À boa moda deste lado oriental da Costa Rica, chove a potes durante a noite quase toda.
Amanhece nublado e cinzento. Um manto de humidade remanescente que, aos poucos, o sol tropical se encarrega de dissipar.
Com o irromper da luz, a Natureza atarefada e exuberante que envolve Puerto Viejo de Talamanca entra em acção. Vemos um esquilo determinado a roer a casca dura de um de muitos cocos num cacho pesado e a dali assegurar o pequeno-almoço.
Araras esvoaçam bem acima da selva, um par de tucanos brinca às escondidas em redor de palmeiras-ráfia, de coqueiros e amendoeiras-bravias integrantes do território de duas preguiças.
Por si só, noutras paragens do Mundo, o hotel Caribe Town que nos acolhia, o jardim e o entorno luxuriante já garantiriam um deslumbre imbatível. Estávamos, no entanto, na Costa Rica, da suposta eco-consciência e dos inúmeros parques naturais.
Aquele amanhecer, nas imediações de Puerto Viejo, servia-nos de preâmbulo para alguns dos trechos e cenários mais selvagens e protegidos do pequeno país centro-americano. Apontamos a um deles.
O Caminho Tropical para Manzanillo
A ruta secundária 256 serpenteia pela floresta densa, ainda encharcada, ajustada aos contornos do Mar das Caraíbas que só, a espaços, nos permite avistar.
Assim acontece pouco antes e logo depois da travessia do rio Cocles e da praia que a sua quase foz inusitada banha. Uma ponte de campanha cruza-o num trecho baixo e húmido a dobrar, quase sufocado pela vegetação.
Junto à Punta Cocles, passamos também pelo Centro de Salvamento de Jaguares local, um de vários desses centros, dedicados a distintas espécies da América Central que requerem cuidados específicos.
Mesmo algo afastados da Playa Grande, sabemos o quanto o litoral por ali se arredonda, a caminho da saliência que se segue, a da Punta Manzanillo.
E como a vastidão de árvores e de lianas enrodilhadas, estendida para o interior, pertence já à selva de Gandoca-Manzanillo, que nos servia de destino final.
A estrada desemboca em Manzanillo.
O Pueblo Tico e Algo Rastafariano de Manzanillo
Desvenda uma marginal desafogada, salpicada de coqueiros e servida de umas poucas pousadas e restaurantes.
Um derradeiro, mais lúgubre, básico, o óbvio preferido e frequentado pelos nativos da povoação, exibe um cartaz com dupla função.
Dá as boas-vindas aos visitantes com uma multitude de bandeiras de países em redor da sua orla.
Destacadas no centro, as imagens de Bob Marley, do compatriota activista jamaicano Marcus Garvey, do ex-imperador da Etiópia Haile Selassie e do leão da Judeia, anunciam Manzanillo território rastafariano.
Como o são – ou se esforçam por ser – Puerto Viejo de Talamanca, Cahuita e outros lugares caribenhos da Costa Rica.
Nativos clientes observam-nos passar pela porta, quase em câmara lenta, rumo ao parque de estacionamento, a caminho do trilho de selva e de mar que ali leva toda a gente.
Cumpridos o devido registo e a contribuição monetária, inauguramos o percurso.
As Enseadas Irresistíveis em Redor da Punta Manzanillo
Primeiro, por entre um coqueiral interior pejado de troncos hirtos. Logo, dele saídos, com vista para uma sucessão de pequenas baías sobre as quais os coqueiros da beira se inclinam.
Uns poucos banhistas chapinham, outros namoram.
De tal maneira rendidos à beleza verdejante do cenário e às suas paixões que nem as barbatanas de uns poucos tubarões-de-pontas-brancas-de-recife parecem importunar.
Admiramos o inesperado aconchego marinho. Conscientes de que, no regresso o desfrutaríamos a dobrar, retomamos a caminhada.
O trilho leva-nos a nova Punta, a Manzanillo, onde uma plataforma rochosa elevada serve de miradouro para um Mar das Caraíbas fotogénico e, nesse dia, bravo.
Sucedem-se, ali, os curiosos.
A maior parte são caminhantes que se recompensam com a paragem e a vista.
As Vagas Idolatradas pelos Surfistas e a Roca Manzanillo
Uns poucos são surfistas.
Aparecem a segurar as suas pranchas. Estudam as ondas conceituadas que, um pouco abaixo, se aprestam a surfar.
Um quase-ilhéu reclama um merecido protagonismo.
Baptizado como Roca Manzanillo, quebra as vagas apontadas à base do miradouro e aos areais que o cercam.
Também serve de pouso a uns poucos corvos-marinhos e pelicanos.
Imagem de marca do Refúgio Gandoca-Manzanillo, a visão da rocha aparece-nos mais algumas vezes, de posições distintas do trilho e suas extensões improvisadas, a espaços, em jeito de holograma, a brilhar para lá da penumbra em que a vegetação nos mantém.
Punta Manzanillo Rumo ao Povoado de Punta Mona
No sobe e desce sinuoso do trilho, desvendamos novas praias.
Um trio de surfistas desiludidos com o perfil das vagas adiante, abandonam uma delas.
Prosseguem na direcção de uma tal de La Cueva.
Seguimo-los, mas por pouco tempo.
O canto de tucanos volta a seduzir-nos.
Deixamo-nos perder em busca das aves excêntricas sem nunca nos aproximarmos o suficiente para as fotografarmos, pelo que continuamos.
Passam por nós caminhantes de fato de banho e pé descalço, em trajecto entre Manzanillo e os povoados hippies ou, no mínimo, de vida alternativa, de Punta Mona e Mile Creek.
A lama agravada pela chuvada da noite torna as sucessivas ladeiras um castigo que enfrentamos com paciência e cuidado redobrado.
Partilhávamos, afinal, da consciência de que é a elevada precipitação – entre 2000 e 3000 mm anuais – que faz esta zona do Caribe Sur tão luxuriante e de Gandoca-Manzanillo uma selva que não podíamos enfrentar de ânimo leve.
Uma Fauna e Flora que chega a Intimidar
Por todo o lado, aranhas verdes e negras hiperbólicas teciam enormes teias-armadilha.
Árvores pochote (pachira quinata), forradas de picos aguçados ladeavam as rampas enlameadas.
Por ali, qualquer desequilíbrio ou distração, causaria danos de monta.
Na iminência de uma clareira gerada por uma fazenda, uma família de macacos bugios no cimo de figueiras-da-índia, observa a deselegância com que os primos primatas se locomovem abaixo.
Admiramo-los quando, uma vez mais, o canto e voo de aves exóticas nos desencaminha.
Desta feita, um bando de oropendolas (espécie de papa-figos centro-americanos) esvoaçam em volta de uma colónia de seus ninhos dependurados de copas elevadas.
Os adultos a alimentarem as crias, em plena sustentação.
Cruzamo-nos com um homem a cavalo apontado a Manzanillo.
“O trilho mais para diante, está horrível. Preparem-se para sofrer!” alerta-nos, de um sorriso nos lábios próprio de quem foi tão honesto quanto possível.
Avançamos um pouco mais.
Depressa nos rendemos às evidências de deixarmos a visita a Punta Mona para uma próxima oportunidade. Tínhamos explorado uma pequena, mas fulcral parte do refúgio.
Para lá de Punta Mona, ficavam ainda a praia e a povoação de Gandoca, mais próximas do rio homónimo e do norte do Panamá.
Recuo na História deste Caribe Remoto e a Fundação do Refúgio Gandoca Manzanillo
O Refúgio de Vida Silvestre Gandoca-Manzanillo foi criado, em 1986, num território originalmente habitado pelos nativos bribri da América Central e em que, durante o século XVIII, se instalaram afrodescendentes das colónias britânicas em redor, dedicados à pesca e à captura de tartarugas que há muito por ali desovam.
Mesmo se esta zona remota da Costa Rica nunca viu o desenvolvimento turístico de outras partes, a determinada altura, o agravamento da captura de tartarugas, dos seus ovos e até de outras espécies, levou as autoridades costa-riquenhas do meio-ambiente a ditar a protecção de uma vasta área de selva, praia e de mar, em volta dos recifes coralíferos prolíficos ao largo.
Como sempre acontece, nestes casos, o processo provou-se árduo e complexo.
A expropriação e remoção da maior parte dos povoados e dos seus habitantes teve que ser revertida.
Mais delicada ainda, a luta contra os caçadores furtivos e recolectores de ovos de tartaruga fez-se com esforço e dano pessoal dos rangers e voluntários. Um deles, pagou a sua dedicação à protecção das tartarugas com a vida.
O Rebaptismo do Refúgio em Honra do Mártir Jairo Mora Sandoval
Em Maio de 2013, pouco antes da meia-noite, o ambientalista Jairo Mora Sandoval (natural de Gandoca) e quatro colegas mulheres foram raptados numa praia nas imediações de Puerto Limón (a capital da província do Caribe Sur) por um grupo de homens mascarados.
Apesar de atadas numa casa abandonada, as mulheres conseguiram fugir. Jairo sofreu um espancamento violento de que veio a perecer.
Em sua honra, decorridos quatro meses, as autoridades acederam ao pedido de outros ambientalistas e renomearam o refúgio de vida selvagem que percorríamos de Jairo Mora Sandoval Gandoca-Manzanillo.