Uma Epopeia Ferroviária
26. Foram vinte e seis as horas de comboio as que nos levaram de Lijiang, na província de Yunnan via Dali e Kunming, até à distante Guilin.
Ignoramos o Natal numa qualquer carruagem espartana, deslocados numa comunidade pós-Comunista de sino-passageiros pouco dados a tais crendices. Nem às cristãs, nem às pagãs. Determinados, sim, a celebrar os momentos a bordo com o apego de outros quaisquer.
Um passeio descomprometido pelo corredor revela-nos pequenos torneios de mahjong e de cartas, banquetes de noodles instantâneos e conversas tão animadas que nos soavam a discussão.
Quase 1500km após a partida, sem nunca pormos os olhos noutros forasteiros, praticamente à mesma latitude da origem, a composição que há muito avançava entre arrozais mirrados pelo frio Invernal, desliza destino final adentro.
Pouco passa do meio-dia quando se imobiliza na estação Guilin West. Tínhamos dormido o possível nos lugares-cama cimeiros que nos calharam. Mesmo assim, ao percorrermos a plataforma, ainda sentimos o balanço do comboio e arrastamo-nos e à bagagem à laia de mortos-vivos em busca de sentido naquele escoador ferroviário da civilização oriental.
Um Descanso Ainda Melhor que o Merecido
Por sorte, tínhamos conseguido estadia num dos hotéis mais sofisticados e acolhedores da cidade. Cumprido um curto trajecto de táxi e um rápido check in, entregamo-nos aos portáteis mas acabamos por nos rendermos à cama acolchoada e aconchegante, apostados em recuperarmos os corpos e as mentes da canseira a que nos tínhamos submetido.
Despertamos já de noite, famintos, mas com energias suficientes para caminharmos pelos arredores do hotel em busca de um pouso poupado para jantarmos.
Está escuro. Um escuro peculiar. Aqui e ali, profanado por uma ou outra iluminação de rua, o breu prova-se quase alvo tal é a humidade que envolve a cidade e, naquela altura do ano, apostávamos que toda a província de Guangxi.
Apertamos os agasalhos para protegermos os ossos da cacimba. Mesmo sem sabermos qual o melhor rumo, metemo-nos a caminho. O hotel ficava numa zona destacada do casario urbano, entre os bairros de Sanliancun e de Xiacun, na iminência do rio Li e da ponte da rua Huancheng North que o atravessava.
A Noite Nevoenta de Guilin
Avançamos no sentido oposto ao rio, guiados por luzes que a névoa distorcia mas que indiciavam um qualquer nicho de civilização. Alternamos entre a berma da estrada e uma outra via lateral, salpicada de árvores.
De início, pensamos tratar-se de um refúgio pedonal pelo que caminhamos despreocupados com o trânsito. Isto até que uma motoreta fantasma surge do nada e nos força a um quase salto de emergência. Era a primeira. Não seria a última.
Nos últimos tempos, as motas e pequenos carros eléctricos pegaram de moda na China, muito graças à poupança de custos em combustível que proporcionam.
Mas, o desrespeito epidémico pelas regras e sinais de trânsito validava que, apostados em prolongar as cargas das baterias, os seus condutores circulassem de noite, daquela forma, com as luzes desligadas, sem qualquer intenção de buzinar, fosse qual fosse o imprevisto.
Um restaurante aberto mas deserto de clientela abrevia-nos a caminhada. Instalamo-nos. Pedimos os chao fàn e miàn tiáo (arroz semi-frito e massa com vegetais) que sabíamos ideais para encher a barriga e simplificar processos. Devoramo-los com a avidez de quem há dois dias não via uma refeição empratada, regressamos ao hotel, aos portáteis e ao sono.
Novo Dia, o Mesmo Nevoeiro
Tomamos o pequeno-almoço na companhia de Ruby Zhu, a Communications Manager do hotel. Ruby nasceu em Xian. Estudou em Amesterdão, visitou a Alemanha e a Bélgica e habituou-se à liberdade europeia.
Não se furta a comunicar, seja qual for o tema: “nós não vamos à bola com os japoneses… as TV’s do hotel têm que ser boas. Não queremos as chinesas porque ainda estão longe disso. Mas também não compramos as japonesas. Compramos as coreanas. As coreanas são boas e as fábricas deles estão na China, por isso, ajudamo-los.”
Com a manhã a esgotar-se demais para o nosso gosto, encurtamos o convívio. Saímos disparados para a cidade.
Isolada do centro da China pelas montanhas Nan, a província de Guangxi sempre se manteve à parte, tanto em termos geográficos como no imaginário dos chineses de outras partes, que lhe atribuem uma boa dose de misticismo, visível nas ilustrações artísticas de incontáveis restaurantes chineses, na China, e por esse mundo fora.
Da Indústria à Aposta na Ecologia
Um canal baptizado de Ling, aberto em tempos ancestrais (II a.C), permitiu que pequenas embarcações navegassem do rio Yangtse para o Xi, através de um outro, o Xiang. Daí em diante, o comércio despontou e desenvolveu-se sem retorno. Numa vasta zona fluvial e com forte pluviosidade, a agricultura não tardou a conquistar o seu espaço. Garantiu o sustento de centenas de milhares de almas entretanto para ali migradas.
Avançamos no tempo. Por altura da 2ª Guerra Mundial, Guilin contava com uma população de mais de dois milhões quando serviu de base para sucessivos ataques contra as forças invasoras nipónicas. Sem surpresa, sofreu a retaliação dos japoneses. Foi arrasada.
As autoridades esboçaram uma recuperação assente na instalação de várias fábricas poluentes. Mais tarde, quando a paisagem circundante suscitou a admiração do mundo, a aposta no marketing turístico da região, obrigou à expulsão dessas fábricas.
Guilin continuou a desenvolver-se no registo ecológico pretendido. A cidade é agora a terceira de Guangxi, a seguir à capital Nanning (quase 7 milhões de habitantes) e a Liuzhou (4 milhões).
A Guilin urbana não acolhe sequer um milhão de habitantes mas recebe 3.2 milhões de visitantes todos os anos. À data deste texto, Guilin não integrava um único prédio com mais de vinte andares, um caso raro na China contemporânea, apostada em crescer em todas as direcções incluindo a do céu.
Monumentos que Acompanharam a História
Mesmo erguido durante a dinastia Ming (1372 d.C. a 1392 d.C), o Palácio amarelo do Príncipe de Jingjiang que encontramos a 4km, do lado de lá do rio Li, parece concorrer pelo azul do firmamento com um dos penhascos abruptos e afiados que despontam do solo, um pouco por toda a parte.
Surge em plena Cidade Interior, o âmago histórico de Guilin com 630 anos, mais antigo que o da Cidade Proibida de Pequim. Hoje, tal como constatámos pela quantidade de jovens a por ali passar, funciona como a Universidade de Guangxi mas, nos 257 anos decorridos desde a sua construção até ter sido danificado durante a dinastia Qing, o palácio acolheu catorze reis de doze distintas gerações.
Não só. Durante a Guerra Civil Chinesa, o fundador do Kuomintang Sun Yat-sen também lá se alojou, durante a Expedição do Norte (1926-1928) em que o Exército Nacional Revolucionário Chinês procurou derrotar o Governo de Beyiang com sede em Pequim e outros senhores da guerra para assim reunificar a China ainda dividida devido a efeitos imprevistos da Primeira Revolução Chinesa.
Um Pico Solitário com Vista Panorâmica
Demoramos tempo a assimilar a história complexa do lugar. Bem mais que a beleza do complexo muralhado, organizado em redor de quatro grandes pavilhões, quatro salões e quarenta outros grandes edifícios “à sombra” do imponente Solitary Beauty Peak, um outro morro aguçado situado quase sobre o rio Li e a que temos o bom senso de subir pela escadaria íngreme e sinuosa. Sabemos que atingimos o cume quando, extenuados, damos de caras com o pequeno pagode que o coroa.
Daquele cimo destacado de que, durante o Verão, pende uma vegetação farta, contemplamos a vista a 360º: o casario de Guilin para diante, sobretudo à esquerda do rio Li que retalha a cidade.
A maior distância, em quase todas as direcções, as silhuetas das colinas pontiagudas abundantes nestas partes do norte de Guangxi e que formam o Império de Rocha deslumbrante da região, o domínio de Leye-Fengshan, declarado geopark tal é o virtuosismo geológico dos seus incontáveis penhascos, grutas e câmaras subterrâneas de calcário.
Mal a Primavera se insinua, este cenário atrai uma horda ansiosa de espeleólogos, escaladores e aventureiros em geral dispostos a arriscar (pelo menos um pouco) as vidas em honra da imponência e excentricidade da Natureza local. Ainda estávamos a meio do Inverno. De acordo, tal como acontecia no topo do Solitary Beauty Peak, os visitantes eram sobretudo chineses de férias após o período ocidental da Passagem d’Ano.
A Vida Ribeirinha nas Margens do Li
Regressamos ao nível do solo e à margem do Li, apontados a outra sua peculiaridade, a Elephant Trunk Hill. Pelo caminho, protegidas de eventual chuva debaixo de uma ponte, um batalhão de mulheres munidas de tambores e que seguravam tiras de tecido lustroso, ensaiavam movimentos de uma qualquer parada em que iriam participar.
Mais à frente, uma frota de pescadores sentados sobre o mesmo número de jangadas de bambu, as tradicionais do Li, pescavam sobre as águas gélidas e quase imóveis do rio.
A Elephant Trunk Hill forçou-nos a 5km de caminhada. Identificamo-la, claro está, pela forma que lhe dá o nome, notória por um morro comprido terminar já sobre o rio com um enorme orifício que, após a época das chuvas, fica reduzido a metade.
Prosseguimos ao longo do Li, na direcção da Fubo Hill, uma outra colina de calcário com o sopé esburacado pela erosão e com três grutas independentes. Incluindo a Thousand Bhuddas Cave, recheada de esculturas de Buda ali conquistadas às paredes rochosas durante a dinastia Tang (608-907 d.C.).
Estão 8 ou 9 graus. Indiferente à frescura e para espanto de uma comitiva que apreciava o rio a partir de aberturas da gruta, um morador de Guilin decidido a preservar a juventude do corpo, nada ali em frente. Esbraceja na água esverdeada, em absoluto contraste com um pescador encasacado que o contempla com indiferença, sobre o limiar do penhasco.
Como acontece por toda a China, comerciantes de recordações mantêm nas imediações uma banca dotada de trajes coloridos das diversas minorias étnicas de Guangxi: os Zhuang, os Yao, os Hui, os Miao e os Dong. Uns atrás dos outros mas bem espaçados, os sino-turistas chineses vestem as suas vestes preferidas e fazem-se fotografar em reboliço.
À Descoberta da excêntrica Guilin Lacustre
Regressamos ao centro da cidade. Lá procuramos por outro dos seus refúgios emblemáticos de tranquilidade e lazer, o lago urbano de Fir (Shanhu). Quando chegamos, grupos de habitantes sincronizam as almas de acordo com as coreografias do tai-chi enquanto o dia curto do Inverno chinês se desfaz.
O intensificar do lusco-fusco faz realçar os dois pagodes quase gémeos que se projectam do lago. Tratam-se do Sol e do Lua, também conhecidos por Prata e Ouro, e iluminados a condizer. Não seriam os últimos pagodes que apreciaríamos nem naquela noite nem em Guilin.
Saímos disparados. Apanhamos um táxi para o hotel. Pelo caminho, detemo-nos em Mulong, um outro lago parte do itinerário aquático “dois rios, quatro lagos” da cidade. Mulong tem tudo para ser importante mas encontramo-lo sem vivalma, relegado a um aparente plano secundário.
Completamente sós, deslumbramo-nos com o exotismo asiático daquele outro cenário histórico, encaixado entre dois enormes penhascos ligados por uma ponte em arco. Também o conjunto está iluminado, de forma ainda mais exuberante que os pagodes Sol e Lua.
Por fim, encontramos um funcionário. A muito esforço, explica-nos que só em época alta abrem os pequenos restaurantes e é levado à cena um espectáculo temático. Naquela altura, o lugar servia apenas para acolher eventos e celebrações particulares.
Já com a noite cerrada, surgem os primeiros convidados de uma delas. Nós, concedemos-lhe a exclusividade contratada e recolhemos ao hotel surpreendidos e satisfeitos com o que a cidade nos revelara. Na manhã seguinte, mudamo-nos para Yangshuo e começamos a explorar o cenário mágico de água e pedra que envolve Guilin.