São Filipe, a capital do Fogo que há dias nos acolhia faz de ponto de partida.
Deixamo-la o mais cedo que conseguimos, ainda moídos do despertar madrugador em Chã das Caldeiras, da ascensão dolorosa ao cume do vulcão Fogo e da não menos erosiva descida da Chã até à beira-mar de Mosteiros.
Passa um pouco das nove da manhã. A névoa quase seca característica do Inverno da ilha permanece em estado embrionário. A clareza e frescura efémeras incitam-nos a fazermo-nos ao caminho.
Contornamos o aeródromo em que tínhamos dado os passos inaugurais na ilha. Prosseguimos pela estrada que circunda o Fogo não pela sua beira-mar, como seria de esperar, ali, na costa sul, por uma quota acima, mais plana e estável, a que o velho empedrado da via se agarrava com rigor redobrado e melhor resistia aos sucessivos caprichos geológicos e tectónicos do lugar.
Ilha do Fogo Acima, Rumo à Grande Caldeira do Vulcão
O plano inicial era progredirmos para leste. Fazemo-lo com passagem por Talho e por Vicente Dias. Cruzamos a aldeola de Penteada e abordamos a de Patim, de onde uma ramificação rodoviária encaixada entre as ribeiras de Patim e de Fundo, trepa rumo a Monte Grande, logo ao Monte Largo e, na Achada Furna, ganha embalo para atingir as alturas da caldeira massiva do vulcão Fogo.
A subida de uns dias antes à caldeira havia sido nocturna. O escuro, tinha-nos furtado o privilégio de admirarmos a imponência enegrecida da sua entrada, os paredões, rochedos e sulcos de lava abrasiva e o basalto polido que a compõem, em jeito de monumento dantesco.
Atingimos a famosa placa que dá as boas-vindas ao Parque Natural do Fogo, à beira de um meandro da estrada, no aparente fundo do cone quase-perfeito do vulcão. Momentos depois de deixarmos a pick-up, um grupo de artesãos aborda-nos com uma suavidade bem cabo-verdiana.
Mini-Casas de Lava: o Artesanato Criativo da Caldeira
Exibem-nos uma série de casinhas tradicionais da caldeira feitas de magma, de palha e sementes a enfeitar o tecto cónico. Umas são elementares. Outras, contam com dois pisos e estruturas mais complexas.
Sabemos que evocam os edifícios genuínos e pitorescos que a lava das últimas erupções do Fogo soterraram. Temos consciência do quanto a destruição provocada por essas erupções fragilizou os seus habitantes.
Por isso e porque gostávamos de oferecer presentes o mais caboverdianos possível a familiares e amigos, damos connosco a admirar a colecção que nos propõem, e a comprarmos cinco mil escudos de casinhas de lava, parte de um sortido mini-arquitectónico escolhido a dedo.
Desse preâmbulo administrativo, avançamos ladeira acima e em redor do arco inicial da caldeira. Para cá e para lá, intimidados com a opressão tenebrosa do domínio vulcânico. Quando nos vemos à entrada da já nossa conhecida Portela, revertemos para a entrada da caldeira.
Descida da Caldeira, Para Leste, Rumo a Cova Figueira
Abundam os moradores apeados, por estas paragens. À medida que descemos por entre fumarolas e crateras secundárias ressequidas, damos-lhes uma primeira boleia. Logo outra. E outra ainda.
Às tantas, temos cinco passageiros na pick up.
Com o combustível a baixar demasiado, aproveitamos o seu conhecimento da zona. Deixamo-nos orientar até um pequeno revendedor da beira da estrada que nos vende combustível engarrafado. O suficiente até chegarmos à bomba que menos distava.
Pouco depois de Figueira Pavão, ainda antes de Cova Figueira – Kóba Figuera, em crioulo – as estradas circulares de quotas diferentes fundem-se na Circular do Fogo.
O seu empedrado empoeirado conduz-nos ao casario garrido da última das povoações, estendido pela encosta murcha abaixo, no mesmo sentido que qualquer nova torrente de lava levaria.
Depois de vinte quilómetros percorridos sem sinal do seu cone, eis que o vulcão se volta a insinuar. Detectamo-lo, tão sobranceiro como é suposto, já que se trata do tecto de Cabo Verde.
Acima do casario, da vertente terrosa e até da névoa sulfurosa que mantinha em seu redor.
Ao nível de Kóba Figuera, o dia aquecia e desenrolava-se sem percalços. Um jovem casal aguardava pela Hiace responsável pela rota da Praia da Fajã.
Um ancião puxava um burrico por uma corda.
Vendedores de bolachas, rebuçados e outros petiscos embalados mantinham-se a postos na sua banca improvisada, contra uma velha casa de pedra-lava, à sombra de chapéus de praia providenciais.
Após Cova Figueira, a Circular do Fogo entra em pleno na vertente leste da ilha e do vulcão, a que se sabe que, há 73 mil anos atrás, colapsou sobre o Atlântico.
Passagem pela Vertente Oriental e Monumental do Vulcão Fogo
E que assim gerou um maremoto de mais de 150 metros de altura que atingiu o ocidente da vizinha Santiago com enorme impacto. De tal maneira que se podem encontrar no litoral de Santiago enormes calhaus provindos do Fogo.
Malgrado a dimensão do evento geológico, tanto a ilha do Fogo como Santiago subsistiram e estão para durar. Na iminência da fronteira dos concelhos de São Filipe e de Santa Catarina do Fogo, a Circular ziguezagueia por uma meia-encosta pejada de agaves exuberantes, de um verde resplandecente que contrasta com o azulão do Atlântico.
Ali, o cone do Fogo eleva-se e aproxima-se do Atlântico mais que nunca. Fuma a condizer e produz uma névoa acinzentada que turva o azul-celeste.
A sua lava solidificada lista a paisagem de verde e amarelo vegetal, faixas intercaladas com outras zonas tostadas pelas torrentes das sucessivas erupções que obrigaram ainda a um mesmo número de reconstruções da via por que progredíamos.
Após nova curva, já entre os agaves afiados, ficamos acima de um enorme desnível da vertente. Um rebanho multicolor de cabras espanta-se pela nossa presença em tal território montês.
Por instantes, admiramos o seu equilíbrio acrobático. Num ápice, a imponência do Fogo reconquista-nos a atenção para o cerco de negrume que o vulcão fizera ao lugarejo lá em baixo, para a cinza escura que continuava a deslizar da cratera e para as incontáveis camadas de lava estratificada que se repetiam mesmo até ao cimo do colosso.
A esforço, lá quebramos o feitiço que nos mantinha captivos daquela vista. Prosseguimos para norte. Voltamos a deter-nos na aldeola da Tinteira.
Espanta-nos a visão de um grupo de crianças entregues a brincadeiras e traquinices, sobre lava sólida, entre enormes calhaus basálticos e com a névoa sulfúrea intimidante a pairar em fundo.
A Emigração Cíclica da Ilha do Fogo para o Leste dos Estados Unidos
Surpreende-nos também a miragem real de bandeiras dos Estados Unidos a ondularem ao vento, mesmo que o fenómeno de estranho pouco tenha.
São mais os caboverdianos expatriados que aqueles a morar no seu arquipélago. A instabilidade gerada pelo potencial de novas erupções do Fogo contribui para que muitos nativos da ilha partam para além-mar.
As regiões de Boston e de New Bedford, onde se contam já em redor de 250.000 caboverdianos, são destinos de eleição dos foguenses, até mais que Portugal e a Holanda. Os foguenses que ficam, sujeitam-se à aridez e aos caprichos não só do vulcão mas também da meteorologia.
Mesmo se na zona de Mosteiros, à sombra da única floresta da ilha, o Fogo concede plantações férteis de vegetais e frutas tropicais, até mesmo de café e de vinho, o Fogo passa por períodos aflitivos de seca. Ao longo da história, vários destes estios provaram-se mais prejudiciais que o próprio vulcão.
A estrada entra no maior dos rios de lava que o Fogo fez chegarem ao mar. A espaços, afunda e ganha enormes paredões laterais dessa mesma lava.
Um ciclista percorre-a no sentido contrário, protegido do sol da tarde e da poeira por um boné e uma máscara que lhe dão um visual de tuaregue mal-amanhado.
Não tarda, o calçadão da Circular cruza a linha imaginária que separa os domínios de Santa Catarina do Fogo dos de Mosteiros. Passamos Relva e Corvo. Com Corvo para trás, cruzamos a derradeira torrente de lava legada pelo vulcão, ainda inóspita.
Mosteiros: uma Povoação a Paredes-Meias com a Lava do Vulcão
Fazemo-nos ao casario de Fonsaco e chegamos às traseiras de Mosteiros, uma povoação inconfundível pelo seu casario instalado ora sobre uma vasta fajã de lava, ora noutra forrada por prado verdejante, no sopé da Floresta de Monte Velha.
Tal como tínhamos constatado em Cova Figueira, os moradores com posses para tal, rebocam e pintam as suas casas de cores bem vivas, intuímos que de maneira a combaterem a ditadura do negro imposta pelo vulcão.
Quando a cor é financeiramente inviável, os seus lares permanecem em blocos de cimento, feitos, em boa parte, com a areia e cinza vulcânica da ilha.
São quase dez mil os habitantes dos Mosteiros, agricultores, pescadores, se a oportunidade permitir, pequenos empresários que aproveitam as visitas de curiosos como nós.
Basta dizer que uma das caminhadas mais populares da ilha do Fogo é a descida de Chã das Caldeiras para Mosteiros.
Que muitos dos caminhantes a completam já depois de terem ascendido, em esforço, ao Pico do Fogo e que chegam a Mosteiros doridos, tanto pela subida massacrante para as coxas, como pela descida que castiga os joelhos. Também nós passámos por essa provação.
De Mosteiros, malgrado uma óbvia intensificação dos esses da estrada, tardamos pouco a atingir o norte do Fogo, entre a Fajãzinha e Atalaia.
O Fim da Volta a Ilha, com Escala em Ponta da Salina
Com a tarde a caminhar para o fim, neste trecho, várias comunidades de amigos e vizinhos entregavam-se a convívios de beira-estrada, animados por música cabo-verdiana popularucha, regados por cerveja e vinho do da ilha. À nossa passagem, acenam e saúdam-nos.
Quando chegamos a São Jorge, cortamos para a Ponta da Salina. Lá espreitamos o pequeno porto natural, moldado pela lava e animado por uma dezena de pequenos barcos garridos de pesca, cada qual com direito a um armazém de utensílios dedicado.
Um homem lava, com água do mar, um cavalo castanho que mantém atado a um poste dos telefones. Logo ao lado, numa mini-enseada de areia negra, o único trecho arenoso da praia, um grupo de amigos piquenica e conversa indiferente à subida iminente da maré.
Mais volta, menos volta, damos com outra das curiosidades históricas da Salina, o seu pequeno cemitério, com pequenas torres coroadas de cruzes a fazer de lápides, orientadas para o mar.
Sobre uma delas, mal cimentada, um pequeno anjo da eternidade contempla o Atlântico sem fim.
Da Ponta da Salina, sempre a ziguezaguear e aos altos e baixos, completamos os 20km que nos separavam do regresso à capital
São Filipe. Neste derradeiro trecho, enquanto anoitecia, vimos as luzinhas da ilha a ocidente do canal acenderem-se e formarem linhas incandescentes.
A Brava chamava por nós. Mais três dias de voltas pelo Fogo e haveríamos de ceder ao seu apelo.