Nem todos os comboios japoneses são supersónicos.
A viagem suburbana que nos trazia de Kure, através de Hiroxima até à doca de Miyajimaguchi demorava o seu tempo.
Mesmo tendo acordado às 8h30, já só apanhámos o ferry do meio-dia, com pouco tempo para procurar o recinto religioso em que se realizaria o ritual Hiwatarishiki, levado a cabo por uma seita budista de nome Shingon que tem a sua sede no cimo da montanha de Koya.
Ascensão ao Templo Daishoin de Miyajima e o Misticismo do Ritual Hiwatarishiki
Apressados, contornamos as várias esquinas do templo Itsukushima. Apontamos para uma das ladeiras que nos conduziriam encosta acima.
Pouco depois, tão ofegantes como curiosos com o que nos esperava, damos entrada no templo Daishoin, já repleto de monges, fiéis e visitantes de Miyajima-
Os últimos, dispunham-se em redor do pátio em que se moviam os atarefados cenobitas. Em trajes amarelos e brancos, de cabeças rapadas enfeitadas por fitas de tecido, começam por dar uma volta a fazer soar grandes búzios, acompanhados de pratos.
Segue-se a purificação do altar e do público, momento em que somos temperados com sal. Logo após, os monges correm agarrados a uma grande corda, em redor de uma fogueira que queima ramos verdes de cedros em que deitam pequenas ripas de madeira com orações.
A fogueira não tarda a consumir-se e deixa um legado de brasas incandescentes que é igualmente purificado com sal, sempre sob o som grave dos búzios.
As Brasas e o Fumo Purificadores de Hiwatarishiki
O único dos sacerdotes com vestes púrpuras, lidera uma espécie de pacificação divina das brasas que realiza na direcção de todos os pontos cardeais.
Por fim, os outros monges envolvem-nas das tais folhas verdes e deixam apenas um trilho central aberto.
Passam uma espécie de estandarte ao seu líder que, com um grito estóico, inaugura a fase sacrificial da cerimónia e atravessa as brasas com passadas profundas.
Seguem-no vários outros monges já ao ritmo de tambores, instrumentos de sopro e outros que animam mantras entoados de forma cada vez mais hipnótica.
Juntam-se ao cortejo fiéis de todas as idades que vencem a dor perdidos na névoa branca produzida pelo lento consumo da vegetação morta.
Passam mães com crianças ao colo, idosas a que os religiosos dão as mãos para evitar que caiam e crentes de tal maneira arrebatadas pela experiência que, à saída da passadeira incandescente, mais parecem terem pressentido o Nirvana.
Por fim, a longa fila de seguidores esgota-se. Os monges extinguem as brasas, põem fim ao evento e recolhem aos seus aposentos, em redor do pátio. Ficamos ali por perto a examinar de que artefactos se tinha composto o ritual.
Sem que o esperássemos, ainda espreitamos a sua lavagem minuciosa de pés, com recurso a baldes com água ensaboada e a toalhas brancas.
Uma Inesperada Cerimónia do Chá de Miyajima
Abandonamos o templo Daishoin encosta abaixo em direcção ao litoral de Miyajima quando um casal que falava um inglês básico nos convida para uma cerimónia nipónica de chá.
Aceitamos. Seguimos juntos para uma das esplanadas elegantes instaladas a meio da vertente. Os anfitriões esforçam-se por nos relembrar a importância do ritual do chá para a cultura nipónica.
Tentamos apreciá-lo e segui-lo a preceito, com alguma dificuldade.
As largas horas sem comer e a caminhada intensa desde que o ferry havia atracado em Miyajima há muito nos faziam penar.
Foi, assim, como uma bênção grená de feijão e trigo mourisco que vimos aterrar à nossa frente dois pastéis manjus, ainda para mais dos nossos favoritos. Durante os vários dias de exploração do Japão já os tínhamos experimentado de todas as formas e feitios.
“Doumo Arigatou gozaimasu, thank you, thank you”. Agradecemos a experiência e o repasto de uma forma bilingue e o mais educada possível com sucessivas quase-vénias.
Descida para o Mar Interior de Seto, em Busca do Tori de Itsukushima
Cumprida a atenção, descemos a escadaria e diversos trilhos na direcção do litoral.
Voltamos a contornar o templo de Itsukushima que constatamos ter sido abandonado ao lodo marinho e aos limos pelo baixar da maré.
Aproveitamos a duração cíclica do fenómeno para investigarmos o templo e a ilha a partir do leito do mar interior de Seto.
Para lá chegar, passamos pelas suas ruelas comerciais ladeadas de pequenos restaurantes especializados em ostras e outros mariscos abundantes em redor. Também em pastelarias e confeitarias de petiscos vendidos a preços híper-inflacionados.
Esbarramos com uma sessão casamenteira de dois noivos que ali se fazem fotografar em trajes tradicionais a bordo de um velho riquexó puxado por força humana. Pelo caminho, a fome volta a assolar-nos. Compramos biscoitos.
Enquanto percorremos a marginal que conduz à frente de Itsukushima, quatro ou cinco dos veados que vagueiam por Miyajima cheiram o pitéu.
Perseguem-nos de forma tão tresloucada que nos obrigam a correr à sua frente, apesar de termos mochilas pesadas às costas.
Descemos umas escadarias para o areal e ficamos, por fim, a salvo. Mais uma centena de metros a pé e vemo-nos diante do grande torii “flutuante” do templo, uma das principais imagens de marca do Japão.
Este pórtico cor-de-laranja excêntrico foi dedicado às três filhas do deus xintoísta dos mares e das tempestades, irmão da deusa do Sol.
A Sacralidade Secular da Ilha de Miyajima e do Tori Itsukushima
Desde há muito que Miyajima foi decretada sagrada.
Por esse motivo, a populaça simplesmente não podia lá assentar pé. Para que os peregrinos pudessem aproximar-se e atracar no seu santuário – algo que deveriam, fazer através do torii – Itsukushima foi erguido como um pontão sobre a água, como se flutuasse e estivesse separado do resto da ilha.
A preservação da pureza espiritual de Miyajima foi levada a tais extremos que, desde 1878, foram evitados, por todos os meios, nascimentos ou mortes nas suas imediações.
Até hoje, é suposto as mulheres grávidas se retirarem para o continente quando o dia do parto se aproxima. Passa-se o mesmo com as pessoas com doenças terminais ou idosos que estão visivelmente no término das suas vidas. Os funerais são proibidos na ilha.
Entretanto, o acesso da população a alguns recursos da ilha foi aliviado.
Damos a volta ao torii e chegamos ao limiar arenoso que dá para um lodaçal coberto de limos verdes. Ali, uma brigada de anciãos cada qual com o seu chapéu escava com afinco em busca de ostras.
Pouco depois, encontramo-los de baldes cheios a caminho dos restaurantes da povoação que se habituaram a fornecer.
A maré não tarda a encher.
Devolve o estatuto de “flutuante” ao pórtico e o trabalho vespertino aos barqueiros com chapéus cónicos que assim pode, contar com centenas de passageiros ansiosos por contornarem e fotografarem o monumento e o santuário a bordo de um dos seus barcos gondolados.
A noite cai.
Ficamos a admirar como a iluminação destaca o torii contra a silhueta da montanha oposta e o céu em lusco-fusco acima.
Escurece de vez e o pórtico ganha um reflexo marinho fidedigno.
Metemo-nos no ferry de volta ao continente com o plano de regressar a Miyajima na manhã seguinte para dar sequência à sua exploração.
À Conquista do Monte Misen, o Tecto de Miyajima
Às dez da manhã, estamos a desembarcar uma vez mais. Apontamos para o Monte Misen, o ponto mais elevado da ilha, com 500 metros de altitude.
Ladeira após ladeira, degrau após degrau, conquistamos o seu cume rapado e pejado de grandes rochedos de granito.
De início, quebra-lhe a aspereza cromática apenas uma amendoeira bem florida. Não tarda, junta-se-nos uma excursão escolar. O cimo enche-se de jovens nipónicos coloridos e tagarelas.
Subimos a um dos rochedos e contemplamos as encostas, o canal e os ilhéus do Mar de Seto subsumidas na névoa.
No regresso ao litoral-base, voltamos a passar pelo reduto do templo Daisho-in e descemos a sua escadaria mais encantadora, ladeada e abençoada por quinhentas estátuas rakan discípulas de Buda.
À chegada ao santuário de Itsukushima, a maré está mais cheia que nunca. Parece fazer navegar o edifício com mais de quinhentos anos.
Espectáculo de Teatro Noh, sobre a Maré Cheia do Mar Interior de Seto
Numa das suas alas, um protagonista escondido atrás de máscara antiga de madeira de cipreste e num shozoku – robe largueirão de seda – leva a cabo um acto de uma actuação de teatro noh.
É uma forma de drama musical clássico nipónico que perdura, no Japão, desde o século XIV.
A ascensão e descida ao Monte Misen tinham-nos deixado derreados.
Foi, assim, num estranho misto de fascínio e sedação que nos deixámos ficar durante mais de uma hora a acompanhar as flautas e percussões exóticas e as vozes cavernosas e que as acompanhavam.
Em breve, a peça terminou.
Com o cair da noite, a maré voltou a descer.
Miyajima permaneceu fiel à sua rígida espiritualidade.