Quando pensamos que temos a geografia e a história da Europa bem assente, Tamo Giorgadze obriga-nos a recuperamos das profundezas da memória um reino da Ibéria caucasiano de outros tempos.
E a rendemo-nos à infinitude do conhecimento.
“Foi como os gregos e os romanos chamaram a esta região que nos deu origem, aos georgianos do leste.” A etimologia nada tem que ver com a da nossa Ibéria. Também a daquelas paragens é tema de várias teorias e argumentações. De qualquer maneira, como acontece com todos, o reino durou o que durou.
“Nós nem sequer nos chamamos Geórgia, isso é para vocês” sublinha Tamo enquanto avançamos pela paisagem campestre entre Mtskheta e Gori.
Para nós, a Geórgia é Sakartvelo, de outro dos nomes contemporâneos da região da Iberia, Kartli. Foram os gregos que começaram a chamar a estas partes Geórgia (do helénico georgicus: agrícola) pela aptidão com que as gentes daqui cultivavam as terras. À imagem de inúmeros termos gregos de então, esse, popularizou-se na maior parte da Europa”.
Seguimos por uma auto-estrada ao longo de um vale amplo, com vista para as fronteiras da recém-rebelada Ossétia do Sul. Ainda é cedo quando desviamos para Gori.
Junto à confluência dos rios Kur Sayi e Liakvhi, a cidade mantém-se sumida numa névoa densa. Insatisfeitos com os seus contornos difusos, decidimos passar antes por Uplistsikhe esperançados numa meteorologia mais favorável para aqueles lados.
Seguimos por um caminho surreal perdido entre florestas ensopadas, aldeolas ribeirinhas e arrabaldes ferroviários ex-soviéticos em plena simbiose com os restantes ambientes. Numa dessas povoações rurais e marginais, idosos com faces rudes entregam-se a conversas demoradas, agasalhados para todas as intempéries.
O Caminho Outonal para Uplistsikhe
Ovelhas e cabras ao deus-dará partilham a estrada com BMWs e Audis importados da Alemanha e mais que usados, troféus de uma emigração esforçada e já quase incontornável entre os jovens georgianos pouco letrados.
Cruzamos um outro rio, o Mtkvari, por uma ponte de ferro rasa sobre uma planície de aluvião vasta. Percebemos então que tínhamos ganho a aposta meteorológica.
Sob a acção do vento e dos raios solares, as nuvens e os retalhos de nevoeiro cedem a um céu que se azula a olhos vistos.
Quando chegamos à entrada do complexo de Uplistsikhe, a luz suave parece incendiar as árvores amareladas em redor. A nós, prenda-nos com deliciosos afagos.
Na margem esquerda do Mtkvari, eleva-se uma encosta rochosa e nua. Ascendemo-la por escadas de madeira e trilhos estreitos até que vislumbramos, ao longe, o edifício mais destacado e emblemático da povoação, uma basílica com três naves.
Aproximamo-nos e Tamo resgata-nos da dispersão fotográfica em que quase sempre nos perdemos em lugares novos.
A Génese Troglodita da Geórgia
Explica-nos que foi erguida no cimo de um fascinante complexo troglodita, com estruturas habitadas e usadas do final da Idade do Bronze aos fins da Idade Média, por culturas da zona da Anatólia e da Pérsia, pagãs e cristãs.
“Cheguem aqui” pede-nos Tamo. “Estão a ver estes pequenos canais esculpidos no solo? Quando vos dizemos que a Geórgia é o berço vinícola do mundo é para levarem a sério. Vejam lá isto! Uplistsikhe esteve no auge nos séculos 9 a 11 d.C. Antes disso, já aqui faziam vinho”.
Além do lagar talhado na rocha, a povoação de quase oito hectares estava dotada de habitações e espaços comunais e cerimoniais ligados por trilhos e escadarias derivados de uma pequena avenida central.
Subimos ao topo dos penhascos, ainda mais alto que a basílica.
Dali, contemplamos o serpentear vagaroso e lamacento do Mtkvari, colorido por arbustos amarelados ou verdes e, sobre uma encosta relvada, a estranha visão de muralhas em ruínas e de uma quinta abarracada contígua, ainda operacional mas que aparentava para sempre perdida no tempo.
Entretanto, abandonámos Uplistsikhe. Tamo fez questão que o fizéssemos por um túnel “secreto” que nos conduziu de volta à entrada do complexo por profundezas rochosas e tenebrosas do Cáucaso.
Gori e o Seu Polémico Filho Joseb Stalin
À saída, o dia revelou-se radiante. Impunha-se que regressássemos a Gori para verificarmos se também por lá a neblina havia levantado, o que se confirmou.
Para os georgianos, Gori é sinónimo de um homem. Nasceu na cidade com o nome de Joseb Jughashvili, filho de um sapateiro e de uma empregada doméstica. Enquanto criança e adolescente, Joseb padeceu de vários males e traumas.
Teve dois dedos do pé esquerdo unidos, a face repleta de cicatrizes devido a varíola e o braço esquerdo mais curto e rígido que o direito por causa de um acidente com uma charrete.
O seu pai, Besarion, tornou-se alcoólico e violento para com a pequena família e não tardou a perder o negócio modesto que mantinha. Ketevan Geladze – a mãe de Joseb – entregou o filho a um mosteiro ortodoxo.
Quando o marido descobriu, enlouqueceu, e atacou o chefe da polícia de Gori. Acabou banido da cidade, onde abandonou a mulher e o descendente.
Por essa altura, ninguém apostaria um rublo que fosse em Joseb. O percurso do rapaz veio a surpreender tudo e todos ao revelar-se um líder revolucionário determinado e maquiavélico.
A Inexorável Ascensão no Partido Comunista Soviético
Quando Vladimir Ilitch Lénine formou a facção Bolchevique do Partido Marxista Trabalhista, Joseb alistou-se. Pouco depois, adoptou o nome de Joseph Stalin nos seus escritos. Provou-se eficiente em quase todo o tipo de funções intelectuais e práticas, desde escrever e distribuir propaganda a angariar fundos através de extorsões, roubos e assassínios.
Após a Guerra Civil Russa de 1917-19 e vários confrontos ideológicos com o rival Leon Trostky, Estaline obteve o apoio do cada vez mais enfraquecido Lenine para a nomeação de Secretário Geral do Partido Comunista da União Soviética. Não tardou a conquistar um poder quase absoluto.
Nos primeiros momentos, contra a vontade do próprio Lenine com quem, entretanto, também entrou em ruptura. Esse poder vigorou de 1922 a 1952. Como é hoje sabido, Estaline exerceu-o de forma tão cruel que causou a morte de milhões de compatriotas de várias repúblicas da U.R.S.S., e de tantas outras vítimas de outras pátrias durante conflitos militares imperialistas e expansionistas.
Já tínhamos estado em diversos lugares ex-soviéticos em que aquela personagem sofrida e, não tardaria, carismática, manipuladora e déspota deixara rasto. Na sua Gori natal, tínhamos como plano compreendê-lo um pouco melhor.
O coração da cidade ainda é de Estaline apesar da campanha do Kremlin de 1960 para o banir da memória, dos bombardeamentos russos de 2008 durante a guerra Russo-Georgiana e agravamento da inimizade da nova Geórgia face aos poderosos vizinhos do norte.
Entre o Saudosismo Soviético e o Ódio Georgiano do Agressor Russo
Apenas em 2010 – 58 anos após a inauguração – o presidente pró-Ocidental georgiano Mikheil Saaskashvili ditou a remoção do meio da Praça Estaline da estátua que há tanto tempo homenageava o tirano soviético. Saaskashvili proclamou então: “um memorial a Estaline não tem lugar na Geórgia do século XXI”.
Outro político do seu governo acrescentou que os pedidos nesse sentido tinham aumentado exponencialmente desde o início da agressão militar russa à Geórgia. Uma agressão despoletada pelo apoio do Kremlin às pretensões de secessão dos territórios da Ossétia do Sul e da Abkhazia.
Ambos com as suas próprias maiorias étnicas ossetas e abkhazes pró-russas mas muitos milhares de habitantes russos e substancialmente ainda mais georgianos – face à recém-independentizada Geórgia.
Mesmo assim, quando percorremos o cerne de Gori, deparamo-nos com uma enorme avenida, praça, um museu tripartido composto por um palácio em estilo gótico estalinista, pela casa de Gori da família Jughashvili, pela carruagem ferroviária particular Estaline que usava para viajar para todo o lado por ter um receio paranoico de atentados contra si em pleno ar e por isso, se recusar a voar.
Destas, o palácio concentra a grande parte dos elementos. É por lá que começamos e podíamos examinar o seu interior durante meses a fio tal é a panóplia de mapas, pinturas, esculturas, mobília e objectos.
Incluindo o famoso telefone vermelho (que não era obviamente vermelho) e outros que alegadamente lhe pertenceram, muitos deles ofertas curiosas feitas por chefes de estado e instituições dos quatro cantos do mundo.
Este património surge organizado numa ordem cronológica aproximada. É guardado por senhoras georgianas de visuais a condizer com a herança soviética e enfadadas pela monotonia das suas longas clausuras naquele passado caduco.
Subimos a escadaria de mármore a partir do piso térreo e entramos na segunda das salas. Uma das guias residentes narra episódios da vida de Estaline em russo, a uma das famílias russas que, malgrado o conflito de Agosto 2008, se sentem uma vez mais confortáveis de visita à Geórgia.
Mais à frente, o sol entra fulminante pelos vitrais coloridos de uma janela. Ilumina o cabelo ruivo e a pele alva de uma outra guardiã do museu, trajada de casaco de peles e botas de cano alto.
Sentada sobre uma cadeira de feltro, esta derradeira funcionária da ala faz companhia ao ditador, ali retratado num fato militar feijão-verde e refastelado no seu próprio cadeirão de madeira.
Logo ao lado, numa sala bem mais lúgubre, Estaline surge só, exposto num antro lutuoso, composto pelas suas máscaras de morte, pinturas e esculturas fúnebres, entre outros.
Pouco depois do ataque russo à Geórgia do Verão de 2008 que fez várias vítimas em Gori, o ministro da Cultura anunciou que aquele mesmo museu que então explorávamos seria reconvertido no Museu da Agressão Russa.
Alguns anos mais tarde, foi colocada uma faixa à porta que proclamava: “este museu é um exemplo típico de propaganda Soviética. Procura legitimar o regime mais sanguinário da história”.
Nos últimos dias de 2012, a assembleia municipal de Gori boicotou qualquer alteração ao nome. Algum respeito pelo filho notório da cidade parece ser ainda sentido pelo menos pelos mais velhos.
O Legado Prolífico do Conterrâneo Estaline
Sejam quais forem as culpas que arca, Estaline preserva o seu lugar em Gori incluindo num dos maiores supermercados da cidade, em que uma sua imagem sovietizada surge em destaque logo acima da porta de entrada e em inúmeros souvenirs à venda no interior.
Durante os dias que com ela passámos na Geórgia, a própria Tamo acabou por nos desabafar sentimentos contraditórios na sua família quanto aos tempos soviéticos, fossem ou não os de Estaline. “Os meus pais e as pessoas da idade deles têm saudosismo da U.R.S.S.
E, acreditem ou não, muitos deles, respeitam o Estaline. Nessa altura, havia sempre trabalho e era tudo comunal. Não havia era em que gastar. Quando nos chegavam caramelos e rebuçados da Turquia era como se fosse Natal. Era tão raro! Depois, veio a independência.
A Geórgia entrou num completo caos. Os meus pais não tinham trabalho. Não havia luz nem aquecimento. Entretanto, mudou o presidente, tivemos apoio da União Europeia e tudo melhorou, até que em 2008, a Rússia entrou em cena e nos voltou a amaldiçoar as vidas. A Geórgia é um pequeno país que há muito todos os vizinhos querem controlar, principalmente os Russos, claro.”
Malgrado, os óbvios progressos da sua pátria, o que nos conta não nos espanta. Por breves momentos, tentamos comparar a velha realidade vermelha com aquela que se seguiu e percebemos que a estabilidade e a suficiência gerem mais nostalgia que uma liberdade crua desamparada.
Sem que fosse óbvia a associação, a mim – Marco C. Pereira – em particular, veio-me, de imediato, à mente a esfrega ideológica a que o meu falecido avô materno – que era um comunista orgulhoso – me submeteu tinha eu aí uns 16 anos, durante um malogrado jogo de futebol U.R.S.S. – Portugal.
Os soviéticos golearam-nos por 5-0. Por volta do quarto golo, só lhe faltava um megafone para me encher mais os ouvidos: “Vês? Aprende que aquilo é que é um país a sério.”