Ainda nos faltava perceber onde encontrar o chá que subsidiou o desenvolvimento da povoação.
Deixamos a Galp, retornamos à frente do hospital, onde pedimos direcções. Dizem-nos para seguirmos um caminho enlameado, repleto de poças alagadas.
Afastamo-nos da secção colonial e mais antiga da cidade, entre casas e lojas abarracadas que, às tantas, dão lugar a um musseque de tijolos, barro e chapa.
Por ali, duas equipas de jovens irrequietos disputam uma pelada sobre um aterro. Olga Veloso e o companheiro defrontam-se num tabuleiro de ntchuva desenhado na terra vermelha em frente à sua casa.

Moradores de musseque jogam num jogo ntchuva desenhado no chão.
Teresa, uma vizinha, lava roupa, acocorada sobre um balde de um amarelo-torrado bem menos garrido que a blusa e o véu hijab escarlate que usava.
Detemo-nos à conversa. “Boas festas” deseja-nos Teresa. “Boas festas, porquê?” indagamo-la. “Ah, não sabem? Hoje é Dia da Mulher Moçambicana.”
A Visão Inaugural do Chá de Gurué
Devolvemos-lhe os votos. Enquanto tagarelamos, aproximamo-nos do limiar do seu quintal.
Por diante, estendia-se um panorama de montanha grandioso.

Teresa lava roupa na sua casa na orla de Gurué, com vista dos Montes Namuli.
Num plano mais próximo, uma lomba de um verde resplandecente, forrada, sobretudo, de plantas de chá recém-colhidas. Detectamos vários sulcos abertos nessa lomba.
Faltava-nos saber como ir até lá e como poderíamos, de lá, ascender na cordilheira Namuli.
Nesse hiato, à boa moda maneira africana, cerca-nos um grupo de catraios curiosos. Entusiasmados pela intrusão dos mzungos, oferecem-se para nos explicarem o caminho.
Sem que com isso contássemos, acompanham-nos doze ou treze miúdos, decididos a nos escoltarem serra acima.

Crianças dum musseque da orla de Gurué
Transmitimos aos mais velhos que só precisavam de ir até à crista da lomba. Que, daí, nós continuaríamos e eles deviam regressar. Lá nos explicam, o melhor que sabem, onde começava a subida.
Duas miúdas afiançam-nos que íamos passar por uma Santinha.
Decorridos vinte minutos de ascensão improvisada por novos sulcos no chá, livramo-nos do mato para a traseira de uma casa. Aparece um homem. “Vocês gostam de fazer as coisas difíceis! Então porque é que não subiram pelo caminho normal?”
Quem nos interrogava era o sr. Gonçalves “Macobo”, mais conhecido por Gonzo. Gonçalves habitava aquela casa fazia dezasseis anos. Era responsável pelo chá em volta, com quatro outros vigias a seu mando. Falamos um pouco.
O possível, tendo em conta que Gonçalves tinha a visita de um casal que não queria deixar pendurado. “Agora só têm que seguir este caminho mais largo. Não se ponham a inventar!”
Assim fazemos.

Cascada cai ao lado da Santinha na orla de Gurué
Montes Namuli Acima, até à velha Casa dos Noivos
Adiante, damos com uma pequena queda d’água. À esquerda, encontramos um nicho encrustado na rocha.
E, no interior, uma estatueta alva da Virgem Maria.
Era a Santinha a que se referiam as miúdas.

Santinha: Nª Senhora num nicho ao lado de uma cascata na encosta dos Montes Namuli
Continuamos.
Sobrevoam-nos, de árvore em árvore, turacos, a ave nacional da Suazilândia.
À medida que o caminho sobe e ziguezagueia, prenda-nos com vistas desafogadas na savana.
Do casario de Gurué e dos musseques em volta. Da vastidão da Zambézia virada a noroeste, de que despontavam mesetas e picos.

Vista do relevo da Zambézia, visto duma encosta dos Montes Namuli
Uns ermos, outros alinhados e com formas sortidas.
Tínhamos como derradeiro objectivo uma tal de Casa dos Noivos de que nos haviam também falado no musseque e que de lá não víamos por estar no fundo de um eucaliptal.
Andamos a bom andar.
Por duas vezes, cruzamo-nos com camponeses carregados que nos dizem que era só continuarmos.

Ruínas da Casa dos Noivos, abandonada numa encosta dos Montes Namuli
Até que damos com o eucaliptal e, após lhe circundarmos a base, dissimuladas num mato crescido, com as ruínas da Casa dos Noivos da Companhia Zambézia, uma antiga propriedade colonial com vistas impressionantes que conquistou o seu epíteto por ser uma das preferidas da região para luas-de-mel e afins.
Escurece a olhos vistos. Ataca-nos uma frota de melgas sedentas de sangue. Deixam-nos apreensivos com possíveis malárias.
Ditamos a retirada.
De Volta a Gurué, na Noite da Mulher Moçambicana
Quase a corrermos caminho abaixo, mas com incontáveis pausas para fotos de cada vez que o crepúsculo nos implorava por atenção para os cenários da Zambézia, ainda mais irresistíveis que na subida.
Reentramos em Gurué uma hora depois do escurecer. Derreados e extasiados.
Por ser Domingo, Dia da Mulher Moçambicana e véspera de uma ponte-feriado, encontramos a cidade numa festa que irradiava do Jardim Municipal.

Grupo de mulheres na noite do Dia da Mulher Moçambicana
Incluindo o bar-restaurante “Arina”, à pinha de convivas nos seus melhores trajes domingueiros. Por novo favor especial da Dª Lídia, é lá que jantamos.
Despertamos moídos de tanto calcorrear, mas prontos para mais.
Retínhamos a existência de umas poucas UPs (Unidades de Produção) erguidas pelos portugueses para processamento do chá e legadas a Gurué.

Mulheres e recém-nascido à sombra do sol tropical de Gurué
Pedimos a um motoboy o Justino e a um colega que nos explicassem onde ficava cada qual e como operavam.
Visita Frustrada à Unidade de Produção 5
Decidimo-nos por apontar à UP5. Dois motoboys conduzem-nos N103 abaixo. Logo, pelo desvio de terra batida que, entre arvoredo, conduz à fábrica.
Um funcionário que controla a cancela da Chazeira de Moçambique detém-nos.

Uma das unidades de produção de chá activas de Gurué
Lamenta, mas não nos pode deixar passar sem permissão do patrão. “O patrão deve estar a chegar, já fala com vocês!”
Dá-nos passagem para uns escritórios que podíamos jurar que se mantinham os deixados pelos portugueses. O patrão – dizem-nos que um moçambicano de etnia chinesa vindo da Beira – tarda em aparecer.
Em vez, surge um subchefe, indiano de Kerala. “… aqui raramente damos acesso a fotógrafos sem um pedido e permissão prévios” comunica-nos. “Então e quanto tempo é necessário?” retorquimos. “Depende, três dias, pode ser cinco ou até mais.”
Frustramo-nos.
Não seria a primeira unidade processadora de chá que visitávamos, longe disso. Seria, sim, a primeira em Gurué e com uma génese colonial que queríamos documentar.

Rapariga carregada, acima da UP4 de Gurué
Desistimos.
Chamamos Justino. Ao se inteirar, explica-nos que estes bloqueios estavam sempre a acontecer. “Contaram-me que, quando entram pessoas e fotografam os trabalhadores, eles levantam problemas aos capatazes e ao patrão.
Pedem dinheiro. Ao que parece, o “boss” fartou-se!”.
A UP4 e o Caminho Divinal de Chá paras as Quedas
Pedimos a Justino para nos levarem às quedas d’água mais famosas e fotogénicas da região. O caminho pedregoso massacra-nos.
Deixa-lhes as motas a perder óleo e a fumegar. Mas renova-nos o deslumbre do dia anterior.

Panorama no vale Licungo e sua plantação de chá
O caminho serpenteava por um vale fluvial com encostas abruptas.
Emulava o trajecto de um rio esguio no seu fundo. Esse rio, o Licungo nascia mais acima, sobre os 2000m de altitude dos montes Namuli.
Deu o nome a um dos chás mais emblemáticos e exportados alguma vez produzido por Portugal.
Ora, as quedas em que os motoboys nos deixam, faziam parte do Licungo mas pareciam mergulhar no mar de chá legado pelos portugueses.

Queda d’água entre chá numa encosta dos Montes Namuli
Fotografamo-las e às plantações, entusiasmados, por demasiado tempo.
Depois, encetamos a descida na direcção da UP4 que já tínhamos atravessado, pelo meio de plantações e de cenários de uma beleza sem igual.
Cruzamo-nos com nativos que ascendem de Gurué e da UP4 rumo às suas casas nas terras mais altas da cordilheira.

Camponeses num caminho abaixo da Casa dos Noivos
Como nós, também o sol desce.
Aos poucos, doura as falésias, gera silhuetas de árvores africanas que sublinham o garrido dos tons.
Reentramos no domínio da UP4, já com a sombra a instalar-se em volta e uma luminosidade fulminante a destacar os socalcos de chá que almejavam as alturas dos Namuli.

A velha Unidade de Produção 4, entre o rio Licungo e os Montes Namuli
Com a noite a cair, o lugar parece-nos demasiado sublime para nos contentarmos.
Na manhã seguinte, regressamos.
A tempo da apanha do chá, que decorre, aliás, em mais que uma área das plantações. Como alvitrado por Justino, a nossa presença levanta uma insatisfação que se alastra.

Apanhadores de chá carregados, acima do rio Licungo
Obriga-nos a muita conversa sensibilizadora e a um pagamento comunitário que, tendo em conta a quantidade de trabalhadores, se prova curto e suscita focos de indignação.
Agradecemos o melhor que podemos.
E despedimo-nos, decididos a espreitarmos a UP4. Ao contrário da UP5, esta unidade de produção estava inactiva no que dizia respeito ao processamento de chá.
Em vez, tinha sido transformada numa embaladora de águas e refrigerantes que aproveitava as nascentes e fluxos originados nos Namuli.

Professoras da escola da UP4 de Gurué
À entrada do complexo, numa escola espartana, Tânia e Fátima, duas jovens professoras formavam boa parte da criançada que morava em redor.
O Rio Licungo. Epónimo do Famoso Chá Licungo
Outra parte, encontramo-la quando atravessamos a ponte sobre o Licungo e o acesso à cidade.
Num frenesim multicolor de mulheres, roupa e de miúdos que se serviam do rio para lavagens e secagens, para banhos, tropelias, tarefas maternais e agrícolas, num caudal de vida que nos volta a reter e a fazer perder noção do tempo.

Lavadeiras e crianças no rio Namuli, orla de Gurué
Ao vermos o sol cair para trás de um pico rochoso, resolvemos voltar à cidade a pé.
A decisão revela-se uma vez mais enriquecedora. Ainda no trecho plano do caminho, com o monte Murresse a insinuar-se na distância, percebemos que uns poucos bandos de aves voavam e grasnavam na nossa direcção.
Acompanhamo-las com o olhar.
Sem que o esperássemos, pousam nas copas de uns eucaliptos seculares projectados bem acima estrada. Quando apontamos as teleobjectivas, percebemos que eram calaus bicórnios, uma subespécie exuberante e esquiva, que não contávamos ver por aqueles lados, muito menos que se instalasse por ali.
Escurece. Ao ponto de só o luar nos revelar o cimo arredondado do Muresse. Quando reentramos, a cidade já se havia recomposto do fim-de-semana prolongado.
Estávamos há sete dias em Gurué. Mais do que tínhamos planeado. Bem menos do que Gurué merecia.
Na manhã seguinte apanhamos um chapa para Mocuba. Com a companhia do sr. José Marques Santos e da esposa, portugueses octagenários, de Celorico da Beira.
Desde 1950 que viviam em Ile, a uns poucos quilómetros de Gurué. Nem as guerras nem ninguém os tinham convencido a voltarem a Portugal.
COMO IR
Voe de Lisboa para Maputo, com a TAP – flytap.com por a partir de 800€ ida-e-volta. De Maputo, poderá voar com a LAM até Quelimane onde poderá alugar um jipe ou uma pick up e viajar até Gurué.
Reserve o seu programa mais amplo de Moçambique com a Quadrante Viagens: quadranteviagens.pt