Tataouine ganhava nova vida.
Milhares de almas do deserto do Sara, provenientes dos quatro cantos do Magrebe e do Egipto, instalavam-se na povoação
Chegavam por terra, em carrinhas cobertas de poeira fina. Ou em voos curtos provenientes das nações vizinhas. Formavam comitivas desorganizadas e barulhentas que se instalavam um pouco por toda a cidade e arredores, de tendas de inspiração beduína aos hotéis mais luxuosos.
Os nativos de Tataouine estão habituados à esta invasão anual dos visitantes. Identificam com facilidade as origens dos visitantes. Saúdam-nos com salamaleques efusivos e apertos de mão repetidos.
O Mundo (Por Essa Altura ainda Mais Extraterreno) de Tataouine
Não estamos assim tão longe da Europa mas estas portas do Sara estabelecem ainda uma fronteira de exotismo que era famosa em tempos coloniais.
Os franceses partiram da Tunísia no terceiro mês de 1956. Por terras gaulesas, “aller à Tataouine” continua a significar perder-se no fim do mundo. Sem saber como nem porquê, George Lucas conseguiu ridicularizar a expressão.
Filmou parte substancial do episódio IV da Guerra das Estrelas na região circundante. Quando teve que baptizar um remoto exoplaneta das areias para a saga, optou por Tatooine.
Enquanto avançamos do centro da capital de província para o hipódromo que acolheria vários eventos do festival, Tataouine parece-nos realmente de outro mundo.
Uma vasta zona de baixas-pressões resiste sobre o centro e norte de África. Estende-se do interior do Senegal, Mali e Níger até à Sicília e à Sardenha.
O manto de nuvens cúmplice rouba o sol escaldante a grande parte do Sara. Em simultâneo, vendavais revolvem as dunas do deserto e pintam a atmosfera do sul da Tunísia de um tom sépia algo marciano.
Atletismos, Corridas de Cavalos, Acrobacias, Danças e Afins
Zulia, uma anfitriã do evento recebe-nos em frente ao hipódromo. Após os devidos cumprimentos, faz questão de avisar: “Está prestes a começar uma corrida. Andem por aí à vontade mas tenham cuidado com os animais. Alguns sentem a excitação no ar e podem dar coices ou morder”.
Não levamos a coisa demasiado a sério. Circulamos entre camelos e cavalos a que os proprietários e os jóqueis dão os derradeiros cuidados. Um veterinário de serviço inspeciona-os com minúcia e tira notas num bloco com páginas pré-formatadas. Está visto que as provas não são a brincar.
Passamos para o interior do recinto. Damos com as bancadas repletas de um público agasalhado e curioso que acompanha a chegada à meta dos primeiros classificados de uma meia-maratona. Atrapalham-nos camelos foragidos que teimam em não abandonar a pista.
Os prémios são entregues com pompa e circunstância.
Logo após, têm início exibições de acrobacias montadas que entusiasmam a multidão: cavaleiros que galopam virados para trás. Outros que deles se dependuram e apanham terra do chão. Tudo ao som de tambores e flautas do deserto tocados ao vivo. Tudo narrado em directo por uma repórter radiofónica equipada a rigor.
Entretanto, um exército de peões trajados de jilabas toma conta do recinto. Alinham-se no extremo oposto à bancada a empunharem bandeiras vermelhas e brancas, – as cores da Tunísia.
Assistem à acção oferecida por cavaleiros que galopam de um lado para o outro, a simularem antigas batalhas históricas a que Lawrence das Arábias preferia não ter faltado.
Sem que o esperássemos, tornamo-nos vítimas do confronto.
Perigosos Disparos de Pólvora Seca e os Tuaregues Líbios
Os cavaleiros haviam recebido ordens para dispararem quando se cruzassem em frente ao centro da bancada.
Alguns fazem-no contra o solo, demasiado próximo dos fotógrafos e do público. Ficamos meio surdos.
Como se não bastasse, somos atingidos por pequenas pedras projectadas do chão que nos provocam feridas ligeiras no pescoço e na face. Esses estilhaços e deixam uma espectadora a chorar, com perda momentânea de visão.
Recuperamos do incómodo. Um comentário sarcástico de um colega inglês devolve-nos o bom-humor: “São assim os guerreiros do deserto! Se os tivessem deixado usar pólvora a sério, por esta altura estávamos todos mortos!”
Pouco depois, entra em cena uma milícia tuaregue líbia. Os seus trajes negros, as bolsas vermelhas a tiracolo e os turbantes e véus que lhes revelam apenas os olhos impressionam-nos.
Sentimo-nos intimidados mas, ao mesmo tempo, aliviados. Como armas, usavam apenas punhais. Só com muito azar sofreríamos novos danos.
Uma Já Esperada Apoteose Presidencial
Nos últimos anos e até à revolução tunisina, o grande evento do hipódromo era encerrado em apoteose.
Levava-o a cabo uma multidão de participantes e figurantes que exibiam ao público uma fotografia emoldurada do ex-Presidente Ben Ali, entre bandeiras ondulantes da Tunísia e gritos de apoio incondicional. Isto, enquanto o locutor de serviço assegurava uma longa ovação de pé.
A realização do Festival dos Ksour de 2012 esteve em dúvida. Foi recentemente confirmada pelos representantes da Associación des Diplomés du Superieur, pela primeira vez encarregada de supervisionar a organização. Ben Ali já não esteve presente, nem em pessoa nem em imagens.
No dia seguinte, o Festival dos Ksour passa a itinerante. Afasta-se da cidade e visita os ksour considerados mais importantes da região.
A Fascinante Itinerância do Festival dos Ksour
Viajamos quase 20 km. Até que damos com uma multidão de pedestres de beira de estrada.
Como nós, dirigiam-se para o ksar de Guermassa, situado num cenário extraterrestre ainda e cada vez mais alaranjado, entrecortado por mesetas longínquas. A subida para o topo da colina deixa bem claro porque o povo berbere ali instalou a sua fortificação.
Pelo caminho, informam-nos que está prestes a começar o espectáculo dos aldeãos. Chegamos extenuados mas a tempo de ouvir a música introduzir as danças, protagonizadas por um coro de mulheres trajadas com haiks folclóricos e lenços vermelhos que cobrem as cabeças coroadas por tiaras douradas.
Indiferente à agitação humana, um camelo altivo, também enfeitado, espreita por cima deste grupo.
Ao nível do solo, dois anciãos de jilabas brancas protagonizam uma estranha dança bélica.
Circulam num sentido e no outro. As velhas espingardas que mantêm em riste fazem-nos lembrar ponteiros de relógio. Da forma que os manuseiam, os guerreiros de idade, renovam provocações dramáticas e perseguições lentas e contidas.
Quando a exibição termina, mudamo-nos para o ksar Ouled Soultane.
O Castelo de Areia Sumptuoso de Ouled Soultane
Ouled Soultane é um dos castelos de areia mais sumptuosos do Magrebe. Agrupa duas estruturas de ghorfas (células de armazenamento de alimentos) construídas em alturas diferentes (séculos XV e XVIII) e repartidas por quatro ou cinco andares.
Também aqui os aldeões organizaram uma recepção calorosa aos visitantes. Contempla degustação de comida tradicional, música e danças e uma reconstituição do que se crê ter sido a existência das tribos berberes que habitavam o ksar.
Dois outros anciãos encontram-se. Trocam um abraço interminável que nos parece pôr cobro a uma longa separação.
Perguntamos o porquê de tanta emoção a um organizador que fala francês.
O anfitrião explica-nos com orgulho: “Nunca foi fácil por estes lados. Agora a Tunísia é predominantemente árabe mas já foi berbere. A partir da altura em que os primeiros exércitos islâmicos aqui chegaram, as incursões tornaram-se frequentes e, sempre sob ameaça, as tribos habituaram-se a dar valor à amizade e à solidariedade.
Foram valores que nunca mais se perderam. Estes cumprimentos são apenas uma das suas expressões. Não pensem que só acontecem nestes dias.”
Acompanhamos o festival até o fim e percebemos melhor a honra porque se rege o evento: malgrado todas as adversidades, os povos indígenas do Sara não salvaram só os ksour.
Ao manterem os seus castelos na areia, preservaram as suas identidades.