Torna-se ainda mais visível quando a meteorologia obriga a que as sempre delicadas aterragens na pista do Aeroporto Cristiano Ronaldo se façam de oeste para leste, na direcção da Ponta de São Lourenço.
Nessas ocasiões, do lado certo do avião, a aproximação revela a vertente ampla em que, com os séculos, o Funchal se alongou.
Mesmo denso, o casario da cidade salpica o verde envolvente, com as devidas excepções, mais vivo e intenso quanto mais para cima na ilha.
Um dos lugares emblemáticos e imperdíveis do Funchal, o Monte, ilustra na perfeição o declive e o tropicalismo predominante.
A Encosta Luxuriante mas Ajardinada do Monte Palace
Lá nos aventuramos pela quase-selva ajardinada do Monte Palace Madeira onde, numa área de 70.000 m2 em que se diz estarem concentradas e proliferarem mais de 100.000 espécies vegetais dos quatro cantos do Mundo, de cicas e proteas da África do Sul a urzes escocesas.
No sortido, contam-se ainda as plantas endémicas que compõem a complexa floresta Laurissilva madeirense: fetos, cedros, loureiros, tiles, folhados, figueiras-do-inferno e tantas outras.
De todas, das indígenas, enchem-nos as medidas os exuberantes massarocos.
Entre as estrangeiras, os elegantes fetos arbóreos (cyathea medullaris), naturais da Austrália, que há muito se disseminaram pela Terra e fazem parte da flora dos Açores, das Canárias e, claro está, da Ilha Jardim.
De Charles Murray ao Comendador Berardo
O dono original deste reduto, o cônsul britânico Charles Murray (1777-1801), decidiu baptizar a propriedade que comprou no final do século XVIII, de “The Pleasure Estate” (Quinta do Prazer), bem destoante da austeridade católica imposta pela igreja vizinha da Nª Srª do Monte.
A altivez do santuário não chegou a intimidar o cônsul e Murray decidiu aperfeiçoá-lo enquanto pudesse. Murray faleceu em 1808, em Lisboa.
Em 1897, o câmaralobense Alfredo Guilherme Rodrigues, comerciante bem-sucedido, resolveu recompensar-se com a aquisição da velha quinta de Murray.
Na sequência de uma sua viagem à Exposição Internacional de Paris, em 1900, Alfredo Guilherme regressou impressionado com o requinte dos castelos às margens do Reno. De acordo, ergueu o seu próprio palácio, mais tarde transformado no Monte Palace Hotel, projecto que a sua família veio a descartar.
Quarenta e quatro anos depois, a propriedade acabou na posse do então milionário, agora endividado, madeirense José Berardo.
Berardo transformou a quinta numa espécie de museu tropical. Enriqueceu-a com a colecção de painéis de azulejos que examinamos, por um trilho sinuoso e pelos grandes momentos da história de Portugal abaixo.
Dotou-a ainda de esculturas, algumas de Budas, e de lanternas budistas. De brasões, de nichos e de lagos habitados por patos, cisnes e carpas nishikigoi.
Apesar desta panóplia de apetrechos, continua a protagonizar a quinta o palácio no seu fundo, bem integrado na excentricidade vegetal e cultural circundante.
À Descoberta das Terras Altas do Funchal: o Monte
Em vez de por aí deixarmos o jardim, exploramo-lo a dobrar, na volta inclinada ao ponto de partida. Deixamo-lo pelo cimo que dá para a rua Largo da Fonte. Umas dezenas de metros para a esquerda, damos connosco aos pés da Igreja do Monte.
A essa hora, o movimento na base da escadaria está limitado ao de uns poucos filhos de Deus que discutem à porta do restaurante Belo Monte, num madeirense de tal forma cerrado, que quase nos faz sentir estrangeiros.
Subimos ao templo. Quando espreitamos o interior da nave, decorre uma missa. Seguem-na dez fiéis, atentos à palavra do Senhor, veiculada pelo padre no altar.
Dois ou três mais entram, uma freira sai. Por respeito ao nosso destino e ao tempo de luz que se escoava, seguimos-lhes os passos, degraus abaixo.
Em plena Pandemia, o sobe-e-desce habitual dos carros de cesto e dos seus carreiros pela ladeira do Caminho-de-Ferro estava suspenso.
No sopé da igreja, encontramos os cestos imobilizados, na vertical, no estacionamento coberto que lhes foi dedicado.
Um Jardim Botânico Também Muito Tropical
Impossibilitados de neles viajarmos, passamos pelo rival natural do Jardim Monte Palace, o Jardim Botânico da Madeira Engº Rui Vieira. Longe das proclamadas 100.000 espécies do Monte Palace, este jardim reclama 2000 plantas exóticas.
Sem espaço no programa fotográfico para as contarmos, admiramos sobretudo o esplendor do seu mosaico vegetal, no momento, cuidado por dois jardineiros compenetrados.
A Madeira é toda ela um jardim que, assim afiança o imaginário popular, flutua no Atlântico. Ao descermos para o Funchal, quase ao nível do oceano, continuaríamos a beneficiar da clorofila reforçada da cidade.
Retomamos a sua exploração na Praça do Município, Rua dos Ferreiros abaixo, em volta da Sé Catedral e da estátua do fidalgo João Gonçalves Zarco (1390-1471), eleito pelo Infante D. Henrique para liderar o povoamento da Madeira e do Porto Santo.
O Jardim Municipal e as Ruas Florestadas Contíguas
Ali por perto, o Jardim Municipal do Funchal, de outra forma chamado de Jardim Dona Amélia, volta a congregar e exibir, árvores, plantas e flores dos quatro cantos do Mundo. Mesmo sendo o terceiro que atravessamos, no Funchal, a contagem de jardins vai sempre no início.
Quase a meio do Verão subtropical, as bancas de fruta desta zona ainda vendem cerejas, sugerem anonas, maracujás e as inusitadas bananas-ananás. Se comparadas com a abundância no sempre frenético e garrido Mercado dos Lavradores, o que exibem são meras amostras.
Ainda na Av. Arriaga e na rua do Aljube, uma floresta de jacarandás e tipuanas floridas perfumam a atmosfera e concedem-nos uma sombra providencial.
Sé Catedral do Funchal. A Fé em Toda a Sua Grandiosidade Insular
A miscelânea arquitectónica da Catedral, que D. Manuel fez erguer entre 1510 e 1515, com traços predominantes góticos mas também barrocos, rococós, maneiristas, mudéjares, alguns também definidos como manuelinos, intriga-nos.
No mínimo, tanto como nos maravilha o famoso retábulo da sua capela-mor, complexo, detalhado em talha banhada a ouro e repleto de esculturas trabalhadas por mãos minuciosas, pinturas a óleo sobre madeira, sob um tecto todo ele elaborado com madeiras da Madeira.
Encantados, em particular, com a perspectiva sul da igreja, tropicalizada por uma palmeira projectada de um átrio, teimamos em encontrar um ponto de vista elevado que nos revelasse o conjunto.
A persistência prenda-nos com uma incursão ao edifício da Direcção de Serviços de Informação Geográfica e Cadastro. Lá nos guia Marlene Pereira “muito habituada às visitas dos fotógrafos e jornalistas em trabalho no Funchal”, assim nos assegura em jeito de preâmbulo duma tagarelice a que nos entregamos sem reservas.
Fotografamos a catedral e os telhados, de início, empoleirados sobre um muro do terraço. Logo, de janelas dos andares abaixo.
Orgulhosa da sua ilha, Marlene faz questão de nos aconselhar os recantos que mais admira e convoca-nos para uma curta sessão de fotos suas, tiradas sobretudo no norte nevoento do Fanal. Uns dias depois, lá nos perderíamos e deslumbraríamos in loco.
Até lá, continuamos a calcorrear a calçada tradicional madeirense, feita de seixos de basalto negro, combinados com pedras alvas e até rosadas, irmanadas com ligeiro relevo, em vez de numa superfície lisa, como se usa no continente.
De tal maneira que, num dos dias, contados 17.5 km de caminhada às voltas pelo Funchal, percebemos que também essa ténue rugosidade era responsável por inesperadas bolhas nos pés.
O Vinho da Madeira Exclusivo da Família Blandy
Em pleno processo da sua gestação, damos entrada na adega histórica Blandy’s, a única família da ilha que se gaba de, sete gerações e mais de dois séculos depois (1811), continuar dona dos destinos da empresa e da produção e exportação do seu mundialmente reputado vinho da Madeira.
Lá nos rendemos a uma prova generosa dos néctares Blandy’s, do seco ao mais doce, escala em que, rendidos ao pedaço de bolo mel incluído, acabamos por nos baralhar.
E lá apreciamos o ambiente pesaroso e o aroma de carvalho francês envelhecido e verdelho da sala de barricas e tonéis.
Há muito que, à margem da fama extraplanetária do fenómeno CR7, o vinho da Madeira faz amadurecer a notoriedade da ilha. Não obstante, na sua esfera popular, o convívio licoroso depende de outra bebida.
A poncha resulta de uma mistura aprimorada de aguardente de cana, casca e sumo de limão e de açúcar.
Com os tempos, começou a ser consumida numa miríade de variantes cada vez mais distantes da receita com que os pescadores se aqueciam nas fainas e noites frias.
E a Poncha Omnipresente na Zona Velha e em todo o Funchal
Hoje, o sector do Funchal com maior concentração de bares, tascas e, claro está, jarros de poncha mantém-se a sua Zona Velha, disposta em redor do lugar que acolheu a povoação na génese da cidade.
É na Zona Velha que encontramos um casal amigo de férias.
E é em tascas e bares da Zona Velha, em redor do âmago religioso da secular Capela do Corpo Santo e para a frente e para trás na Rua de Santa Maria, que celebramos tal reencontro, com golos e brindes de ponchas.
Sendo velha, toda esta zona rejuvenesceu com a panóplia de pinturas de rua que cada vez mais a decoram: Amália, o Principezinho, um tuaregue, pescadores madeirenses em mesas de tascas quem sabe se dali mesmo.
Calha que a meio da manhã seguinte, com as esplanadas ainda fechadas, por ali voltemos a passar.
A Fortaleza e a Praia de São Tiago
A determinada altura, a Rua de Santa Maria desvenda-nos a Rua Portão de São Tiago. E esta, o portal de acesso a uma fortaleza amarela defendida por quatro calhambeques à porta.
Conquistamos a vista a partir dos adarves acima.
Sobre uma extensão marinha ora de laje de cimento, ora dos seixos naturais da Praia São Tiago.
Lá víamos o povo do Funchal rendido a uma bênção balnear atlântica, um lazer estival pouco condizente com as agruras por ali vividas ao longo da história do Funchal.
Sérios Contratempos da História Funchalense
Mais que qualquer outro contratempo, atemorizou os madeirenses o ataque de mil e duzentos corsários franceses, perpetrado em 1566, na sequência do saque da ilha de Porto Santo.
Nessa ocasião, os gauleses confrontaram-se com uma resistência quase simbólica. Sem grande esforço, tomaram o Funchal durante quinze dias, dedicaram-se a pilhar a povoação.
Assim se entende a construção urgente do forte belo e amarelo que continuámos a examinar, inaugurada uns poucos anos depois, em plena dinastia filipina, terminado em 1614 e reforçado com a fortaleza sobranceira de São João Baptista do Pico, dominadora do Pico dos Frias.
E do primeiro forte da ilha, o de São Lourenço, hoje transformado num palácio-museu.
Umas dezenas de metros abaixo e a sul, também a beira-mar portuária em redor da marina foi dotada de novos espaços verdes e tropicais que os funchalenses aproveitam sempre que podem.
Lá por eles passamos, entregues a corridas e caminhadas aceleradas, algumas de tal forma prolongadas que usam o longo molhe da Pontinha como extensão e ponto de regresso a terra mais firme.
Num desses dias, é da Pontinha que embarcamos destinados ao Porto Santo.
Enquanto o “Lobo Marinho” navegava baía fora, admiramos a arte com que o ocaso e o lusco-fusco transformavam o Funchal numa cidade verdejante em fogo.