No mapa, o ponto em que a vastidão do Saara se rende ao Atlântico mais próximo, coincide com Tarfaya e o Cabo Juby.
São litorais da região Laâyoune-Boujdour-Sakia El Hamra que os marroquinos da zona celebram, mesmo se banhados por um mar que os Alísios mantêm enfarinhado de poeiras do deserto.
Ao deixarmos Corralejo na direcção do parque natural homónimo, deparamo-nos com uma espécie de extensão canária deste mundo.
Parte da areia com que os irascíveis e instáveis Alísios polvilham o Atlântico (e fazem, inclusive chegar às Américas) cai sobre Fuerteventura.
A costa nordeste da ilha, em particular, recebe quantidade tal que lá se formaram as dunas supremas das Canárias, avolumadas sobre uma base de matéria orgânica gerada pela desintegração de conchas e dos esqueletos externos de outras criaturas do mar.
Bem mais distante do Saara, a água do Atlântico é, por ali, cristalina. Mesmo se o vento raramente dá tréguas, flui em temperaturas que deixam os visitantes do norte da Europa em êxtase.
Parque Nacional Corralejo. O Deserto Litoral de Fuerteventura
O casario da Corralejo urbana fica, em definitivo e sem excepção para trás. Então, a estrada marginal ziguezagueia pelo deserto de Fuerteventura abaixo. Revela-nos praias selvagens com atmosferas balneares inusitadas.
À entrada da Playa del Pozo, uma manada de cabras verificava o quão edíveis seriam os arbustos que salpicavam o branco sem fim.
Quando se acercam da beira-mar, intrigam um casal já idoso de nudistas que se metia na água cristalina aquém do canal El Rio.
Insistimos com os Alísios, como os Alísios fazem com as paisagens que castigam.
Soprados de norte para sul, os ventos tornaram-se de tal maneira prevalentes que os majoreros (nativos de Fuerteventura) disseminaram, naquela e noutras praias, castros arredondados feitos de calhaus de basalto mal empilhados.
Passamos junto a um desses abrigos. Vemos três bicicletas estacionadas contra a fachada oposta ao mar, a salvo da brisa salgada. Do interior, despontam chapéus de sol de várias cores.
Sobrevoam-nos gralhas determinadas. Quando uma delas pousa sobre o cimo do refúgio, compreendemos o seu mote, uma banhista que as prenda com bolachas achocolatadas.
Para sul, sucedem-se mais praias generosas, a Larga, a de Los Matos, a El Bajo Negro, a Dormidero, a Del Moro, a Del Rosadero e a Alzada.
Ondas mansas afagam a Del Moro.
Espalhado pela sua enseada profunda, um batalhão de estrangeiros enfiados em neoprene pratica os movimentos elementares do surf.
Outros areais estão desertos. Ou povoam-nos uns poucos banhistas adeptos da reclusão.
Por altura da calheta de Barca Quebrada, o areal dá de si. Aos poucos, cede a um ocre vulcânico gasto pelo tempo.
Numa ilha deste ocre, ainda envolta de dunas, afirma-se a cratera oval de Los Apartaderos e, após cruzarmos uma série barrancos, impõe-se à estrada a vertente crua de outro velho e dramático vulcão, a Montaña Roja (312m).
A proliferação vulcânica, sobretudo ao longo da crista da ilha, estende-se por mais algumas dezenas de quilómetros. Obriga-nos a prosseguirmos para sul. Atravessamos o barranco hiperbólico de Fimapaire.
Nas imediações de Puerto Lajas, por fim, a ilha aplana.
Permite-nos flectir para ocidente, rumo ao interior e a La Oliva.
A ex-Capital dos Coronéis de La Oliva
As ruas desta cidade cruzam o âmago histórico de Fuerteventura, de igual forma envolto de vulcões mal disfarçados de morros e de montes.
Metemo-nos pela Calle la Orilla. Percorridas umas centenas de metros, examinamos o extremo oposto, um cenário subtropical, western e surreal, magrebino, mexicano e andaluz que nos deixa perdidos no espaço e no tempo.
Uma pintura deste incaracterístico, em particular, estimula-nos os sentidos. À esquerda da estrada, próxima, uma palmeira frondosa. Oposta, uma casa térrea, ainda mais baixa que o lampião amarelo que lhe doura a noite.
No fundo da calle, distante, os contornos brancos e basálticos da Iglésia de Nuestra Señora de la Candelaria.
E a encerrar o quadro, contra o céu azulão, o cone raiado perfeito da Montaña del Frontón, outro vulcanismo excêntrico da ilha e um elemento incontornável da monumentalidade de La Oliva.
La Oliva sucedeu a Betancuria como capital de Fuerteventura, de 1834 a 1860, em vinte e seis dos cento e cinquenta anos em que residiram na cidade os Coroneles, administradores e Governadores Militares todo-poderosos que só respondiam ao Capitão General das Ilhas e à Coroa de Castela, por esta altura, já Bourbon. Desde sempre católica.
Metade dos seis coronéis que mandaram na cidade e na região de La Oliva tinham apelido Bethencourt. Descendiam do conquistador Jean de Bethencourt.
No fim do século XIV, os reis de Castela confiaram a conquista das Ilhas Canárias a este normando determinado.
Uns poucos anos depois, fruto de os nativos serem umas meras centenas e pouco combativos, Jean de Bethencourt já tinha conquistado Lanzarote e Fuerteventura.
Casa de Los Coroneles. O Quartel-General dos Líderes de Fuerteventura
Passamos pela igreja-mãe da cidade. Logo, metemo-nos na Calle de Los Coroneles. A certo ponto, ficamos entregues a uma planície desolada, de solo-lixa encarniçado, não tarda, intersectada com o sopé da Montaña del Frontón.
Ali mesmo, na iminência do seu cone, achamos o quartel-general dos coronéis, uma casa fortificada de dois pisos, um quase castelo, com fachada amarela aberta por oito janelas simétricas, as quatro superiores dotadas de pequenas varandas.
Torres ameadas delimitam os extremos opostos. Encerram um pátio nuclear ladeado de galerias alpendradas de madeira.
De um recanto desse pátio meio sombrio, duas palmeiras buscam a luz solar e a imensidão celeste.
Em redor do pátio, no piso inferior, ficavam os aposentos dos servos, os celeiros, as zonas de vigilância e as protocolares e de arquivo do quartel. No superior, concentravam-se os lares dos coronéis, a cozinha, a sala de refeições, lugar dos quartos, todos eles com vistas abertas para as montanhas circundantes.
Subimos à torre mais próxima da Montaña del Frontón. Do cimo muralhado, desvendamos uma outra série de edifícios menores, hoje, meras ruínas que fazem de biombo à aba do monte.
Em Busca da Montanha Sagrada de Tindaya
De regresso ao solo, inauguramos a descoberta da região de La Oliva em redor da ex-capital.
Para norte da cidade, impõe-se o domínio estorricado e cinza de outro vulcão, o de La Arena. Provou-se de tal maneira inóspito e intimidante que os colonos baptizaram a área contígua de Malpaís de Arena.
Sem desprezo para os seus visuais pós-apocalípticos, invertemos o caminho. Apontamos ao sul de Fuerteventura, estrada FV-101 abaixo, procuramos nova elevação emblemática.
A montaña de Tindaya (400m) é especial porque os majos (indígenas de Fuerteventura) a tinham como sagrada, lhe atribuíam poderes mágicos, lhe faziam oferendas rituais e a ilustraram com centenas de petróglifos com os mais distintos motivos, incluindo grandes pés.
Damos a volta à montanha, à procura da sua perspectiva mais vulcânica e dramática mas receosos de descobrir o que a modernidade por ali teria feito. Os temores confirmam-se.
Malgrado os sucessivos movimentos que lutam pela defesa de Tindaya: “Tindaya no se Toca” e outros, por altura do nosso périplo, já uma velha pedreira tinha desfigurado a encosta.
Em redor, demasiado próximas, estruturas modernas da povoação homónima (caso do campo de futebol) desrespeitavam o vulcão sacro dos majos.
Em simultâneo, projectos com ambições financeiras desmedidas e falta de escrúpulos condizentes visavam a sua riqueza mineral.
O Legado Rural de Tefia
Mudamo-nos para a aldeia rural de Tefia.
Em tempos, este pueblo secular acolhia centenas de camponeses que subsistiam dos cereais de sequeiro que por ali produziam e que moíam nos moinhos de vento e de tracção animal com que a comunidade se havia dotado.
Sobretudo a partir da década de 70, o esforço intenso requerido pela agricultura afastou as novas gerações.
As gentes de Tefia mudaram-se em peso para Puerto Rosário (a capital actual da ilha) e para outras partes.
Em Tefia encontramos, agora, o Museu de Alcogida, constituído com o fim de perpetuar as tradições e conhecimentos rurais da ilha.
Há horas que desvendávamos o interior abafado, às vezes tórrido, de Fuerteventura.
Contra-sentido, quando a tarde e o calor se desvanecem, retomamos o litoral da ilha, o Noroeste, entre El Cotillo e El Tostón, já não o de Corralejo.
El Cotillo e o Farol Setentrional de El Tostón
Ao atravessarmos El Cotillo, constatamos como evoluiu de pueblito piscatório para o centro urbano e turístico prolífico que rivaliza com Corralejo.
Passamos junto às enseadas recortadas e protegidas por recifes com que o Atlântico prenda a cidade. Vemos como se repetem norte acima.
Chegamos a El Tostón, uma península de dunas e de beira-mar rochosa, destacada no oceano à entrada do canal que separa Fuerteventura de Lanzarote e, como tal, crucial para a navegação.
Virada ao poente, o ocaso tornou esta zona notória a dobrar. Àquela hora crepuscular, o retiro do grande astro já dourava o castillo local, uma pequena fortaleza cilíndrica.
A culminar uma condução tresloucada, ainda o vemos pegar fogo ao farol del Tostón, ao cimo e oeste recortado de Fuerteventura e aos fundos dantescos da vizinha Lanzarote.