Nos dias que correm, Banaue carece do encanto folclórico que lhe conferiram, em tempos, os seus antepassados de etnia ifugao que há muito se instalaram nestas paragens.
Quando os visitantes ali chegam, depressa censuram a colónia decadente de edifícios com telhados de lata enferrujados. Encontram-se melhores motivos fotográficos por perto.
Alguns, como os avistados do famoso viewpoint nos arredores da cidade ficam apenas a uma hora a pé ou bastante menos num veículo motorizado mas, até que a fuga para o verdadeiro campo da cordilheira se consuma, a realidade abarracada da povoação cria algum desconforto e a poluição gerada pela frota local de tricyles e jeepneys – os últimos, jipes da 2a Guerra Mundial que os filipinos transformaram no meio de transporte nacional – sufoca qualquer pretensão ecológica.
Em jeito de compensação, a cidade é central. O alojamento e as refeições mantêm-se autênticas pechinchas se comparadas com as de outras paragens turísticas das Filipinas. Além disso, os estrangeiros sabem ao que vêm. Por norma, após uma tarde de preparativos logísticos e uma noite de descanso, partem em busca das vistas grandiosas da região.
A negociação em que nos metemos é bem mais curta do que prevíamos. São muitos os moto-triciclos a circular por Banaue. Cada proprietário tem que se esforçar para conseguir um número aceitável de viagens por dia e a sua subsistência. Os filipinos, em particular, usam e abusam dos donos destes veículos de museu.
Chegámos a ver um tricycle carregado com três adultos e três crianças, seis criaturas mais os sacos e as caixas que transportavam.
Por comparação, nós, seríamos uma espécie de Clientes do Mês para o condutor que teria a fortuna de nos encontrar.
De Banaue a Hapao, a Bordo de um Pitoresco Tricycle
Jon, assim se chamava, puxa bem pela vertente panorâmica da viagem. Garante-nos que vamos adorar a volta e faz um preço que nos afiança generoso para não deixar fugir a oportunidade. Convencidos, instalamo-nos e à bagagem na cabine do sidecar o melhor que conseguimos e damos-lhe o sinal de partida.
As primeiras subidas são íngremes e obrigam a poderosa mas velha moto a um longo sobresforço. Assim que a grande encosta é vencida, o percurso suaviza-se. Jon pode por fim descontrair. Liga a instalação sonora mal-amanhada do painel e mete um dos seus temas preferidos a tocar em alto volume.
Os GI’s norte-americanos partiram das Filipinas após o término da 2ª Guerra Mundial que se desenrolou de forma atroz em várias partes deste arquipélago do Pacífico.
Já a música Country que ouviam perdura na cordilheira de Luzon e ganhou milhares de novos apreciadores quase fanáticos.
A Fascinante Paixão Filipina pela Música Country Americana
Jon era um deles. Este pinoy nativo de Banaue presenteia-nos com “Neon Moon”, um single de 1992 do duo Brooks & Dunn, o seu terceiro sucesso consecutivo a chegar ao primeiro lugar do top U.S. Billboard Hot Country Singles & Tracks.
Enquanto conduz, trauteia e inventa partes da letra que, apesar do barulho ensurdecedor do velho motor de dois tempos e dos hiatos no som provocados pelos solavancos, percebemos descrever o desgosto amoroso de um homem abandonado pela companheira que, para vencer a solidão, passa todas as noites num bar texano, à luz de uma lua de néon.
O absoluto desfasamento geográfico face ao imaginário da banda sonora deixa-nos algo confusos. De qualquer maneira, não tarda, chegamos ao destino final. A paisagem reclama-nos toda a atenção.
Jon imobiliza o tricycle. Saúda a dona da loja em frente, sua conhecida. Dá-nos um meio minuto para desentorpecermos as pernas. Depois, convoca-nos para uma plataforma de madeira improvisada à beira da estrada.
De lá, revela-nos a vastidão verdejante e ensopada dos terraços de arroz de Hapao, com tudo o que lhe dá encanto: o vale fluvial a que se moldaram e que favorece a distribuição da água, os pequenos muros arredondados de pedra, as diferenças de tons de zona para zona, as palmeiras de areca em redor das poucas casas que salpicam o panorama.
Os nativos de Banaue que trabalham com turistas orgulham-se como ninguém da beleza da sua região e conhecem o fascínio que provoca em quem viaja de tão longe para os descobrir.
Hungduan e Hapao não constam sequer entre os lugares mais reputados como, por exemplo, Batad, que guardávamos para os derradeiros dias.
Mesmo assim, pelo que dali víamos, provavam-se uma introdução deslumbrante.
Escadaria abaixo, à Descoberta de Hapao
Contemplamos o cenário por alguns minutos mais até que decidimos descer. Deixamos Jon entregue a uma sesta sobre a mota. De pouco ou nada serve preocuparmo-nos com a saúde das suas costas. Quando questionamos o conforto duvidoso daquele leito improvisado responde-nos, despachado: “Não se preocupem amigos, há muito que isto é a minha segunda cama. Divirtam-se, já nos vemos.”
Uma longa escadaria feita de degraus demasiado altos leva-nos ao início dos socalcos. Do último degrau em diante, avançamos sobre os trilhos estreitos de pedra que alisam o cimo de cada muro. Mas, se do topo da encosta a estrutura da paisagem nos parecia fácil de compreender e seguir, tudo se altera com a proximidade.
De um momento para o outro, os terraços tornam-se autênticos labirintos que nos obrigam a retroceder por mais que uma vez para tentarmos novos caminhos.
Cruzamo-nos com uns poucos aldeões da barangay (aldeia) Hapao. Tolerantes para com a intrusão dos forasteiros, quando nos vêem por maus caminhos, apontam-nos a saída.
O primeiro é um ancião franzino de camisa e calçonitos bem acima dos joelhos, moda rural que nos exibe a pele morena das pernas. Aproximamo-nos dele e interpelamo-lo. O seu inglês é quase nulo. Como o eram os nossos conhecimentos dos dialectos ifugao (o da região) ou tagalog (o nacional filipino).
O senhor mantinha a face bem protegida do sol tropical por uma moldura de tecido branco que lhe cobre o pescoço e toda a cabeça, com excepção da face. Sobre essa máscara, usava um boné.
Encaixado no cume do boné, um mini-chapéu de sol/chuva assegurava uma derradeira protecção.
Agradecemos-lhe a ajuda. Em troca, concede-nos um olhar de despedida mais que pacífico, etéreo, que nos faz sentir bem-vindos ao seu mundo.
Enquanto nos afastamos, espreitamos para trás para admirarmos o seu perfil de sombrinha caminhante a avançar num equilíbrio nato sobre um dos muros de pedras que dividia o arrozal.
Muro atrás de Muro, Socalcos de Arroz de Hapao Fora
Prosseguimos com todo o cuidado retalho após retalho. De cada vez que falhamos um passo sobre trechos mais estreitos dos muros, metemos pelo menos um pé na água e molhamo-nos, por vezes, até quase ao joelho.
Após dois ou três destes percalços, atingirmos uma casa na meia-encosta em frente, dotada de uma sebe bem alta de palmeiras de areca. Àquela hora, não encontrámos vivalma no lar.
Mas à boa maneira da região Ifugao, a família era consumidora da noz produzida por aquelas árvores, um estimulante em que os nativos – os ifugao, como vários outros filipinos e de outras partes do mundo – se viciam e que mastigam várias vezes ao dia para continuarem a se sentirem estimulados.
Invertemos caminho. Descemos para as margens do rio Hapao que divide os arrozais em duas áreas com inclinações distintas.
Caudal acima, aproximamo-nos do núcleo de lares da povoação. Por ali, encontramos bastantes mais sinais de vida da aldeia que até então. Um grupo de trabalhadores consertava um muro mais alto de um arrozal que as chuvas quase tinham feito colapsar.
Camponeses dobrados sobre o verde ensopado, tratavam da pureza das plantações a arrancarem o que quer que houvesse de espécies daninhas e a reforçarem o vigor das suas pegas de arroz, meros futuros bagos de um domínio rizícola milenar da maior das 7000 ilhas filipinas.
O Âmago de Hungduan e as Origens Remotas do Povo Ifugao
Sabe-se que os terraços de arroz foram erguidos nas montanhas da província de Ifugao pelos antepassados do povo homónimo com recurso apenas a equipamento básico. A sua localização, numa altitude média de 1500 metros acima do nível do mar, permitiu aos nativos desenvolver sistemas de irrigação extensos a partir das florestas húmidas acima.
E, quando confirmaram que podiam contar com a gravidade, os construtores continuaram a acrescentar mais e mais terraços.
O relevo e a ameaça de povos hostis isolaram-nos das terras planas para lá das montanhas e fizeram a sua vida depender dessa obra interminável.
De tal maneira que, a determinada altura, os terraços já cobriam cerca de 10.000 km2. Há quem diga que, colocados lado a lado, poderiam “abraçar” metade do globo.
Mais complicado foi, até agora, apurar indubitavelmente a identidade étnica dos autores pioneiros dos terraços. Não existem registos escritos das culturas responsáveis e mesmo as teorias mais lógicas e populares carecem de fundamentos factuais.
Alguns estudos históricos e evidências estabeleceram uma relação entre os terraços e a tribo Miao que prosperava nas regiões montanhosas e frias da China entre 2205 e 2106 a.C.
A determinada altura, esta tribo ter-se-á revoltado contra o imperador Yu – fundador da dinastia Xia – que a cercou e tentou eliminar. E sabe-se que os sobreviventes do massacre fugiram para sudeste e que alguns cruzaram o Mar da China.
Apesar de a sua história se ter perdido para o mundo em Luzon, vários estudiosos depreenderam que parte dos fugitivos alcançou as montanhas da ilha onde encontraram um ambiente semelhante ao que tinham sido forçados a abandonar.
Outros factores substanciam esta hipótese. É sabido que os traços físicos e os comportamentos “chineses” dos habitantes do norte de Luzon e as crenças e tradições dos povos Igorot e Ifugao se assemelham sob diversos aspectos aos da cultura Miao. Pois, mesmo não sendo os únicos, os Ifugao e os Igorot sempre foram considerados os melhores construtores de terraços.
Um Fim de Tarde Mais Agitado do que Era de Esperar
De volta ao quotidiano actual de Hapao, de um momento para o outro, começamos a ver miúdos a correr por um caminho íngreme abaixo, de mochilinhas às costas. Com uma velocidade tal que só uma corrida a podia justificar. Quase tão rápido como a debandada da criançada, concluímos que tinha terminado o último turno escolar.
O caminho de saída da escola sobranceira para os lares abaixo passava por pequenas pontes sobre o rio Hapao, sobre canais e por degraus anexados aos muros dos terraços. Os primeiros miúdos voaram baixinho por nós e sumiram-se na vastidão rizícola.
Um terceiro ou quarto, calculou mal um salto, desequilibrou-se e caiu uns bons metros abaixo para o fundo de um canal que ia dar ao rio. Ouvimo-lo chorar e corremos a ver como estava.
Chegamos quase em simultâneo com outras duas aldeãs que trabalhavam semi-camufladas num arrozal mais alto. São elas que removem o miúdo da vala. Por sorte, tinha aterrado nuns tufos de erva e magoara apenas um braço.
A mãe não tardou. Antes de levar o rebento ao centro médico do barangay, ainda lhe pregou umas palmadas. E foi este o evento do dia na pacata Hapao.
Os nossos telefones marcavam 4h30 da tarde, uma hora mais do que tínhamos combinado com Jon. Regressamos à pressa, apostados em reduzir o dano a um mínimo possível. Encontramos o condutor, deliciado, à conversa com a jovem dona da loja que conhecia e, como tal, pouco ou nada preocupado com o nosso atraso.
Voltamos a encaixar-nos na velha cabine do tricycle. Jon, liga-a e faz-nos à estrada. Não tarda a religar também a sua espécie de aparelhagem.
Tal como na vinda, é ao som do mais desfasado country americano que regressamos, já de noite, a Banaue.