É só em Nesbyen, já mais despertos sobre a plataforma da estação local do Flam Railway, que a jornada nos suscita as primeiras emoções.
Estamos em Junho. Choveu todo o percurso desde a capital. Tal como ansiávamos que sucedesse, mais para meio da manhã, as nuvens deram de si e permitiram um embarque seco e ordeiro tendo em conta que, nesta secção inicial da viagem, num comboio convencional, moderno e sem janelas que abrissem, os passageiros iam seguir com assentos marcados.
Mesmo assim, a entrada é disputada ao centímetro. No fim, vencem os sempre determinados e imbatíveis chineses.
Instalamo-nos o mais confortáveis possível mas, inquietos, saímos para uma ou outra foto à pressa e voltamos aos lugares sempre a controlar o momento da partida. Decorridos dez minutos, a composição põe-se em marcha connosco dentro, sem sobressaltos.
O Cenário Surpreendente que antecede o do Flam Railway
Íamos convencidos de que o trajecto que antecede o mais notório Flam Railway se revelaria banal. Não foi assim. Viajámos quase sempre ao longo do caudal serpenteante do rio Hallingdalselva e de lagos vizinhos encaixados em vales verdejantes, pejados de lares campestres.
Mais para a frente, entramos nas terras altas do PN Hallingskarvet, bem acima dos 1000 metros de altitude. Tudo muda de figura. Mesmo em Junho, este planalto esculpido por sucessivas idades do gelo continuava no seu Inverno à parte. O verde passa a surgir apenas a espaços e, a determinada altura, cede de vez a uma panorama acastanhado e branco dos retalhos de neve que resistem às intenções do estio.
Cascatas alimentadas pelo degelo desses nevados e de glaciares soberanos fluem penhascos abaixo e alimentam vários rios, riachos e lagos: o Tungevatnet, o Hestebotnvatnet, o Finsevatnet e outros – que por ali fluem. Os mais sérios são velozes e repletos de rápidos, uns correm na região de Buskerud, outros, na fronteiriça de Hordaland.
Numa e noutra, como cogumelos humanos, grandes cabanas-abrigo de madeira escura ornam o planalto. Enchem-nos o imaginário de deliciosos retiros divididos entre a beira-rio e a beira-lareira.
Não tarda, deixamos o domínio de Hallingskarvet. Prosseguimos para noroeste e para baixo dos mil metros. Aos 866, após mais de duas horas de ziguezagues, a composição dá entrada em Myrdal, um povoado disposto em redor da estação ferroviária homónima, ali presente como entroncamento da linha de Bergen e da de Flam.
João Carvalho na Liderança do Transbordo de Myrdal
É suposto tomarmos a última. Desembarcamos todos para uma plataforma central desafogada. Confrontados com duas linhas, algo distantes do pequeno edifício central, os passageiros rendem-se a uma desorientação momentânea.
Uns, deslocam-se para um lado, outros para o oposto, em busca do melhor lugar para se situarem na disputa dos assentos do comboio que se seguia, esse sim, conhecido por percorrer dos cenários mais impressionantes da Noruega e do mundo.
O desnorte pouco dura. Às tantas, um dos funcionários da estação, identificado com um colete verde-fluorescente, aparece e alto mas num tom paternal grita: “Follow me my children, follow me!”. Assim convoca e dispõe todos os passageiros em sua roda de forma a ouvirem o briefing que tinha para comunicar.
Ficamos a saber de onde surgiria a composição do Flam Railway, em que sentido seguiria e onde nos deveríamos posicionar face à composição iminente. Formam-se novas filas, com a comoção esperada. Uma passageira chinesa mais excitada com a evasão e a competição atropela uma outra norte-americana, já com alguma idade. Suscita um incidente de relações internacionais que a boa disposição dos demais depressa ajuda a sanar.
Entretanto, a composição do Flam Railway encosta na plataforma, liderada por uma locomotiva eléctrica cinzenta que puxa várias carruagens bem mais antigas que aquelas em que havíamos chegado a Myrdal.
Por Fim, a Bordo do Reputado Flam Railway
Este segundo e derradeiro comboio fazia já os primeiros dos seus 20 km de trajecto quando o funcionário que nos tinha orientado a todos na estação de partida nos aborda: “Esperem lá, vocês são portugueses, certo?”, questiona-nos imbuído de uma forte suspeita de nos ter ouvido a falar português.
Confirmamo-lo. Damos sequência a uma inesperada conversa de compatriotas. João Carvalho diz-nos que é da Margem Sul, onde também temos família. Cumpria a mais recente de várias épocas de Verão a trabalhar no Flam Railway.
Elogiamos-lhe o à vontade e a eficiência com que conduzia os passageiros e perguntamos se os funcionários noruegueses também os tratam daquela tarefa. “Bom tratar… tratam mas não o fazem assim como eu.” diz-nos para confirmar aquilo de que, de qualquer maneira, já não tínhamos grandes dúvidas: o à vontade mediterrânico do João era único e precioso.
Vasculhamos a mente. Ficamos com a impressão de já o ter visto em destaque num documentário francês ou alemão sobre aquele caminho-de-ferro. “É bem possível, confirma-nos o João. Já vieram aí filmar tantas vezes!” Trocamos contactos. João, regressa aos seus afazeres, carruagens fora.
Flam Railway: um Caminho-de-ferro Providencial Conquistado aos Fiordes
Nós, entregamo-nos às janelas que tínhamos conquistado. Dedicamo-nos a contemplar e a registar as paisagens de ambos os lados da linha, uma ramificação da Bergen Line, finalizada em 1941, após 20 anos de construção, no vale de Flamsdalen com o fim de abrir um acesso crucial ao Sognefjord, conhecido como o Rei dos Fiordes e o mais amplo e profundo da Noruega.
A Flam Line tem 20km, 10 túneis e uma ponte. Serpenteia 863 metros abaixo até aos 59m de elevação de Flam. Com um gradiente de 5,5%, é uma das linhas com maior declive à face da Terra. De acordo, as várias carruagens estão equipadas com distintos travões capazes de deter toda a composição.
Nesse trajecto, as janelas das carruagens prendam-nos com vistas incríveis: alguns picos e penhascos nevados mas, sobretudo, ravinas e desfiladeiros profundos e verdejantes com os fundos decorados por casinhas de madeira vermelhas, algumas, amarelas. Caem quedas d’água do cimo dessas ravinas, bem mais longas e caprichosas que as do PN Hallingskarvet.
O Encontro Mitológico com a queda d’água Kjosfossen
Uma delas, a Kjosfossen, precipita-se 90 metros, entre o cimo dissimulado do grande lago Reinungavatnet e o caudal do rio Flamselvi que acompanharíamos até à derradeira estação.
Cai tão volumosa, furiosa e próxima do comboio que parece inundá-lo a qualquer momento. Em vez, passa por baixo da plataforma ali instalada para a composição se deter e conceder aos passageiros uma contemplação despachada e muito borrifada. Da queda d’água. Mas não só.
Sem aviso, do cimo das ruínas de uma casa antiga, surge uma mulher loura misteriosa que traja um vestido vermelho. Dança. Move-se e continua a dançar em redor da casa e, logo, pela floresta ensopada contígua, ao som de uma música folk norueguesa.
Tendo o Flam Railway sido, a determinada altura, dedicado aos forasteiros turistas, pago com preços condizentes foi complementado com um acto de estudantes da Escola de Ballet Norueguesa. Lá encarnam, há já muito, a Huldra, uma criatura (mas também toda uma raça ou espécie) espiritual e esquiva da mitologia da Noruega.
Estabelece a mitologia escandinava que estas criaturas atraem os homens à floresta para os seduzir. E que são especialmente benévolas para com os carvoeiros, que se habituaram a contemplar quando estes repousam e enquanto as suas brasas incandescentes arrefecem.
Rallarvegen e a Descida para Breikvam
Soa novo aviso a reclamar o reembarque. A composição retoma a descida. Uns poucos quilómetros para diante, quase a meio do percurso, ficamos de frente para outro cenário impressionante: Rallarvegen. O trecho de uma estrada estreita e de terra batida, ziguezagueia vinte uma vezes da base de uma nova queda d’água até ao seu cimo.
Na origem, esta estrada foi ali construída para facilitar os trabalhos hercúleos do Flam Railway, conduzidos pelos ralar (engenheiros de navegação). Finaliza uma via com mais de 120 km que, segundo apuramos mais tarde, vem das alturas de Hol, no condado de Buskerud.
Hoje, usam-na sobretudo os adeptos de BTT. Todos os anos, no curto período em que não está gelada – entre Julho e Setembro – percorrem-na mais de 20.000 ciclistas ansiosos por renovar a adrenalina.
Passamos por sucessivas povoações ribeirinhas, instaladas de forma harmoniosa numa ou noutra margem do rio Flamselvi. Parecem-nos frágeis as suas casas de madeira, insignificantes, naquele cenário feito de paredões de rocha cobertos em parte de árvores que vencem a gravidade.
As povoações são abençoadas por pequenas igrejas luteranas. Têm casas do povo com bandeiras da Noruega altivas. Dali até Flam, pouco divergem do padrão normativo vermelho-branco-amarelo.
Por altura de Breikvam, a linha do Flam Railway divide-se em dois, por forma a que as composições a viajar em sentidos opostos não tenham que parar. Vamos de cabeça quase de fora e assistimos a um desses encontros em que os dois comboios parecem espelhos um do outro.
Flam. E o Sognefjord à Vista
Não tarda, o gradiente da linha suaviza-se e o vale do Flamselvi abre-se. Conseguimos vislumbrar a Flam antiga, também ela com a esperada disposição e organização norueguesa e uma igrejazinha de madeira escura diminuta a poucos metros do leito do rio.
O comboio vence mais um meandro. Do lado de lá, já sobre a foz do Flamselvi, entramos na Flam moderna, a justificada pela cada vez mais atarefada confluência do Flam Railway e do cais de Flam, no limiar do majestoso Sognefjord.
A composição desacelera dos menos de 40 km/h a que seguia e detém-se. Os passageiros recuperam a sua bagagem. Aos poucos, descem para a última das estações.
Logo ali, a uns meros metros, esperam-nos merecidas estadias nos hotéis da vila, ou embarques nos navios que percorrem o Sognefjord.
Por volta das três e meia da tarde, subimos a bordo de um dos Fjord Cruises entre Flam e Bergen, rumo à ainda longínqua segunda maior cidade da Noruega. Nessa tarde, no entanto, só navegámos até Balestrand, onde tivemos o privilégio de pernoitar. Balestrand e Bergen, ficam para próximos capítulos.
Mais Informações e reservas do comboio Flam Railway e de Tours “Sognefjord in a Nutshell” em www.fjordtours.com.