Com o tempo, Guanajuato tornou-se uma cidade de rituais.
Tem-nos para todos os gostos. Quem, como nós, lá deu entrada há pouco tempo, começa por se render à ascensão-peregrinação ao cerro del Pípila.
A primeira das subidas, cumprimo-la no funicular panorâmico, com partida das traseiras do Teatro Juárez. Já tínhamos cirandado pelas avenidas, ruas e ruelas, desde a quase orla do Jardin El Contador até ao central e nevrálgico Jardin La Unión.
À medida que a pequena cabine galga a encosta oeste, desvenda-nos algo diferente: a estratificação do casario de Guanajuato, a forma garrida, mas harmoniosa como se moldou ao relevo caprichoso da Sierra de San Gregório, situada numa zona do centro do país que os mexicanos conhecem por Bajio.
Isto, apesar de estar acima dos 2000m de altitude.
O Casario Multicolor Deslumbrante de Guanajuato
A mudança de perpectiva revela-nos como as suas praças e veios urbanos são mais intrincados do que aparentam.
Expõe-nos sucessivos níveis de casario ondulante, lares acima de lares, edifícios e mais edifícios empoleirados, a disputarem as vertentes ressequidas.
Os indígenas Purépecha que habitavam este âmago do México, à chegada dos conquistadores espanhóis, conheciam-no por quanax huato, traduzível por colina(s) das rãs. Os europeus, ajustaram tanto a fonia como a grafia.
A cabine encosta à sua doca. Percorremos uns poucos corredores internos. Logo, outros, exteriores, apontados ao ápice do miradouro.
Quando o conquistamos, a derradeira luz do dia dourava secções altas e felizardas, ora do casario, ora das encostas áridas.
Debruçamo-nos sobre o varandim.
Passamos o olhar de uma ponta à outra das alturas do vale, em busca das bolsas de cor que a sombra poupava.
Enquanto isso, aumentava uma multidão que o anoitecer tornava festiva. Forasteiros mexicanos e gringos entregavam-se a selfies sem fim, com o cenário em fundo.
El Pípila, o Herói da Independência Mexicana de Guanajuato
E a outras que enquadravam a estátua sobranceira de Juan José de los Reyes Martínez, El Pípila.
El Pípila é, por excelência, o herói independentista da cidade. Numa altura em que o líder do movimento e pai da pátria mexicana Miguel Hidalgo abria as hostilidades contra a Coroa Espanhola e os Lealistas, estes últimos fortificaram-se num silo de cereais.
As forças de Hidalgo conseguiram o famoso Cerco da Alhondiga.
Não obstante, os lealistas rebatiam, à bala, quem se aproximava do edifício. Assim foi, até que o mineiro El Pípila atou uma laje de pedra às costas.
Protegido à altura, rastejou até à entrada com um frasco de alcatrão e uma tocha e pegou fogo às portas de madeira da Alhondiga. O colapso das portas abriu caminho à conquista do edifício, da cidade e à independência do México.
El Pípila e a coragem que demonstrou estão eternizados na grande estátua de pedra, adornada com o dito “aun hay otras alhondigas por incendiar”.
Em redor do monumento, divididos entre dezenas de bancas, abundavam distintos fogos e fumos.
A Festa do Fim de Dia do Cerro del Pípila
Em vez de revolução, os da gastronomia mexicana, dos seus antojitos e afins, chapulines (gafanhotos) fritos com limão e picante, champurrados e atoles (bebidas de milho fermentado) com sabor a massapão, a amendoim e outros.
E os mais banais tacos, gringas e burritos, empurrados com conversa animada e com as incontornáveis micheladas.
Esperamos pelo vencer do lusco-fusco. Descemos, a pé, sem rumo definido.
Para o fulcro histórico garrido e exuberante demarcado pela Basílica de Nª Srª de Guanajuato, pelo Teatro Juárez e pela Universidade.
A afinidade que sentimos com Lisboa ao admirar o anfiteatro de casario a partir do miradouro, voltamos a senti-la quando nos deixamos perder nos becos e ruelas, conscientes que, desde que o caminho se mantivesse descendente e íngreme, terminaria no centro alisado da cidade.
Ao chegarmos à espécie de triângulo aparado do Jardin La Unión, a fiesta do cerro El Pípila tem uma extensão.
Músicos mariachis com camisas negras e amarelas lustrosas tocam temas populares de mesa em mesa, confiantes nas gratificações generosas dos espectadores.
Artistas de rua levavam a cabo distintos números.
Os Estudantes, as Estudantinas e as Tunas de Guanajuato
Guanajuato é, em simultâneo, uma das principais cidades académicas do México, comparável a Coimbra.
Abriga quase trinta e dois mil estudantes que seguem o lema “a verdade fará deles livres” e um dos edifícios universitários centrais mais peculiares e impressionantes à face da Terra.
Lá nos detemos a apreciar uma demorada entrega de diplomas.
Na mesma rua, jovens membros de estudantinas, impingem bilhetes para as suas famosas callejoneadas.
São passeios turísticos, musicais, cómicos, pitorescos em que os anfitriões guiam os participantes e os entretêm a tocar uma panóplia de instrumentos e de tudo um pouco.
Nas imediações, damos com Sebastian, enfiado num traje tradicional e na companhia do pai José Manuel. Convidam-nos a entrar.
Para uma casa a transbordar de troféus, batas, batinas, instrumentos, diplomas, fotos de exibições de tunas noutros países, um sem fim de itens académicos.
“Estamos em arrumações, não levem a mal”, confessam-nos. “Se tudo correr bem, este caos vai dar origem ao Museu da Estudantina de Guanajuato.
O futuro museu fica junto a outro lugar emblemático da cidade, também frequentado pelas callejoneadas.
O Santuário ao Amor Concorrido do Callejon del Beso
O callejon del beso é um beco apertado, com apenas 68cm de largura.
Tornou-o famoso a paixão proibida de um casal, Ana e Carlos, que as respectivas famílias proibiam de se ver.
Prendados com a proximidade das suas varandas, Ana e Carlos encontraram-se e beijaram-se amiúde. Até que o pai de Ana os apanhou em pleno beijo e matou a filha com um golpe de punhal no coração.
Hoje, o callejon del beso é visto como um santuário do amor.
Durante boa parte do dia, os visitantes fazem fila para lá se fotografarem a beijar-se.
E, no entanto, na sua génese, Guanajuato teve pouco tempo para romances e sentimentos.
Guanajuato e a Riqueza em Prata e Ouro Sem Fim
A cidade surgiu da prata e do ouro. Aprimorou-se da riqueza recordista que a região escondia em filões hiperbólicos, depositados nas encostas.
À chegada dos espanhóis, em 1540, os indígenas já os exploravam sem dificuldade. Narrativas que chegaram aos invasores, afiançavam que os nativos encontravam pepitas de ouro à superfície do solo.
Os depósitos de minerais provaram-se tão ricos que os conquistadores se apressaram a recrutar defesas e a erguer fortes.
O objectivo era repelirem os ataques dos aguerridos nativos Chichimecas ao recém-nomeado posto de Real de Minas de Guanajuato, pouco depois, promovido a cidade de Santa Fé de Real de Minas de Guanajuato.
Notícias da abundância de ouro e prata correram o México. Logo, chegaram a Espanha. Imigrantes de Espanha, crioulos, trabalhadores mestiços e nativos fizeram aumentar a cidade.
Com mais mãos a prospectar, foram encontrados outros filões e abertas novas minas.
Minas e Mais Minas em Redor de uma Cidade Abastada
À de San Barnabé, seguiu-se a de Raias. Certas minas originaram bairros respectivos: o de Cata, o de La Pastita, San Luisito e Valenciana.
A mina pioneira, a de San Barnabé, produziu quase meio milénio, até 1928.
Outras, mais recentes, provaram-se ainda mais lucrativas e continuam a gerar riqueza.
É o caso da de Valenciana, operacional a partir de 1774, e que, até ao início do século XIX, chegou a produzir dois terços da prata do Mundo.
Num dos dias dedicados a Guanajuato, visitamo-la. Ao contrário do expectável, a curta viagem faz-se ladeiras acima, rumo ao cimo norte da cidade, lá onde o casario quase toca o céu.
Passamos por igrejas majestosas, encomendadas com financiamento das famílias proprietárias das minas, como agradecimento ao divino pela sua boa fortuna.
Destaca-se, por ali, a igreja churrigueresca (de estilo barroco mexicano) de La Valenciana, erguida no século XVIII junto à abertura da mina homónima.
Com a sua torre direita ainda por terminar, ao contrário das muralhas e do baluarte que, mais abaixo, permitia defender a riqueza dos bandidos.
Descemos aos 70m de profundidade de um dos poços. Lá sentimos a atmosfera claustrofóbica em que foram mantidos a trabalhar, por vezes, mais de quinze horas por dia, cerca de 3500 indígenas.
Segundo nos esclarece o guia Edgar, os veios de metais preciosos e as minas abertas surgiram um pouco por todo o lado.
Nem todas as escavações da cidade foram feitas por razão directa do ouro e da prata.
Guanajuato, a Cidade dos Túneis
Guanajuato assenta numa extensa e intrincada rede de velhos túneis, com quase 9km, se somados os comprimentos do El Pípila, do El Minero, do La Galereña e restantes.
Estes túneis, foram abertos por uma razão primordial: a época das chuvas fulminante destas partes do México e as inundações geradas pelo engrossar do rio Guanajuato.
Formam um estranho submundo que, a espaços, se abre ao céu e de que voltam a despontar casas e edifícios com visuais de legos pós-coloniais. Guanajuato tem todas estas dimensões e cores.
Em quase quinhentos anos de história e de uma colonização abastada, oculta muitas mais.