Uma viagem de autocarro leva-nos da atarefada Caracas ao principal interface rodoviário para o destino final.
Maracay tem pouco que descobrir. Mesmo com algum tempo antes da próxima ligação, pouco depois de o deixarmos, regressamos ao terminal em busca de um qualquer poiso refrescante.
Encontramo-lo na pequena casa de sumos do senhor Manuel que, saudoso das origens madeirenses, exibe no seu negócio vários pósteres da Pérola do Atlântico.
Bebemos misturas destemidas de frutos tropicais. Conversa puxa conversa, aprofundamos a origem do proprietário:
“pois eu venho de Porto Moniz, na ponta da costa norte da Madeira, não sei se conhecem? Se virmos bem as coisas, os cenários por lá, nem são assim tão diferentes de onde vocês vão agora. É o mesmo tipo de montanha íngreme coberta de vegetação e o mar logo ali por baixo. Quer dizer… para os lados de Puerto Colombia, as praias são praias a sério. Grandes areais, coqueiros, mar cristalino. É um pouco diferente. Vão adorar. Não tarda estão lá dentro de água.”
De Um Lado ao Outro da Cordilheira da Costa
Despedimo-nos. Metemo-nos no autocarro seguinte que nos havia de conduzir às povoações históricas no interior do Parque Henri Pittier.
Desde uma visita anterior à Guatemala que não víamos, nas Américas, um autocarro tão colorido e folclórico como aquele, pintado por fora em vários tons de azul e amarelo e decorado, no interior, com artigos decorativos, bibelôs e um sortido colorido de penduricalhos de pára-brisas.
Aproxima-se um fim-de-semana. O veículo enche-se de famílias veraneantes oriundas de Caracas de Maracay, até da Ilha Margarita.
Assim que a lotação se esgota, o motorista parte montanha a cima, com uma condução feroz que, apesar de entrarmos num santuário da natureza, contempla buzinadelas ensurdecedoras a cada curva do estreito percurso.
Não foi, por certo, o que cientista suíço Henri Pittier imaginou, em 1916, para a selva por que se apaixonou.Já nos seus anos de vida – principalmente a partir dos anos 30 do século XX – se sentia incomodado pelo crescente desrespeito humano pelo lugar.
A Luta Pelo Ecossistema da Cordilheira da Costa de Henri Pittier
Henri Pittier decidiu ficar e lutar pela causa. Fez de uma velha habitação de uma fazenda de café a sua moradia.
Após grande resistência aos infractores e persistência diplomática, obteve do presidente da altura, General Eleazar López Contreras, a criação oficial do primeiro parque nacional da Venezuela, então chamado Rancho Grande.
Hoje, o Parque Nacional Henri Pittier ocupa uma vasta área do estado de Áragua e do litoral venezuelano, ao longo das montanhas abruptas da Cordillera de la Costa.
Esta cordilheira foi levantada por movimentos tectónicos intensos.
Destacam-se do fundo do mar aos 1800 metros de altitude do Pico Paraíso e aos 1900 do Guacamaya. Nestas alturas, malgrado a latitude quase equatorial, a temperatura baixa aos 6º e caem algumas das chuvas mais diluvianas do país.
Como na maior parte da Cordillera, a precipitação e a névoa residente mantêm a flora nativa luxuriante e diversificada, dominada, por árvores majestosas, com copas frondosas que roubam ao solo a luz solar.
A fauna não fica atrás.
O parque tem, em El Portachuelo, o principal desfiladeiro de passagem de cerca de 520 espécies de aves migratórias e muitos mais insectos (entre os quais dezenas de tipos de mariposas) na rota de voo que os leva da América do Norte para a do Sul
É algo que atrai, todos os anos, às estações biológicas locais, milhares de ornitólogos ávidos por estudarem os pássaros mais raros ou simplesmente mais belos, como o formigueiro ou o japu-preto.
Choroni, Puerto Colômbia: Entre a Cordilheira e o Mar das Caraíbas
Choroní e Puerto Colombia surgem abrigadas no sopé marinho da cordilheira. São as povoações mais importantes do parque. Deixamos o autocarro na última delas e lá procuramos hospedagem.
De origem colonial, meio perdidos no tempo, separam os dois pueblos meros 25 minutos a pé, sempre a subir ou 15 a descer. A distância continua a desempenhar um papel crucial nas suas distintas identidades.
Choroni preserva intacto o casario colonial castelhano térreo e colorido, construído, em 1616, logo após a sua fundação pelos ocupantes espanhóis.
Os colonos apressaram-se a dominar os índios homónimos locais e fizeram expandir a povoação serra abaixo. Mais tarde, dotaram-na de escravos trazidos de África.
Virgílio Espinal, em Modo de Discípulo de Pittier
Não nos atrevemos a considerar Virgílio Espinal um discípulo de Pittier, longe disso.
E, no entanto, o guia apresenta-se como um sério adepto da natureza da região e confessa que se sentia à vontade no meio daquela selva íngreme. Contratamos os seus serviços sem hesitar. Seguimo-lo horas a fio.
Quilómetro atrás de quilómetro, sempre de catana na mão, este aragueño quarentão abre-nos caminho pela vegetação densa com incrível fluidez.
Virgílio já tinha vivido e trabalhado no Brasil. Faz questão de connosco praticar o seu português hispânico-abrasucado: “Rapazes, estas raízes podem chegar aos dez metros e só à superfície.
Percebem porque as árvores de cá passam facilmente os 50, 60 metros de altura, mesmo a crescerem sobre uma superfície inclinada? Está húmido não está? Vá, não se queixem.
No fim levo-vos a comer as melhores empanadas aqui da zona.
Entretanto, regressamos às terras baixas e rumo à fiesta que se disseminava como um vírus entre os nativos, os caraqueños e alguns expatriados de Puerto Colombia.
O Litoral Rumbero de Puerto Colombia
Música latina para rumbar e cerveza são tudo o que qualquer venezuelano anseia depois de um dia de cartas ou à conversa na acolhedora Playa Grande.
Os forasteiros, esses, ajustam-se à onda e exploram a sua faceta caribenho-reggae desconhecida. Passados alguns dias, muitos já se comportam como qualquer indígena e dançam ao longo do malecon ao ritmo dos tambores e das maracas.
Antes de nos juntarmos à celebração. Ainda temos tempo de subir à colina do Mirador del Cristo de Choroni.
Dali, admiramos o Mar do Caribe entrecortado pelos promontórios mais avançados da cordilheira, onde em tempos se abrigavam os piratas.
Admiramos o céu acima a rosar-se e arroxear-se, percorrido por fragatas velozes e bandos alinhados de pelicanos.
Na descida, uma vendedora tropicaliente de bebidas sugere uma recompensa merecida pelo esforço da subida, nos modos ternurentos próprios das mulheres venezuelanas: “si mi amor? Te sirvo un refresco?”
Na manhã seguinte, as primeiras horas pertencem aos pais e às crianças que, carregados de geleiras, rumam aos areais brancos do parque até então, entregues à floresta de coqueiros.
Os mais preguiçosos ficam-se pela tal Playa Grande.
Outros clãs de exploradores veraneantes encontram ponto de partida no molhe situado ao lado do malecon, de onde saem em permanência peñeros em direcção a Chuao, Valle Seco e a Uricao, pequenas povoações e praias acessíveis apenas por mar. Juntamo-nos a estes últimos.
Chuao, Valle Seco, Uricao: Enseadas de Sonho na Base da Cordilheira
Doca, lota e molhe partilham a enseada que se prova-se demasiado apertada e proporciona um embarque caótico.
Ali, enquanto os pescadores descarregam e negoceiam os peixes recém-capturados, os pelicanos oportunistas tentam apreendê-los.
Numa área de negócio distinta, os donos das embarcações apregoam os seus destinos aos gritos, regateiam preços e apressam grupos de passageiros impingidos uns aos outros para optimizar o fluxo das saídas e os lucros.
Apesar de costeiros, os percursos feitos pelos peñeros são batidos por grandes ondas e férteis em emoções.
Para compensar, Valle Seco e Uricao prendam-nos com retiros balneares exóticos e relaxantes, perdidos entre cactos e pouco ou nada povoados.
Em Chuao, voltamos a retroceder no tempo. Caminhamos entre as plantações de cacau históricas para ali trazidas pelos colonos hispânicos.
No regresso, confraternizamos com os descendentes dos seus escravos enquanto estes peneiram a última das colheitas no pátio da igreja que a aldeia usa como eira.