrações alternadas movidas por uma fé inquestionada em Alá a que, tudo assim indicava, não se entregava Aladino.
O crente tarda o que tarda. Dez minutos depois, junta-se a nós. Cada qual revigorado à sua maneira, o duo de cicerones anuncia-nos a segunda metade do trajecto:
“Vamos a isto! Daqui em diante, o deserto vai ficar bem mais deserto.”
El-Bahariya: o primeiro dos grandes oásis
Duas horas adicionais a voarmos baixinho Saaara adentro, chegamos a um dos seus raros e sempre surpreendentes oásis, o de El-Bahariya. Em pleno mês de Dezembro, a temperatura pouco passa dos 20ºC.
Não vemos vivalma estrangeira que seja no Hotel Panorama em que damos entrada, como não se exibia também o cenário desafogado prometido pelo estabelecimento. Instalamo-nos. Descemos logo em seguida e partilhamos um almoço rápido com o duo de cicerones.
Em seguida, o proprietário faz questão de nos mostrar e a Ayman os encantos de El-Bahariya. Sem objeções, enfiamo-nos os três noutro jipe e saímos à descoberta.
Estávamos longe de pensar que, mesmo enquanto oásis que era, o lugar se pudesse revelar tão luxuriante. E, no entanto, o que desvendamos já a 370 km do Cairo é uma incrível excepção da paisagem desolada e rochosa que nos cercava.
El-Bahariya começa por ser uma depressão com 90km por 40 km, envolta de montanhas comedidas e que atrai boa parte da água só na aparência inexistente. Nas suas áreas mais profundas, um palmeiral denso de tamareiras carregadas de frutos desponta do solo.
Irrigam-no nascentes e veios de água, uns subterrâneos, outros que fluem à superfície por riachos e canais que os camponeses daquelas partes manipulam numa rede complexa de pequenos diques, abertos e fechados com uma ou duas pedras ou três ou quatro sacholas de terra.
Caminhos de terra entre o húmido e o ensopado sulcam a floresta. Percorrem-nos lavradores de enxada ao ombro e produtores e fornecedores trajados com jilabas e turbantes que montam burros sobrecarregados com alforges repletos de tâmaras.
No centro urbano de El-Bawiti, os vendedores aguardam-nos.
El-Bawiti: Capital do Oásis de El-Bahariya.
El-Bawiti é a principal povoação do oásis de El-Bahariya. Acolhe 30 mil habitantes wahati (leia-se do oásis), beduínos muçulmanos com ancestrais na Líbia, junto à costa mediterrânica e no Vale do Nilo.
Confessamos a Ayman que adoramos tâmaras. O guia egípcio intercede junto do anfitrião da área para que nos levasse a uma loja onde as comprássemos com confiança.
Num ápice, deixamos a floresta e passamos por uma tal de avenida Sharia Safaya em que, se destaca uma sequência de casas miniatura e modelo de barro, algumas, coloridas, outras no tom natural da lama solidificada.
Entramos numa grelha de ruas de terra mal batida que chuvas recentes tinham tornado menos poeirentas que o habitual.
Delimitam-nas estabelecimentos incaracterísticos: mercearias, lojinhas rurais, talhos, uma casa de chá mal-amanhada frequentada apenas por homens.
Letreiros em árabe e material promocional das multinacionais do costume digladiam-se pelo protagonismo comercial de cada ruela, brandindo os tons mais artificiais e garridos a que puderam recorrer.
De quando em quando, surge uma velha pick-up atafulhada de carga, ou como pudemos apreciar, de passageiras, várias munaqqabat, que é como quem diz enfiadas em abayas e niqabs negros que lhes revelam apenas os olhos.
Estes trajes lúgubres e intimidantes por norma por elas usadas no exterior do lar, onde são contempladas por outros homens, estão longe de merecer a admiração ou até a concordância dos egípcios em geral, além de que a sua propagação gerou apreensão nas autoridades que a interpretam como um sinal de que se alastra tanto o fundamentalismo religioso como o desdém pelo governo do Cairo.
Tâmaras com Fartura
Naquele Egipto profundo por que andávamos, poucas eram as mulheres com que nos cruzávamos. As que víamos, ou vestiam essa mesma combinação de negrume ou outra só algo menos soturna.
Perdidos neste deslumbre, algures entre a antropologia e a moda muçulmana, chegamos à loja de tâmaras que nos fora prometida. Ali, El-Bawiti resplandece de cor.
O letreiro exibe grandes caracteres arábicos verde-azeitona e cianos sobre um fundo branco decorado com tamareiras e montanhas.
As tâmaras, disponíveis em distintos tamanhos e tons de amarelo, castanho e dourado, surgem expostas em pequenos outeiros frutícolas que despontam de caixotes.
Estão à venda naturais, mas também empacotadas, enlatadas, em óleo e sob outras formas menos expectáveis. Seguimos o conselho do vendedor.
Compramos um quilo das recém-chegadas, as mais frescas, as mais melosas. Por volta das seis da tarde, com o sol que as amadurecera já a pingar para trás do palmeiral, regressamos ao abrigo desolado do Hotel Panorama.
O Lado Negro do Deserto Branco
Com a manhã seguinte, chega a hora de prosseguirmos para sudoeste, rumo ao âmago egípcio do Sahara. Acompanha-nos Mahmoud, um jovem beduíno auxiliar do hotel.
Voltamos a deter-nos em El-Bawiti para comprar víveres, incluindo um reforço de tâmaras que, como era de esperar, já tinham levado um enorme rombo desde a tarde anterior. Às dez e meia, deixamos a povoação.
Percorridos apenas cinquenta quilómetros, detemo-nos numa secção do itinerário chamada de Deserto Negro. Subimos a uma das suas muitas colinas vulcânicas polvilhadas de doleritos e quartzitos escuros.
Do cimo, apreciamos a vastidão meio amarela meio negra em redor e a passagem quase insignificante de um ou dois veículos oriundos de um aparente nada, destinados a outro nada, que só reforçam a imensidão envolvente.
Durante essa tarde, por aquele Egipto, cirenaico em tempos romanos, adentro, o deserto assume vários outros visuais, cada qual mais surreal que o anterior.
A roçar as quatro horas, chegamos ao Deserto Branco de Farafra de que, pelo menos Mahmoud afiançava conhecer o suficiente para não nos perdermos.
Fazemos fé na sua promessa.
Deixamos a autoestrada Cairo-Farafra e enfiamo-nos num labirinto de rochas e grandes calhaus disseminados sem aparente fim, um labirinto e deserto do género daqueles que, em 636 a.C. terão desorientado o rei persa Cambises II e o seu exército quando, em plena conquista do Egipto, buscavam o Oráculo de Amón.
Farafra: o portal excêntrico para o Planeta Vermelho
Farafra é a segunda de cinco depressões do grande Deserto Ocidental. Com apenas 980km2, ocupa metade da de Bahariya. A alvura do seu sub-deserto cedo se torna óbvia.
Depósitos de cálcio cobrem o solo ou dele se destacam como esculturas que nos custa acreditar serem meros produtos milenares do impacto de cristais de areia arrastados pelo vento furioso que assola com frequência estas partes.
Os nossos guias rejubilam com a profusão de esculturas de rocha de giz (calcite) que nos indicam com um entusiasmo infantil.
A mais famosa é a “galinha e o cogumelo” também conhecida como “galinha e a bomba atómica”. Uma formação próxima lembra um sorvete. E assim foi denominada.
Outras, têm nomes mais grandiosos e formais. Há “o monólito” e o “Inselberg”.
Fartamo-nos de circular a bordo do jipe.
Quando detectamos uma meseta mais alta nas imediações do que Ayman designara como acampamento, saímos a pé e apontamos ao seu cimo com o sol já a cair sobre o horizonte.
Quando chegamos ao cume, mais que com formas engraçadas, confrontamo-nos com uma incrível imensidão de pedras e rochas polidas assentes no solo manchado de calcite.
Por essa altura do ocaso, o deserto pouco preservava de branco. Aliás, como o dali víamos, não estávamos nem num Deserto Branco nem sequer na Terra.
O panorama ocre-amarelado era – ninguém nos convencia do contrário – marciano. Mais vermelho e marciano ficava à medida que o crepúsculo avançava para o arrebol e submetia as nuvens invernais a uma exuberante incandescência.
Até então, tínhamos estado sozinhos. Sem que o esperássemos, dois outros jipes surgem sabe-se lá de onde e cruzam o cenário inverosímil. Não queríamos arruinar o imaginário extraterrestre.
De acordo, imaginamo-los como Rovers da NASA em missão de exploração.
O Ocaso Aquecido à Fogueira de Farafra
Passada meia-hora, a luz resistente cede ao breu. Descemos da meseta enquanto o podíamos fazer em segurança e caminhámos para junto de Ayman, Aladino e Mahmoud que há algum tempo preparavam o acampamento.
Ajudamos a resolver a falta de iluminação incauta com que o último saíra de El-Bawiti.
Pouco depois, já em volta de uma fogueira vigorosa, partilhamos um jantar com os companheiros egípcios sob o firmamento híper-estrelado.
Ayman faz passar alguma música egípcia no seu telemóvel. Com a banda sonora que escolhera em fundo, tenta resolver um problema bem terreno.
Conta-nos estórias e faz reparos que visam encurtar a distância a que, na sua mente, a religião e a cultura islâmica nos mantinham.
“Sabem que nós, muçulmanos, também acreditamos em Jesus e Maria, pelo menos enquanto personagens históricas.” afiança-nos entre narrativas distintas, outra delas relacionada com a Arca de Noé.
Não tarda, fala-nos dos cantores nacionalistas egípcios que, durante a Guerra dos Seis dias em que o Egipto (e várias nações vizinhas) se confrontaram com Israel, quase só cantavam hinos nacionalistas: “Amo-te Egipto” e outros do género.
O fogo, como as energias de todos, depressa se extinguiu. Nós, Ayman e Aladino recolhemos às tendas. Mais habituado ao deserto, Mahmoud dormiu ali mesmo ao lado, ao relento, apesar das raposas e coiotes que há muito nos observavam, malgrado as suas visitas em busca de comida.
Despertamos antes da alvorada. Por momentos, o cenário volta ao perfil avermelhado de Marte.
Mal o sol se destaca do horizonte, o Deserto Branco reassume a sua brancura e traz-nos de volta à Terra do Deserto Ocidental. Até ao crepúsculo seguinte.
Viagem realizada com o apoio do operador ImageTours. Consulte os Programas do Egipto da ImageTours.