São 8h30. Mohammed espera-nos à porta do Miti Miwiri, entre as duas árvores em que, sem grandes pretensiosismos, se inspirou o nome quimuane do hotel.
Saudamo-nos. Abreviamos uma já de si curta conversa inaugural. Sabíamos que iríamos seguir pelo leito que o recuo do mar nos concedia e que, à sua hora, o mar regressaria sem mercê. Assim mesmo, metemo-nos a caminho, Mohammed na dianteira, nós, seus fiéis seguidores.
Avançamos para sul, ao longo do litoral da enseada mais profunda da Ilha do Ibo, pelo trilho que, adiante, passa em frente ao velho cemitério português. Não chegámos a revê-lo.
Da Terra Firme ao Leito Exposto e aos Canais do Mangue
A determinada altura, Mohammed sinaliza-nos o ponto em que descíamos da estrada de terra para o solo ora estriado ora enlameado, aqui e ali salpicado de poças, legado pela vazante. Pouco depois, entre árvores regadas pelas chuvas e pelos sucessivos ciclos da praia-mar e, logo, por um trilho inundado que serpenteava pela floresta de mangal.
“Isto que estamos a percorrer foi aberto com máquinas pelos portugueses. Daí para cá, como as pessoas o usam todos os dias, não voltou a fechar.”
Aos poucos, o riacho aumentou de largura. Passaram a ladeá-lo rebentos de mangal, projectados do solo como estalagmites vegetais que nos obrigavam a andar e a tagarelar concentrados.
Aqui e ali, o trilho entregava-nos a lagoas temporárias que nos deixavam com a água a meio da canela, entroncamentos do que se revelava, afinal, um vasto labirinto de mangue. Logo, voltava a recambiar-nos no rumo que Mohammed ia validando.
Vencido novo meandro, damos com um grupo de seis mulheres, metade delas apertadas em saias de capulanas, outra metade a carregar alguidares e uma saca à cabeça. Uma delas trajava uma velha camisola do Benfica, antiga ao ponto de ter como patrocinador, a famigerada PT.
Por algum tempo, seguimos na companhia desse mulherio. Instantes depois, cruzamo-nos com outros seres do mangal, distraímo-nos e tresmalhamo-nos. Duas crianças tinham tal avanço no seu percurso que se haviam detido a apanhar camarões e crustáceos.
Pela Frente, um Areal Molhado e Sem Fim
De um momento para o outro, o trilho volta a abrir. Só que em vez de uma lagoa, revela-nos um canal desafogado. Decorava-o um barco de pesca garrido em que um tripulante solitário parecia agastado por ali se ver a seco. Contornamos o barco e saudamos o timoneiro. Umas dezenas de metros para diante, confrontamo-nos com nova vastidão de leito raiado.
Este mar de areia molhada estendia-se a perder de vista, até um vislumbre do Índico que quase só intuíamos como uma linha branca, ténue e difusa, sobreposta à do horizonte.
Dois ou três mangues resilientes, distantes entre si, ocupavam redutos elevados do leito e formavam ilhéus de verde de que faziam expandir raízes ávidas que agarravam todos os nutrientes que o oceano lhes deixassem.
Desembocavam nesse mar de areia caminhantes vindos de outros trilhos e que percorriam as suas próprias linhas no quase perder de vista. Na sua maioria, dirigiam-se à Quirimba que continuávamos a perseguir.
Pesca à Rede do Que Leva a Maré
Percorrido mais meio quilómetro, deparamo-nos com um rio que drenava a água que a baixa-mar deixara para trás para o oceano, já iminente.
O rio parecia dar que fazer a um conjunto organizado de nativos. Quando nos aproximamos, percebemos que se tratavam das seis mulheres que tínhamos encontrado no mangal e que se haviam adiantado. Os seus baldes carregavam grandes redes. Redes que as vimos estender quase de um lado ao outro do caudal e arrastar contracorrente de maneira a capturarem os peixes apontados ao Índico.
Transpomos o rio mais acima, onde se revelava raso e um esse amplo o acalmava. Mais umas centenas de passos e retêm-nos um novo riacho marinho.
A Entrada Anfíbia em Quirimba
Cruzamo-lo com a água pela cintura. Do lado de lá, encontramo-nos por fim com Quirimba. E com a aldeola costeira solitária que ocupa o extremo-norte dos 6.2km de extensão da ilha.
Compõe-na uma ou duas filas de palhotas erguidas em troncos e macuti, uma cobertura feita de folhas de coqueiro achatadas. Delas se destacava um embondeiro ancião, em plena época seca, grisalho a condizer.
Entretemo-nos a apreciar a frota de dhows ancorada sobre o leito exposto ao largo. Quando damos por ela, temos um bando de crianças da aldeia a desafiarem-nos com tropelias e provocações fotográficas.
O Passado Colonial das Quirimbas e de Quirimba
Pelas nossas contas, naquele momento, a maré já teria virado e o Índico reconquistava, centímetro a centímetro, o leito amplo que lhe pertencia. Concordámos, assim, em percorrermos a linha de costa para sul. Tanta como a hora de regressarmos a Ibo nos permitisse, mas com as ruínas de uma velha igreja como referência pré-investigada.
O que sobra da igreja de Quirimba integra o espólio do património colonial abundante que os portugueses ergueram no arquipélago.
Durante a sua viagem inicial de busca da Índia, após dobrar o fundo de África que Bartolomeu Dias havia transformado das Tormentas em Boa Esperança, Vasco da Gama passou a percorrer o lado Oriental de África.
Tinha-se detido ao largo da Ilha de Moçambique de que se diz que se viu forçado a fugir por a população ter suspeitado das intenções dos forasteiros. Ao rumar para norte, por certo com a costa à vista, Vasco da Gama fez escala no arquipélago das Quirimbas.
As ilhas já eram conhecidas como Maluane, o nome de um têxtil que os nativos produziam e que exportavam em grande quantidade para o continente. E eram habitadas e controladas por uma população árabe-suaíli, à imagem da população da Ilha de Moçambique, pouco acolhedora. Como tal, o navegador prosseguiu para as escalas seguintes de Mombaça e Melinde.
Em 1522, os portugueses regressaram determinados em aniquilara o domínio muçulmano. A ilha Quirimba terá sido a primeira a ser ocupada.
Como sempre acontece nas Descobertas, os religiosos apressaram-se a impor o Cristianismo e ordenaram que várias igrejas fossem erguidas. A de Quirimba foi apenas uma de muitas.
Na sua crónica “Ethiopia Oriental e Varia Historia de Cousas no Taueis do Oriente”, o Padre Fr. João dos Santos descreve o que encontrou nas Quirimbas em final de 1586, durante uma sua viagem ao Oriente em que integrou um grupo de missionários.
Segundo narra, João dos Santos navegava em recuperação de uma doença há mais de um mês. Pois, calhou restabelecer-se precisamente nas Quirimbas: “Tanto que fui são desta enfermidade, logo entendi nas cousas necessárias a Cristandade de todas estas ilhas, sujeitas à Freguesia de Quirimba nas quaes vivem muitos Christãos, Gentios & Mouros. E aí si mais fuy tirando, & prohibindo algús abuzos, & ceremónias… mui perjudiciaes a nossa sagrada ley.”
Entre estes “abuzos” que João dos Santos procurou combater, contavam-se a circuncisão e as celebrações do fim do Ramadão, que o escandalizaram sobremaneira: “todos se embebedam, & andao despidos pellas ruas, pintados co almagra, & gesso, pollo corpo, & rosto & cada hu faz de si os mayores momos, que pode.”
Na viragem para o século XVII, com base estratégica na ilha do Ibo em que ergueriam o forte de São João Baptista e onde já possuíam reservatórios de água das chuvas cruciais à criação de animais e reabastecimento das naus, os portugueses eram donos e senhores da maior parte das Quirimbas. A vizinha Ibo depressa conquistou o protagonismo.
Quirimba Acima e Abaixo, na Volta do Índico
Na ilha Quirimba própria, à parte da povoação da ponta norte, pouco mais resta desses tempos que a igreja. Volvidos mais vinte minutos de caminhada, encontramo-la sem telhado, com uma metade da sua frente derrubada e as paredes da nave coroadas por cactos e figueiras-da-Índia tentaculares.
A volta, cumprimo-la já com o retorno do Índico à vista, a tingir de azul-esverdeado os cenários costeiros incríveis porque íamos passando: colónias de mangues bem hirtos acima da areia branca que nos pareciam seres vegetais caminhantes aparados por um qualquer Eduardo Mãos de Tesoura da região.
Mais para dentro, uma floresta de coqueiros sobranceiros com as suas copas rapadas por um dos ciclones ou tempestades tropicais que, de tempos a tempos, cruzam o Canal de Moçambique.
E árvores que na concorrência desenfreada com os mangais pelos nutrientes, tinham desenvolvido troncos e ramos fortes e ziguezagueantes e uma ramagem densa que servia de lar a garças e outras aves pouco ou nada assustadiças.
Com o regresso do Índico, começam a chegar mais dhows e barcos diminutos. Uns, velejam apontados à povoação de Quirimba, outros, a Ibo e até a paragens mais setentrionais das Quirimbas e do continente.
Durante um bom tempo da caminhada, acompanham-nos mais crianças que se divertem a desafiar a subida das águas e, como sempre acontece nestas paragens africanas, nos incitam e voltam a incitar a fotografá-los.
Regressamos à povoação. Oferecem-nos rapadura que comemos sem cerimónias, enquanto nos juntamos a uma assistência que acompanhava dois homens numa partida disputada de ntxuva com a tábua assente, quase enterrada na areia.
À medida que os dhows ali rumavam, o lugarejo ganhava vida. Mulheres em grande galhofa afluíam à beira-mar em que tínhamos chegado com baldes e alguidares que haveriam de encher de peixe.
Algumas, destacavam-se pelos seus mussiros, as máscaras solares naturais de Moçambique. No seu caminho, mercearias diminutas respondiam às derradeiras compras da tarde, enquanto, na avenida arenosa, outro bando de crianças se divertia a esquiar em grupo, com esquis feitos de folhas de coqueiros curvas e paus hirtos, mais altos que eles, a servirem de bastões.
Chegamos à praia do nosso desembarque, nessa altura, com o mar já a uns meros metros das casas destacadas. No meio de uma algazarra de tarefas, espreitadelas e intromissões das crianças, uma comitiva de homens carregava sobre um velho tractor Massey Fergusson, um depósito de água ali levado por um dhow.
Reconhecemos Mohammed. Com o ocaso a esboçar-se, o guia conduziu-nos ao barqueiro que nos levaria de volta a Ibo, numa navegação combinada e complicada por mar semi-aberto e pelo labirinto de manguezal da vinda.
Percorremos os meandros do mangue numa sombra desorientadora que só o conhecimento de Mohammed e a mestria do barqueiro conseguiram vencer.
Uma vez saídos do mangal, vimos o sol desfazer-se sobre o casario da ilha do Ibo. Por conveniência de todos, desembarcamos na prainha em frente à Rua da República e ao abrigo do Miti Miwiri. A noite não tardou a devolver as Quirimbas ao seu já secular retiro.