À letra, o termo Fianarantsoa é traduzível como “a cidade onde se aprende o bem” ou “o lugar em que se pode aprender algo de bom”. Logo na primeira vez em que a contemplamos, o casario secular da sua zona suprema e mais antiga, sugeriu-nos uma Coimbra exótica e antípoda, uma “lição de sonho e tradição…” malgaxe que não estávamos dispostos a perder.
Como Coimbra, Fianar – assim é tratada com carinho especial – desenrola-se encosta de Ivoneana abaixo até às margens dos rios que fluem pela sua base, o Tsiandanitra, o Mandanofotsy. Ocupou o espaço de uma antiga aldeia betsileo com esse mesmo nome, traduzível como “onde os mortos são escondidos”.
Situada a uma altitude média de 1200 metros, Fianarantsoa mantém-se dividida em três níveis históricos e urbanísticos fáceis de destrinçar: a Cidade Alta ou Velha, o âmago da sua origem, onde se concentra a maior parte dos edifícios tradicionais.
A Cidade Colonial disposta sobre a colina vizinha de Tsianolondroa e que acolheu quase todos os edifícios administrativos construídos durante a soberania francesa, entre 1894 e 1960. Por fim, a Cidade Baixa, disseminada pela alternância de pequenas colinas e vales em redor.
Mesmo se a sua mentora Ranavalona Iª se afirmou como avessa à influência e prepotência da França e da Grã-Bretanha – e ainda mais à Cristianização tentada pela London Missionary Society no reino do seu antecessor Radama I – a imposição colonial (francesa) e o proselitismo cristão que lhe veio agregado, não tardaram a triunfar.
Escadarias, Igrejas e Muita Fé
Assim se explicam as quase cinquenta igrejas protestantes, luteranas e católicas que lá existem, na maior concentração de toda a grande ilha de Madagáscar e a sucessão de fiéis nos seus melhores trajes que encontramos enquanto subimos a escadaria de cimento que conduz aos píncaros da Cidade Velha, e ao cirandarmos pelas ruelas e becos que a servem.
Entramos num dos templos protestantes que acolhia missa, a igreja FLM Trinitie Masombahoaka, de 1859. Lá damos com uma cena eucarística que nos seria em tudo familiar, não fossem os crentes deixarem livre uma ampla frente de assentos que os mantinha distantes tanto do altar como do coro instalado à sua direita.
A missa termina com os fiéis a saírem ordeiramente pela coxia central, escoltados pelo padre e acólitos que se colocam à saída do templo, a jeito de se despedirem do rebanho.
Lá fora, outros fiéis mais vencem os degraus largos da escadaria Rabaut St. Etienne e os pisos antigos e algo irregulares da Rue du Rova.
O Dia a Dia Secular de Fianarantsoa
Mas nem só de fé vive a Cidade Alta de Fianarantsoa. Por aqueles mesmos lados, um grupo de mulheres em animada galhofa castiga a roupa suja das famílias num lavadouro público na base da colina.
Um jovem morador de um dos lares tradicionais de tijolinho e reboco em tons pastel, estende alguma sua roupa enfiado numa t-shirt CR7 apertada da selecção portuguesa que combina com uma imitação grená de ténis All Stars.
Na base da Cidade Alta e da pirâmide social de Fianarantsoa, vendedores campesinos provenientes das aldeias em redor, tentam ganhar a vida num mercadinho de chão improvisado contra uma de tantas paredes ocres de adobe.
Lá dispõem sacas de arroz da sua última colheita, bananas, ananases, amendoins, tomate, outros vegetais. Parte deles partilha as feições indomalaias e o tom de pele caramelo que os migrantes trouxeram daqueles lados da Ásia para a maior das ilhas africanas crê-se que em redor do século V d.C.
Os Merinos no Cume do Mosaico Étnico Malgaxe
Outros, têm peles muito mais escuras e traços do rosto menos refinados. A diferença, bem como o padrão colorido e de manta de retalhos que usam como uma espécie de moda rural, deixa-nos intrigados quanto à sua etnia.
Naquele momento, não tínhamos por perto o guia e condutor Lalah Randrianary, ele próprio um merino de pele quase branca e olhos ainda algo rasgados. Ponderarmos por conta própria, um sentido para a genética daquelas gentes seria, à partida, uma missão impossível.
Preferimos resignar-nos ao facto de serem dezoito os povos principais e oficiais que dividem entre si Madagáscar. E que, como seria de esperar, com o passar dos tempos, estes povos se amalgamaram em algo que já só pode ser qualificado como malgaxe.
Compramos bananas a duas das vendedoras, tagarelamos um pouco sobre já nem sabemos bem o quê. O suficiente para lhes cairmos nas graças e nos deixarem fotografá-las ainda que naqueles preparos que – para tal nos alertaram vezes sem conta – não eram dignos do nosso trabalho.
Acima e Abaixo das Ruelas Íngremes de Rova
Voltamos a apontar para o cimo. Na praceta que faz de preâmbulo à rampa que lá conduz, uma placa gasta indica a direcção do “Centre de Santé de Base Niveau de Rova”.
Antecede-a um parque de estacionamento espontâneo ocupado por carros e carrinhas de cores garridas, quase todos franceses. Lá se destacam pela sua madurez e exuberância cromática duas Renault 4L, entre Clios, Peugeots 205 e afins.
Alguns miúdos pedem dinheiro dizem-nos que para cadernos da escola. Na dúvida quanto ao destino da verba, compramos-lhe um conjunto deles. Assim nos rendemos ao seu plano de abordagem que incluía realizar o peditório à entrada da papelaria mais próxima e conveniente da zona.
Uma jovem mãe surge à porta de uma loja de artesanato com o seu bebé pesadão ao colo, entre chapéus coloridos de palha e um cesto metálico em que vende ovos avulso.
O Mirante Conveniente do Cimo de Fianarantsoa
Nessa derradeira ascensão da Rue du Rova, cruzamo-nos com mais crentes, desta feita, vindos da igreja protestante de FJKM Antranobiriky, apontados à semi-base da colina de Ivoneana de que se destaca a catedral d’Ambozontany, a maior das igrejas de Fianar, pelo menos no que à Cidade Velha concerne.
Subimos ao topo da colina, lugar de um palácio mandado erguer em 1830 por Rafaralahindraininaly um dos governadores da cidade, na vigência de Ranavalona Iª.
Um reservatório de água vedado impede-nos de o explorar como merecia. Para compensar, o cume desvenda-nos vistas sobre a Cidade Baixa e sobre as colinas e vales verdejantes que a envolvem.
Nem ali nos falta a companhia. Uma espécie de gang de miuditos arejados e bem-dispostos aparece do nada. Perguntam-nos o que andamos ali a fazer e apontam-nos alguns dos sítios lá em baixo que conseguem identificar.
Uma das miúdas, provavelmente a mais velha, carrega uma criança com um ano e meio, no máximo dois anos. “É o meu bebé, agora, sabem. Os pais dele desapareceram. Eu é que tomo conta dele.”. A mensagem, directa e genuína, à boa moda juvenil, comove-nos e deixa-nos quase sem jeito.
Pelo menos, até que uma das jovens amiga intercede e brinca com a criança e com a mãe adoptiva, com uma sensibilidade bem mais madura do que a sua face pueril deixaria adivinhar.
Com o passar das horas e os sucessivos contactos, começámos a sentir que as gentes de Fianar de todas as idades, partilhavam uma mesma subtileza do ser, um tacto e bom-senso vivencial com o seu quê de contagioso. Tendo em conta a história da cidade, tais atributos pareciam-nos tão inesperados como explicáveis.
Ranavalona Iª – a Rainha Avessa a Interferências Coloniais
Como puderam testemunhar os emissários franceses e britânicos, Ranavalona Iª, a fundadora de Fianarantsoa não brincava em serviço e fazia questão de o deixar bem claro: “A todos os europeus, ingleses ou franceses, em reconhecimento do bem que fizeram ao meu país ao ensinarem a sabedoria e o conhecimento, exprimo-vos os meus agradecimentos….
E declaro-vos que podem seguir os vossos hábitos, não tenham receio porque não tenho qualquer intenção de os modificar….” Agora repare o leitor no aviso que se segue: “mas se eu vejo qualquer um dos meus súbditos querer mudar o que seja das regras estabelecidas pelos grandes doze reis meus ancestrais, isso nunca permitirei…. Assim, no que diz respeito à religião, seja ao Domingo, seja durante a semana, os baptismos e comunhões, interdito os meus súbditos de neles tomarem parte deixando-vos livres vocês, europeus de fazerem o que quiserem”.
Senhora de um nariz imperial, Ranavalona Iª não tardou a dotar a sua capital do sul de instituições académicas que atraíram mais e mais intelectuais do reino, uns professores, outros nem por isso. Após a sua morte, o seu filho Rakotosehenondradama sucedeu-a enquanto rei Radama II.
Por mais filho que fosse, Radama II desprezava o isolacionismo e anti-europeísmo da progenitora. Provou-se um monarca fortemente francófilo que admitiu que, às escolas e outras instituições académicas, se juntassem as religiosas e culturais que perduram e proliferam na cidade.
Aos poucos, Fianarantsoa resplandeceu de conhecimento e de fé. Ao que se veio a juntar o trunfo não menos francófono de se ter tornado o centro vinícola e gastronómico da grande ilha de África.
A Relação Bipolar com Ravanalona Iª os ex-colonos Franceses
Durante a década de 50, o povo malgaxe passou pelo processo independentista comum a todas as colónias africanas.
Ainda que os franceses mantenham o seu cunho histórico em Fianar e em Madagáscar em geral, de cada vez que a nação se vê ameaçada por intrusões pós-coloniais excessivas, é comum os malgaxes da cidade (e não só) exaltarem a referência da cruel soberana Ranavalona Iª, não a do descendente quase gaulês Radama II.
Isto, apesar de a rainha ter assegurado o seu reinado de 33 anos e 15 dias após mandar assassinar todos os regentes que a ameaçavam na sucessão do recém-falecido marido: outras mulheres, filhos e até a sua própria mãe, de ter torturado e assassinado inúmeros súbditos malgaxes mas também estrangeiros.
E de muitos malgaxes discordantes tratarem a sua vigência por “tany maizina” ou “os anos de escuridão”.
Na madrugada seguinte, conduzidos pelo nativo Lalah Randrianary embarcamos noutro dos contributos europeus que Ranavalona Iª teria permitido e agradecido: o Fianarantsoa-Côte Est railway.
Este caminho de ferro foi construído pelos franceses em dez anos (1926 – 1936) para ligar, em 162 km, o planalto em que se expande Fianar ao litoral tropical da costa leste da ilha. O TGV (Train à Gran Vibrations) malgaxe demorou quase 40 horas a cumprir o percurso. Fianarantsoa quase entrava noutra era.