A composição do Flamsbana termina a lenta desaceleração e imobiliza-se.
Entusiasmados pela beleza e imponência dos cenários que ficaram para trás, os passageiros desembarcam ansiosos por ver o que Flam lhes reservava.
Posicionado junto a uma carruagem, composto debaixo do seu chapéu de oficial, de camisa branca e gravata azul, Malvin Midje, um funcionário da empresa estatal norueguesa de caminhos de ferro, dá-lhes as boas-vindas e supervisiona o fluxo da gente em direcção à saída da gare e às margens do profundo Aurlandsfjord.
O que descobrimos é o limiar apenas e só turístico de Flam: um edifício amarelo-torrado erguido em madeira segundo as normas da arquitectura local, repleto de artesanato e recordações desta Noruega de natureza exuberante.
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Navio cruzeiro ancorado em Flam.
Um ancoradouro mais ou menos ao nível dos 59 metros de altitude a que se situa a povoação. A pouca distância, um gigantesco navio-cruzeiro que rivaliza com as falésias verdejantes em redor e ridiculariza a pequenez apesar de tudo campestre de Flam.
Nesse dia, era apenas um o cruzeiro ancorado. Noutros, podem contar-se dois e, neste caso, lançam sobre Flam uma enxurrada de até cinco mil forasteiros.
É preciso recuar muito para encontrarmos uma Flam dissociada do turismo. Existem registos da vila, com este mesmo nome traduzido como “plano” desde pelo menos 1340.
A partir do meio do século XIX, a povoação começou a ser invadida todos os verões por visitantes ingleses que chegavam em grandes barcos, abrigavam-se com os proprietários rurais da zona – em especial com um tal de Christen Fretheim e tinham como programa pescar o salmão que subia os vários rios em redor, incluindo o Flam.
Deslumbrados pelos cenários e pela vida exótica no campo norueguês, alguns desses lordes faziam de tudo para prolongar as suas estadas. Depois do fim da época do salmão, começava a da caça à rena. Também este seu novo hobby passou a justificar o adiar da partida.
Em 1879, a família Fretheim estava tão rica como pelas costuras de acolher ingleses em sua casa. Resolveu-se a erguer um edifício à parte que chamaram de “The English Villa”. Este edifício foi aumentado e renovado vezes sem conta até redundar no Hotel Fretheim dos nossos dias, de longe o mais histórico de Flam.
Chegado o ano de 1923, os trabalhos de construção de uma linha férrea ambiciosa voltaram a revolucionar a rotina rural-turística do lugarejo. Volvidos dezanove anos, os comboios já circulavam serrania acima e abaixo, a vapor, claro está. Flam nunca mais seria a mesma. E estavam por chegar mais mudanças.
Decorridos outros vinte anos, tinha já a Europa Ocidental recuperado da catástrofe da 2ª Guerra Mundial, os primeiros cruzeiros começaram a percorrer os 29km do Aurlandsfjord, quase até ao seu fim. Por essa altura, não existiam ancoradouros à altura pelo que os navios ficavam ancorados a alguma distância da povoação.
Em 2000, Flam recebeu o seu porto de navios e passou a acolher cruzeiros de vários calados. Hoje, são cerca de 160 por ano os que lá fundeiam para proveito financeiro dos habitantes que, sem excepção, deixaram as actividades agrícolas ou piscatórias a que antes se dedicavam, rendidos aos lucros quase imediatos das lojas, tours e outros negócios e actividades.
Como acontece em todo o lado a que chegam, os cruzeiros geram níveis excessivos de perturbação da harmonia local e poluição.
Flam e os Aurlandsfjord e Sognefjord – à imagem de Geiranger e outras partes da idílica Noruega – têm sofrido esses mesmos transtornos. De tal maneira que os protestos reclamantes de fiordes livres de cruzeiros ganham adeptos em catadupa, alguns deles bem mediáticos.
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Entusiasmo fotográfico com a bandeira norueguesa a ondular em fundo.
Não íamos embarcar num desses colossos do mar mas num dos ferries normais que liga Flam a Bergen, a segunda cidade norueguesa situada no litoral ainda distante do Mar do Norte. Esperava-nos uma fila ordeira e multinacional de passageiros em boa parte saídos do Flam Railway.
Subimos a bordo com o tempo solarengo. E com tempo para admirarmos o remate do Aurlandsfjord em redor, malgrado todas as transformações, aqui e ali ainda salpicado das pequenas casas de madeira brancas e vermelhas, algumas junto à base de quedas d’água que se precipitam pelas vertentes.
Foram as primeiras de dezenas porque passaríamos durante a navegação, todas elas abastecidas pelo degelo dos cimos nevados que, no caso do Aurlandsfjord, ascendem a impressionantes 1400 metros de altitude.
O comandante dá uma buzinadela de aviso da partida iminente. Conscientes de que se trata de uma das viagens da sua vida, os passageiros mais ansiosos precipitam-se para o varandim panorâmico sobre a popa. Durante um bom tempo, disputam o espaço e as fotografias e vídeos com uma fúria varengue.
Como quase sempre acontece na Noruega, a meteorologia tem planos próprios. Não tarda a impor a sua vontade.
À medida que avançamos para norte, um bando de nuvens escuras e densas vindas do oceano interna-se no fiorde, lança um vento gélido premonitório e, pouco depois, uma bátega.
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Braço do Sognefjord sob nuvens pesadas.
A chuvada quebrou de vez a teimosia dos passageiros mais resistentes. Se quase todos se haviam já enfiado no interior da cabine, estes últimos não tardaram a seguir o exemplo.
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Passageira resiste a um momento de meteorologia agreste, a bordo do M:S Viking Tor.
Excepção feita a uma mulher enfiada num impermeável escuro que apostada em ritualizar o momento, enfrentou o temporal de braços abertos sobre o varandim, ao lado da bandeira branca, vermelha e azul da Noruega que, segundo ditam os preceitos nacionais norse, não pode tocar o chão, nem ser usada no corpo abaixo da cintura.
O vendaval fazia-a chicotear o ar em redor sem clemência.
Como veio, a intempérie deu lugar ao sol. Esta não seria a última alternância meteorológica do percurso.
Enquanto isso, a passagem pelas povoações ribeirinhas de um lado ou do outro do fiorde suscitava sucessivas correrias de regresso ao convés panorâmico. Avistámos Aurlandsvagen, a estibordo, com as casas dos seus quase oitocentos habitantes disseminadas pelo sopé de uma encosta íngreme.
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Povoação à beira do Sognefjord.
Das imediações desta povoação, faz-se à encosta uma das estradas idolatradas da Noruega, a Aurlandsfjellet. Com 45km, sobe do nível do fiorde ao planalto desolado e repleto de rochedos que separa Aurland de Laerdal. Só por si, os primeiros 8km já representam um trajecto-experiência memorável.
Conduzem a Stegastein, um dos pontos de observação extremos de toda a região, proporcionado por um passadiço-varandim de madeira destacado cerca de 30 metros da face rochosa da montanha, 650 metros acima do fiorde e com vista para dois dos seus meandros inaugurais.
Como seria de prever, a inclinação da também estreita e sinuosa Aurlandsfjellet – uma verdadeira montanha russa – torna-a impraticável durante o longo Inverno, quando a neve e o gelo a cobrem e recobrem de um momento para o outro. Até mesmo no meio do Verão, ilhas de neve ladeiam o asfalto. Por alguma razão os moradores a tratam por Snovegen, a Estrada da Neve.
Segue-se o lugarejo de Unredal, que avistamos a bombordo, num aperto do fiorde após um dos seus esses, instalado na desembocadura de um vale glaciar apertado. Logo, Fronningen e Fresvik, em bordos opostos do navio. A primeira junto à confluência do Lustrafjorde com o Aurlandsfjord.
Navegávamos sobre o hidrodinâmico e moderno “M/S Viking Tor”. Mais que o mero deslumbre, os caprichos geológicos magnânimos em redor inspiravam nos vários imaginários incursões surreais à era das trevas destes confins quase boreais do mundo.
Sonhos de frotas de drakkar com grandes velas à bolina, impulsionados a dobrar pelas remadas dos guerreiros do deus do trovão e do relâmpago, das tempestades e da fertilidade.
“Da fúria dos nórdicos, livrai-nos Senhor!” diz-se que assim imploravam os monges saxões protecção a Deus quando os salteadores escandinavos invadiam os seus mosteiros, como fizeram tão para sul como Lisboa, Sevilha e, Mediterrâneo adentro até à península itálica.
A leste, pelo Volga e Mar Negro acima, já convertidos no povo Rus da génese da Rússia, até cercarem a poderosa Constantinopla com estima-se que para cima de 200 drakkar e levarem ao desespero o Imperador Bizantino Michael III.
Se, por essa altura, o vislumbre dos viquingues suscitava nas povoações e inimigos visados temor e tremor, tanto os domínios de que zarpavam como o seu legado civilizacional são hoje motivo de uma consistente exaltação.
Por altura de Fresvik e de Slinde, os contornos do Sognefjord obrigam o “M/S Viking Tor” a flectir para oeste. A base do desfiladeiro inundado prova-se suficientemente suave para acolher estradas providenciais: a 55 que o acompanha até Balestrand e por muitos quilómetros adicionais, até uma distante Vadheim. Na margem oposta, uma via secundária que conduz à não menos importante estrada 13.
Indiferente aos triunfos da engenharia civil e da modernidade, o Rei dos Fiordes Noruegueses prolonga a sua demanda de 204km pelo mar. Durante quase metade dessa extensão, atinge mais de mil metros de profundidade e entre 5 a 6 km de largura.
O mais longo e profundo dos fiordes noruegueses é, ao mesmo tempo, o segundo mais extenso à face da Terra. Supera-o apenas o vizinho da Gronelândia Scoresby Sund que se prolonga por descomunais 348 km.
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A zona portuária de Balestrand, à entrada do Sognefjord.
Passamos por Hermansverk e por Liekanger. O “M/S Viking Tor” contorna a península de Vangsnes.
Balestrand, o nosso destino dessa tarde fica à vista com as montanhas afiadas e pardas de neve do Esefjord como fundo. Identificamos dois pontões saídos da base da vertente e sobre eles, a secção ribeirinha da povoação.
Atracamos num molhe encharcado de uma chuva recente que dá para uma rua delimitada por casas de madeira de cores claras.
Desembarcados, reorientamo-nos e, num ápice, damos com o hotel Kviknes em que nos iríamos hospedar, uma espécie de Fretheim local. Não chegámos como lordes e o salmão ser-nos-ia servido já empratado. Só tínhamos um dia. Nesse tempo irrisório, o Kviknes Hotel e Balestrand entraram para a nossa história.
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