Sammy não tem ar de quem usufrua muito do ar livre e do sol.
Ainda assim, celebra, de forma cautelosa, o já longo período de bonança na meteorologia da Tasmânia e de, Hobart, a capital.
“Tem estado fabuloso, mas não pensem que isto é sempre assim, afiança-nos a adolescente, debaixo dos óculinhos redondos, enquanto partilhamos um fish & chips oleoso. “A Antárctida é já ali em baixo e, mesmo de Dezembro a Fevereiro, temos períodos de chuva e vento que nos levam ao desespero”.
A esplanada em que convivemos ocupa parte de uma das docas do porto de Hobart e prenda-nos com a vista de centenas de veleiros e outras embarcações amaradas nos seus abrigos.
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Embarcações ancoradas numa doca de Hobart
Sydney-Hobart: uma Regata Mortal
A prova realiza-se, todos os anos, a 26 de Dezembro, no feriado anglófono de Boxing Day.
Como o nome indica, a sua rota de quase 630 milhas náuticas (quase 1200 km) tem início em Sydney, prossegue para sul, ao longo do Mar da Tasmânia, continua pela costa da ilha e termina na sua capital.
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Prédios clássicos contra outros mais modernos, em Elisabeth Street, uma rua pedestre de Hobart
A competição é conhecida pela dureza e pela quantidade de desistências e acidentes.
Na edição de 1998, por exemplo, as embarcações participantes encontraram uma tempestade a roçar o estatuto de furacão. Os ventos passaram os 70 nós e geraram vagas imensas.
Ao mesmo tempo, apesar de estarmos a meio do Verão austral, nevava em partes do sul da grande ilha. Dos 115 veleiros que zarparam do continente australiano, apenas 44 conseguiram atravessar o Estreito de Bass e chegar a Hobart, cinco barcos afundaram e morreram seis tripulantes.
Este foi só o pior dos casos.
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Veleiros atracados junto a uma de várias marisqueiras do porto de Hobart
Da Descoberta de Tasman ao Degredo
Também Abel Tasman, o primeiro europeu a avistar a Tasmânia, em 1642, se terá deparado com condições adversas. E com fúrias idênticas daqueles mares meridionais terão agravado o sofrimento dos milhares de condenados que, a partir de 1803, foram degredados, de início, para Risdon Cove – a segunda colónia britânica na Austrália – mais tarde, para outras partes da Tasmânia.
Em poucos anos, Hobart substituiu Risdon Cove e destacou-se das demais povoações pioneiras. Tornou-se na segunda cidade mais antiga do país (a seguir a Sydney) e na capital de estado australiana situada mais a sul.
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Vivendas ocupam toda uma encosta nas imediações de Hobart.
O seu casario surge comprimido entre as encostas íngremes do monte Wellington (1210 m) e o estuário amplo do rio Derwent em que se prolongam as estruturas marítimas do Battery Point – o coração histórico da cidade – e da Constitution Dock.
Salamanca Place: Um Mercado à Moda Antiga
Enquanto caminhamos por estas zonas ribeirinhas organizadas em função dos armazéns georgianos construídos para suportar o comércio que entretanto se desenvolveu, descobrimos a arquitectura herdada desses velhos tempos em que, até à anunciada extinção, os aborígenes se viram obrigados a ceder a terra que detinham.
Também descobrimos um mercado fiel à atmosfera ali vivida nas primeiras décadas da era colonial. É sábado de manhã e animam-se mais uma vez as ruas e o jardim de Salamanca Place.
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Compradores abastecem-se no mercado de Salamanca Square
Apesar de semanal, o evento leva Hobart ao rubro e atrai gente de toda a Tasmânia.
Centenas de bancas sucedem-se num espaço rectangular em que os compradores e visitantes se aconchegam e vão percorrendo vezes sem conta.
Umas exibem produtos naturais e caseiros como as frutas mais vistosas da ilha e os doces e compotas a que deram origem. Outras promovem artesanato, o típico e o criativo, pensado e executado nas casas dos artistas locais. Outras ainda sugerem peças de roupa e de decoração excêntricas ou propõem jogos de perícia eventualmente viciados.
O ambiente é místico, com resquícios de uma época oitocentista que a distância das grandes cidades australianas continua a validar.
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Mulher passa em frente a uma banca de produtos “tassie” criativos.
Impõem-se à multidão as paredes amareladas de arenito dos velhos armazéns, em tempos, no pólo da actividade baleeira e comercial de Hobart, hoje transformados em restaurantes e bares que concentram a vida nocturna da cidade.
Há mais história no nome do lugar e do mercado que homenageia a longínqua vitória do Duque de Wellington na Batalha de Salamanca, travada, em 1812, junto à cidade castelhana.
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É sábado de manhã e uma multidão examina as tendas do mercado mais famoso de Hobart, o de Salamanca Square
Uma Banda de Gaiteiros de saias. A Herança Escocesa de Hobart
Um grupo de gaiteiros vestidos a rigor, toca com determinação no jardim.
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Gaiteiro toca durante o mercado de Salamanca Square
Logo ao lado, dezenas de buskers disputam o tempo e atenção dos transeuntes.
Enquanto uns actuam, outros aguardam pela vez e ensaiam ou metem-se com quem passa para disfarçar a ansiedade.
Surgem músicos e malabaristas, recitadores de poesia e contorcionistas. Os mais versáteis reúnem um pouco de cada arte e, quando as conciliam com humor, são vangloriados por plateias em êxtase.
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Adolescentes tocam numa rua, em pleno mercado de Salamanca Square por alguns dólares australianos.
Detemo-nos o tempo necessário de cada vez que um novo busker se anuncia e exibe à multidão. Com recurso a monociclos, diábolos, maças e até moto-serras, os talentosos artistas-pedintes divertem os clientes da feira sem pressas.
Em troca, estes, enchem-lhes os chapéus e as caixas de sapatos de dólares australianos.
A um deles – El Diabolero – sobra boa-disposição para brincar com quem se vai embora sem contribuir. “Vocês aí ao fundo que não têm trocos, não se preocupem. É só virem aqui ao terminal multibanco!”.
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Artista de rua leva a cabo o seu número, cercado de visitantes do mercado de Salamanca Square
Há uma generosidade espontânea entre a população de Hobart e da Tasmânia em geral. E uma admiração incondicional pelas formas alternativas de vida.
Os Condenados Britânicos que Condenaram os Aborígenes
Dos primeiros 262 europeus a habitar a colónia penal britânica, em 1863, 178 eram condenados. Para muitos, a aventura nos antípodas representou um prolongamento da violência, graças aos confrontos permanentes com a tribo aborígene semi-nómada Mouheneener.
Como noutras partes da Austrália, o poder de fogo dos colonos reforçado pela devastação biológica perpetrada pelas doenças que traziam do Velho Continente depressa desmobilizaram os indígenas.
Além de cederem os seus territórios, entre 1829 e 1834, estes, foram deslocados para uma reserva na ilha de Flinders onde deveriam ser convertidos ao Cristianismo e aos modos civilizados.
Quase toda a população indígena morreu de doença e de desespero e, no fim do século XIX, já não existia nenhum nativo de sangue completamente aborígene na Tasmânia.
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Homem empoleirado segura uma criança.
Apesar de a sua cultura ter cedido quase por completo à europeia, os genes estão presentes em comunidades mistas geradas, desde 1798, quando alguns caçadores de focas formaram famílias com mulheres aborígenes e se estabeleceram em Flinders e noutras ilhas do grupo Furneaux.
Trezentos e sessenta e oito anos depois de o navegador holandês Abel Tasman ter descoberto a ilha para o Ocidente, vários milhares dos 500.000 habitantes da Tasmânia são descendentes destas comunidades.