Deixamos a piscina natural da Buracona e o litoral castigado pelo vento e pelas vagas do noroeste da ilha do Sal.
Confrontamo-nos com uma vastidão plana, árida e poeirenta. Uma amostra de vegetação rasa e ressequida disfarça o trilho que devíamos seguir.
A bruma seca torna difusos o horizonte e até as formas raras que se destacam daquela campina inóspita, varrida por ondas do calor refractido. Salpicam-na duas ou três árvores deitadas, submissas às ventanias alísias que o Saara há muito para ali envia.
Mais longe, vislumbramos ainda as silhuetas de elevações caprichosas da ilha do Sal: o Monte Grande – o supremo com 406 metros – e o Monte Curral.
Conformadas com tal penúria climática e vegetal, as gentes chamaram a esta zona da ilha de Terra Boa. Assim dita uma placa saída do nada, tão gasta como a paisagem envolvente mas que, ainda assim, nos concede um rumo.
À Descoberta da Terra (e Gente) Boa da Ilha do Sal
Avançamos pelo esboço de trilho, Terra Boa adentro. Não tarda, em áreas anda mais arenosas, damos com uma verdadeira estrada, se bem que asfalto, nem vê-lo. Um camião acabado de passar lega um rasto de pó que adensa a atmosfera.
Menos de 1km depois, um grupo de quatro nativos instalados junto a uma carrinha vermelha pedem para nos determos. “Amigos, ficámos sem gasosa. Não vale nem a pena empurrar. Dão-nos só uma boleia para o pé de Espargos ? ” Íamos nessa direcção.
Recebida a nossa aprovação, enfiam-se os quatro no banco de trás. Com a sua ajuda, atravessamos o bairro de lata que se estende até à cintura da capital da ilha, Espargos.
Ainda no limiar da Terra Boa, os lares de lata convivem com pequenos hortos viçosos. Não escondemos aos passageiros a surpresa. “Então quase não se vê um arbusto verde e aqui nasce isto tudo?” “E querem saber mais?” respondem-nos. “Nasce isto tudo e são estas hortas que sustentam boa parte das famílias que cá se instalaram.
É que sai muito mais barato aos hotéis e aos resorts lá de Santa Maria comprarem-lhes os produtos a eles que pagarem outros vindos de longe. Para nós, tem sido uma bênção. Como foi a vossa boleia. Olhem, saímos aqui.”
Despedem-se de nós agradecidos ao ponto de nos passarem um dos seus números de telefone e nos convidarem para uma cachupa à moda do Sal.
Prometem-na “bem melhor que as que inventam nos hotéis e nos restaurantes lá de Portugal.” Despedimo-nos deles, enternecidos. Após o que continuamos a deambulação motorizada em que andávamos desde a hora do almoço.
O Caminho Extraterreno para Pedra de Lume
Contornamos a capital cada vez mais urbana que assim foi baptizada por ali proliferarem os espargos bravos durante a curta época em que chove sobre a ilha do Sal. Passamos entre o limiar sul do seu casario e o extremo norte da pista do Aeroporto Internacional Amílcar Cabral.
Lá permanece, em escala, uma gigantesca aeronave Antonov. Ao longe (mas bem longe) parece-nos um An 225. Mais tarde, os funcionários do aeroporto hão de tentar proibir que a fotografemos, “ordens dos Russos”, ainda e sempre com a mania dos segredos.
Tomamos uma longa recta que nos leva em direcção à costa leste, à Pedra de Lume e à principal razão histórica para a povoação e o desenvolvimento da ilha: as salinas homónimas.
Continuamos pelo norte da imensidão lunar do Feijoal, não tarda, com o Atlântico de novo à vista.
Avançamos lado a lado com uma enseada aberta e, por fim, o termino da via deixa-nos de frente para o pequeno porto local.
Uma comunidade de barcos de pesca salpicam-no de tons garridos que contrastam com o azul-petróleo do mar. Para o interior subido, um grande armazém e o esqueleto semi-desintegrado de uma outra estrutura em tempos recheada de roldanas conferem ao lugar uma aura misteriosa entre o faroeste e o extraterrestre.
Da Beira Atlântico ao Mar Interior de Pedra de Lume
Abençoa o lugar – e os seus moradores e visitantes – uma igreja branca e azul, com telhas do mesmo tom da paisagem circundante.
Trata-se da capela de Nª Srª da Piedade, erguida em 1853 em honra daquela que é, ainda hoje, a Santa Padroeira de Pedra de Lume, celebrada com missa e procissão a cada 15 de Agosto.
Continuamos a ascender. Até que uma cancela nos força de uma vez por todas a estacionar. Metemo-nos por um túnel escuro sempre com a luz do fundo em vista e atravessamos a encosta terrosa do monte.
Ao sairmos do lado de lá, encaramos um brilho difuso que, por momentos, nos cega. Damos mais uns passos. Quando já nos refazemos do inesperado fulgor solar, a visão de um estranho cenário arredondado volta a ofuscar-nos.
Estamos no interior de uma velha caldeira, um dos resquícios pré-históricos do vulcanismo que deu origem à ilha do Sal e ao arquipélago de Cabo verde.
Com o tempo, a água do mar infiltrou-se na base da cratera abatida. Noutro tempo, boa parte dessa água evaporou sob o calor tropical permanente. Sobrou um vasto leito de sal em calda. Seria esta dádiva da Natureza a ditar o destino do Sal.
A História Salgada da Ilha do Sal
A segunda ilha do Barlavento cabo-verdiano terá sido descoberta a 3 de Dezembro de 1460. Segundo uma carta-régia de Afonso V, o seu descobridor foi o navegador de origem genovesa António da Noli.
Da Noli estava ao serviço do Infante D. Henrique quando, no regresso de uma expedição ao Golfo da Guiné a detectou, já na sequência da ilha de Santiago onde seria fundada Ribeira Grande, a primeira cidade de Cabo Verde.
Impressionou Da Noli o perfil da ilha, lisa, ainda mais se em comparação com a montanhosa Santiago. Chamou-a de Llana.
Até, pelo menos 1720, manteve-se ínfima a população local, inaugurada por escravos chegados de outras ilhas do arquipélago, em pouco mais que o lugarejo piscatório de Palmeira.
Uns anos mais tarde, um geógrafo holandês de nome Dapper descreveu ter encontrado uma aldeola com 72 marinheiros. Um outro forasteiro de passagem, um tal de aventureiro inglês Dampier, testemunhou que lá se deparou com uma meia dúzia de habitantes a viverem em condições miseráveis.
Que, ainda assim, sobreviviam com recurso ao sal abundante com que salgavam carne de cabra e das tartarugas que ali desovavam em grande número.
Estes moradores pioneiros trocavam com frequência peles de cabra e sacas de sal por outros bens que outros marinheiros que lá aportavam traziam a bordo.
Os Tempos da Extracção e Exportação Pioneira
Por estranho que pareça, terá sido esta a origem do fulcro turístico de Santa Maria, hoje, repleto de hotéis sofisticados que abrigam quase metade dos visitantes-turistas de Cabo Verde.
Em 1796, Manuel António Martins, mercador milionário, governador português do arquipélago, entretanto apodado de Napoleão de Cabo Verde, replicou o que já há algum tempo se fazia na ilha da Boavista.
Instalou nas imediações de Pedra de Lume algumas famílias e escravos trazidos da costa oeste e encetou a exploração local do sal.
Passou a vender e a trocar a matéria-prima por outros bens.
A exportação massiva e híperlucrativa para o Brasil – cerca de 30 mil toneladas por ano – durou até 1887. Nesse ano, o Brasil interditou o uso de sal estrangeiro. A extracção foi suspensa.
Só viria a ser retomada em 1919 quando um homem de negócios de Santa Maria e uma empresa de Bordéus adquiriram as salinas aos descendentes de Manuel António Martins e reinvestiram num sistema de transporte inovador que conduzia vinte e cinco toneladas de sal por hora até ao porto.
Desse pequeno porto, voltaram a exportar sal em enormes quantidades para países da África Ocidental e Central. Isto, até 1985, quando a actividade deixou uma vez mais de ser viável.
O Mar Morto Cabo-Verdiano
Hoje, o sal extraído não chega sequer para as necessidades dos muitos lares, hotéis, restaurantes e outros negócios da ilha do Sal.
As salinas têm, todavia, outras inusitadas utilidades.
Aproximamo-nos do fundo alagado da caldeira. Ali, dezenas de visitantes convivem e relaxam.
Boiam num pequeno retalho marinho com elevada concentração de sal, à laia de Mar Morto cabo-verdiano.
Vários mais, chegam do túnel de acesso, ansiosos por se juntarem a estes privilegiados.
Inspecionamos as estranhas estruturas de processamento e transporte lá deixadas pelos recentes investidores e os montes de sal solidificados, às espera do trabalho das escavadoras por ali estacionadas.
Quando nos damos por satisfeitos, voltamos a atravessar o túnel no sentido contrário. Logo, ascendemos à orla da caldeira.
Desse cimo, contemplamos o panorama surreal a 360º, enquanto a ocidente, o sol se começava a esconder detrás do véu branco formado pela aliança da sua luz com a bruma seca.
Viagem Acelerada para Espargos
Conscientes de que, àquela latitude, anoitecia cedo e num ápice, regressamos ao carro e aceleramos rumo a Espargos. Espargos desenvolveu-se em função do aeroporto que Benito Mussolini lá mandou construir, em 1939, com permissão das autoridades portuguesas e que os portugueses compraram aos italianos, logo após a sua capitulação, na 2ª Guerra Mundial.
Aquando da passagem de meio da tarde, tínhamos já reparado em como o Monte Curral se elevava do meio da povoação. Procuramos pelo caminho que nos levaria ao cimo dos cento e poucos metros do monte e encontramo-lo com relativa facilidade.
Ao subirmos a rampa, passamos por uma jovem moradora entregue a um repetido sobe-e-desce. Estacionamos no topo, paredes meias com a vedação da torre de controlo aéreo usada pelo aeroporto internacional. Guardam-na uns poucos militares da mesma geração da atleta.
Ao chegar ao cume, esta, recupera o fôlego e alonga as pernas e as costas esforçadas. Para deleite dos militares, fartos do castigo do destacamento semi-solitário no alto do morro, saudosos das formas femininas e – é mais que certo – da companhia de donzelas cabo-verdianas.
Um dos soldados não resiste.
Aborda a moça. Inaugura uma conversa com tom de violino que estende o mais que pode.
Fim de dia nas Alturas da Ilha do Sal
Nós, percebemos que o sol estava prestes a debandar. Metemo-nos por um trilho que dava a volta à grande torre.
Tal como acontecera sobre a caldeira de Pedra de Lume, voltamos a deslumbrar-nos com o cenário tão ou mais inverosímil em redor, sobretudo o de norte.
Um casario de betão, aqui e ali pintado de cores vivas, surgia anichado na vastidão árida e ocre.
Para lá desse casario humilde, elevavam-se outras colinas pontiagudas subsumidas na bruma seca.
O contraste excêntrico entre o mundo geológico e o humano enfeitiçou-nos. Ficamos a apreciá-lo até que a noite se apresenta para o seu turno.
Quando regressamos ao carro, já não damos com a jovem de Espargos. Nem com os militares que se haviam já refugiado no conforto do aquartelamento.
De volta ao fundo da rampa, reparamos, sim, num grafiti vistoso pintado num muro.
Lá constava a face de Amílcar Cabral. Tinha um 75 à sua frente, sob um limiar vermelho, amarelo e verde decorado com três minions intrigados.
O mural incluía ainda um “I Love Sal” gráfico e exuberante. Não tínhamos nada a acrescentar.
A TAP – www.flytap.pt voa todos os dias, excepto 3ª feira, de Lisboa para o aeroporto Internacional Amílcar Cabral, na ilha do Sal.