É de cima de um dos velhos baluartes virados a norte que nos apercebemos como a estrutura da fortaleza continua a demarcar uma tão clara divisão na cidade.
Do lado de fora, tudo nos parece circular e frenético. Os jogadores da equipa de críquete local dão entrada no redondo Galle International Cricket Stadium, aquecem e estreiam os exercícios do treino matinal.
Os autocarros, quase todos velhos Tatas folclóricos, disputam a rotunda da Stadium Road com os pequenos riquexós que, apesar da hora madrugadora, já rodam sedentos de passageiros.

Autocarros Tata e riquexós no exterior do pórtico norte do forte de Galle.
Mais um Dia Tropical e Quente entre as Muralhas do Forte Galle
No interior, as muralhas sólidas e lineares contêm a incursão do novo dia. Corvos esvoaçam de guarida em guarida prestes a inaugurar a sua patrulha aérea por alimento. Alguns moradores ginasticam sobre a relva que forra o humilde Mahendra Amarasooriya Park.
Quatro ou cinco vacas pastam-na, indolentes e indiferentes ao resto.
Interrompemos a contemplação que nos ameaçava hipnotizar. Retomamos a caminhada a leste, pelo adarve que dá para a enseada do porto de Galle e revela, ao longe, o grande e morno Índico.
Repetimos passos prudentes, já avisados da irregularidade das suas pedras e do percurso em geral que inclui passagens delicadas para níveis de altura distintos, estreitamentos e intrusões tentaculares de figueiras-de-Bengala.
Terminamos um destes trechos problemáticos mesmo de frente para a igreja holandesa que se diz ter sido construída no lugar de um convento dos Capuchinhos português.
De tempos a tempos, chegam riquexós que deixam visitantes à porta.
Nas imediações, Dominit exibe uma pitão e constringe os estrangeiros para longe da casa de Deus.

Morador de Galle exibe uma cobra aos visitantes.
Com uma já gasta conversa de encantar, convence-os a fotografarem-se com o réptil sobre os braços. O pagamento só depende da vontade dos clientes mas seja qual for, deixa-o insatisfeito. “Cem rupias?? Mas como é que eu sustento a minha família assim?”
A Azáfama Estudantil em Volta do Museu Marítimo, em pleno Forte de Galle
Contornamos a entrada do Museu Marítimo de Galle. Um túnel que cruza a sua fachada quase laranja polariza uma comoção paralela.
Carros e riquexós passam-no sem cessar para cá e para lá, ao ritmo de um semáforo. Ao mesmo tempo, os transeuntes fazem-se àquela escuridão efémera, receosos dos desvarios do trânsito.
Estamos prestes a imitá-los quando alguma autoridade dali imperceptível, quebra a ordem das coisas.
Em vez dos veículos, surge da penumbra um enorme comboio de crianças escolares, miúdos e miúdas nos seus respectivos uniformes, algumas com hijabs que a fé dos familiares em Alá lhes impõe.
Conduzidas pelas professoras à saída, as crianças desfilam entusiasmadas pela evasão e distraídas por acenos mil.

Excursão de miúdos de escola numa pequena expedição rumo ao bastião da bandeira.
Apenas cem metros acima, tal como apareceram, voltam a sumir-se nas profundezas bafientas do museu.
Completamos a travessia. No lado de lá, inteiramo-nos que estamos perante outro dos portais da fortaleza. É o mais antigo, coberto de musgo que se alimenta há meio milénio da sombra e da humidade das monções.
Os nativos ainda o conhecem como “o português” apesar de os brasões destacados acima das suas entradas serem o holandês e o inglês, as potências coloniais que atrapalharam e frustraram os nossos antepassados quando só estes se imiscuíam na soberania da Ilha da Canela.
A Chegada e Supremacia dos Portugueses no Velho Ceilão
Crê-se que, em 1505, uma frota comandada por Lourenço de Almeida navegava a caminho das Maldivas quando uma tempestade a desviou para o litoral do actual Sri Lanka.
Almeida deteve-se em Galle antes de seguir costa oeste acima, onde o receberia o rei de Kotte, nos arredores da actual capital Colombo.
A audiência convenceu De Almeida do valor comercial da ilha. De Almeida, por sua vez, convenceu o rei Vira Parakrama Bahu de que o poderia proteger das incursões vindas da Costa do Malabar e da Arábia em troca de um tributo anual em canela e outros produtos.
Em 1518, já sob liderança de Lopo Soares de Albergaria (também conhecido como Alvarenga), os portugueses regressaram com uma frota reforçada.
Fortificaram-se em Colombo e em Galle.

Telhados e torres destacam-se do velho casario da cidade fortificada de Galle.
Daí em diante, durante quase um século de alianças, rivalidade e de batalhas, aumentaram o seu domínio e forçaram o grande rival inimigo de Kandy a resistir no interior elevado do Ceilão.
Esta supremacia tinha os dias contados.
Ainda assim, persistem e multiplicam-se no Sri Lanka os apelidos que os portugueses emprestaram principalmente às famílias dos reinos que os apoiavam: Pereras, dos Pereiras – como quem lhe conta esta história – Silvas, Mendis, Fonseka, Rodrigo e muitos outros.
Forte de Galle Adentro, na Direcção do Índico
Longe do caso de JPJ Abeyawickrama, um vendedor ciclista de lotarias que resistiu a impingir-nos as suas cautelas mas nos pediu para se fotografar connosco e com um amigo.

Dia-a-dia flui através do pórtico “português” da fortaleza, hoje com os brasões holandês e inglês sobre as entradas.
Quando os deixamos, espreitamos as instalações da marinha cingalesa e uma pequena praia aproveitada por banhistas da cidade que se deleitavam no mar translúcido, em jeito de auto-baptismo.
Pouco depois, regressamos à saída sul do pórtico e continuamos a exploração da fortaleza pela Queens e, logo, Hospital Street. Esta última rua e a praça contígua concentram uma panóplia de instituições administrativas que atraem moradores dotados de pastas, documentos e paciência.
Uns metros e muitas arcadas à frente, entramos no jardim marginal da Pedlar Street. Por ali, a atmosfera, de novo marinha e tropical, volta a desanuviar-se.
Um grupo de amigas conversa à sombra de uma Figueira-da-Índia que assentara sobre dezenas de troncos estreitos.
Achintha e Kaushma, noivos em trajes tradicionais lustrosos protagonizam uma produção casamenteira que se arrastaria por horas, percorreria inúmeras outras paragens de Galle e se cruzaria com a de outros noivos nos mesmos preparos.

Achintha e Kaushma, par de noivos durante a sua longa sessão fotográfica prévia ao casamento.
Legado Luso, Holandês, Árabe e Cingalês entre Muralhas Portuguesas
O farol desgastado de Galle impõe-se entre coqueiros que lhe perseguem o topo, acima do arvoredo do jardim e na ponta da extremidade que acolheu a praça fortificada.
Apuramos que não são permitidas ascensões ao seu varandim.

Mulheres caminham sobre a muralha sul da fortaleza de Galle, acima do oceano Índico.
Conformados, viramos para a face da muralha disposta entre a Rampart St. e o oceano Índico a sul. Era a terceira aresta da fortaleza que completávamos. Faltavam outras tantas.
O calor e a humidade aumentaram sem clamor.
Desidrataram-nos e dissolveram-nos as energias, como fizeram a vários dos condutores de riquexós que dormitavam sobre os bancos acolchoados.
Não nos levaram o encanto histórico em que andávamos desde o despertar.

Jovens amigos conversam num de vários riquexós em fila numa rua interior da velha Galle.
Do lado de lá da rua, como que a desafiar o protagonismo do farol, uma também branca mesquita.
Meeran Juma assenta numa arquitectura que, não fossem os pequenos crescentes cimeiros, e os escritos em árabe do frontal, quase nos passaria por igreja.

A mesquita Meeran Juma acima dos telhados seculares de Galle.
E, no entanto, foi construída pelos mercadores árabes do Sri Lanka no mesmo Bairro Mouro que concentra, em redor das orações, a comunidade muçulmana do forte.
Pré-Produções Fotográficas de Matrimónios Fortificados
Percebemos a iminência de um outro casamento. Pelo séquito de familiares e convidados que arrasta, só pode ser endinheirado. Andamos junto à base da muralha que isola a povoação do Índico, quando, vinda da esquina do farol, uma embaixada de mulheres glamorosas em saris garridos e reluzentes se aproxima no plano do adarve acima.
Intuem, num ápice, o quanto nos despertam interesse como a outros forasteiros ocidentais. Solidárias no orgulho e na vaidade, pavoneiam-se durante quase trezentos metros contra o céu azulão, entre cumulus nimbus quase tão esplendorosos.
Um guia cingalês que nos havia proposto os seus serviços vezes sem conta, esclarece-nos com tom nacionalista de reprovação: “São indianos. O que vale é que cá deixam um bom dinheiro..”
A passerelle só termina no bastião de Flag Rock, a próxima aresta da fortaleza e, de longe, a mais disputada, sempre cercada de vendedores de fruta, bebidas e de guloseimas.
Também Dominit e a sua pitão para lá se tinham mudado, atraídos pela abundância de presas.
De Bastião em Bastião. Um Forte que Preserva a Vida Cingalesa
No cimo da escadaria, um outro animador concentra as atenções da multidão. É mergulhador, num jeito minimal e desajeitado dos clavadistas de La Quebrada de Acapulco. Tem uma tabela para várias proezas. A principal é mergulhar de cabeça para o mar, para um intervalo profundo mas exíguo entre as rochas.
O acrobata não tarda a encontrar clientes entre os grupos de chineses.
O seu primeiro salto concretiza-se num ápice. É quase tão rápido como o regresso pela fachada rochosa do baluarte, uma escalada traiçoeira que, ansioso por facturar algumas centenas adicionais de rupias, completa em três tempos.
Do bastião de Flag Rock até a Torre do relógio que se erguia a norte, oposta ao baluarte em que tínhamos começado o périplo, a fortaleza prova-se mais desafogada.

Dois outros noivos em plena acção da sua própria produção casamenteira.
Frequentam-na, sobretudo, jovens casais de namorados e noivos entregues a carícias tímidas sob chapéus de sol.
Dedicamo-nos às ruas paralelas do interior. Cumprimos uma curta peregrinação turística à igreja de Todos os Santos, que os derradeiros colonos britânicos mandaram erguer em estilo gótico vitoriano.
A igreja está entregue a intensos reparos. Por outro lado, aumentava no âmago da fortaleza o número de cafés, pousadas e lojas de souvenires que corrompiam o encanto do lugar.
Donos do nosso destino, regressamos à Pedlar St. e ascendemos a um bastião instalado sobre um enorme rochedo. Dali, admiramos a vasta baía que se prolongava até ao Pagode Japonês da Paz.
A maré tinha vazado.
As Praias para Lá das Muralhas do Forte
O Índico imediato apiscinava-se enquanto o areal se expandia e acolhia um batalhão de banhistas, entre muitos mais veraneantes.
Uma expedição dos segundos tinha-se aventurado mar raso adentro até umas rochas que distavam 50 metros. Vemo-los num doloroso regresso, a darem os braços em cadeia para evitarem cair sobre o leito rugoso. Isto, enquanto os barcos de pescadores ali ao largo os saudavam.

Fila de cingaleses regressa lentamente e aos tropeções ao areal, após uma pequena viagem a rochas no meio do mar.
Não resistimos mais ao apelo daquele recanto de litoral que irradiava harmonia e felicidade. Sentamo-nos sobre a areia e, por momentos, ficamos a apreciar o fluir do entardecer e do Indico.
Mulheres em saris tagarelam de olho nos maridos que se divertem à beira de água com as suas crianças. Sete ou oito cingaleses de meia-idade flutuam em posição de cruz. O seu ritual atrai e admite vários outros.
Estamos no nosso próprio banho quando reparamos que o sol se põe sobre o bastião da Bandeira da Rocha já sobrelotado.

Bola do sol prestes a cair para trás das muralhas próximas ao bastião da Rocha da Bandeira.
Contornamos o fundo da muralha abaixo do farol e entramos no areal ensopado e deserto.
Dessa inesperada posição, acompanhamos o descair do círculo incandescente para baixo do horizonte precoce das muralhas, o alaranjar do céu e o escurecimento de tudo o que estava entre nós e o grande astro: uma árvore massiva, a multidão sobre o bastião e, ao largo, um cargueiro.

Sol alaranja o céu a ocidente do bastião sudoeste do Forte Galle.
Com o lusco-fusco a envolver o firmamento, uma celebração efusiva da vida sustentada pela comida e bebida dos vendedores tomou conta daquele recanto lendário do Sri Lanka.
Daí a uns dias, conquistaríamos a fortaleza cingalesa e em tudo distinta de Sigiriya.