Nuns meros quilómetros, o trajecto rumo ao interior norte da ilha confirma-se uma nova viagem no tempo.
A urgência que nos movia era a do conhecimento. Sem que o esperássemos, a estrada da província de Lobata deixa-nos na base de uma longa rampa empedrada que a erva se esforçava por invadir.
Conduzia ao edifício do velho hospital da Roça Rio do Ouro, apesar do quase meio século de degradação, ainda destacado da selva envolvente pelo tom de salmão da fachada de cem metros.
O hospital foi erguido durante os anos 20 do século XX, para dar resposta à população crescente dos colonos e trabalhadores da Sociedade Agrícola Valle Flôr, uma das maiores e mais influentes do arquipélago.
Quem, como nós, se depara com a quantidade de transeuntes que sobem, descem e vivem a alameda murada, sente-se tentado a pensar que nada mudou da era colonial para cá.
A Vida Pós-Colonial da Roça Rio do Ouro, agora, Roça Agostinho Neto
E, no entanto, no período pós-independência de São Tomé e Príncipe, a roça foi rebaptizada em homenagem ao pai da independência de Angola, Agostinho Neto.
Tanto o hospital como a roça em geral perderam a sua função e capacidade operacional. O hospital nunca mais recuperou do abandono logístico que o vitimou.
A roça, essa, só há alguns anos deu sinais produtivos de vida, detectáveis, sobretudo, pelo retomar da produção do cacau.
Alcançamos a escadaria do edifício central. No cimo, um tapete estendido sobre o corrimão frontal precede a entrada. Uma porta de madeira remendada, escancarada, serve de convite.
Entramos. Em vez de uma recepção, de enfermeiros, médicos e pacientes, damos com duas mulheres mal-sentadas a descascarem e cortarem a mandioca do almoço.
Preparam-no junto a um recanto do átrio adaptado a lar, como tantos outros que viríamos a encontrar, se bem que a maior parte das casas se mantém nas velhas sanzalas destinadas aos trabalhadores e famílias.
Deixamo-nos perder, por algum tempo mais, naquele abandono hospitalar, sob o olhar das raparigas surpreendidas pela intrusão.
A Azáfama Santomense nas Velhas Sanzalas da Roça Agostinho Neto
Demovidos pela falta de outros moradores ou interlocutores, mudamo-nos para uma das alamedas de sanzalas.
Aí, sim, concentrava-se o dia-a-dia da roça: em estendais com cores que resplandeciam ao sol. Em pais e filhos que partilhavam aposentos e átrios diminutos e as vidas de uns e dos outros.
Uma jovem santomense irrompe de um beco murado.
Prenda-nos com um sorriso incondicional que nem as duas próximas gerações que carregava, uma nos braços, outra na barriga bem grávida, pareciam incomodar.
Um transeunte seu vizinho, regressado do mar, exibe-nos um peixe porco-espinho recém-capturado.
Chegamos a um pátio desafogado, estendido numa área plana entre sanzalas. Dali, observamos, em formato panorâmico, os seus vários níveis.
As mais próximas, adicionadas a posteriori, cobertas por grandes chapas. As antigas, maiores, ainda cobertas de telha portuguesa envelhecida pelo sol tropical.
E, sobranceira, como era suposto numa ex-colónia benzida pelo catolicismo, a igreja da Nª Srª do Carmo, quase tão alva como a roupa branca nos estendais esvoaçantes.
O Regresso Oportuno do sempre Valioso Cacau
Abaixo dessa espécie de recreio, por fim, em estufas plásticas e armazéns lúgubres, testemunhamos como, nos últimos tempos, a roça se havia inspirado na história, como procurava reavivar os tempos em que São Tomé e Príncipe foi o maior produtor mundial de cacau.
Uma trabalhadora espalhava os grãos que secavam sob o calor abafado. Quatro ou cinco outros, transportavam grandes cestos cheios, entre estufas e depósitos.
Num armazém próximo, uma equipa de mulheres sentadas ou acocoradas, algumas com a companhia de crianças, escolhiam o cacau de grandes montes, com paciência inesgotável.
Nas décadas mais recentes, associada à popularização do chocolate e derivados, a procura do cacau aumentou sobremaneira.
Justificou a sua produção em São Tomé e Príncipe, mesmo se semi-artesanal e em quantidades ínfimas, se comparado, por exemplo, com o grande rival africano, o Gana. São Tomé e Príncipe, o Gana e África em geral laboram, agora, por sua conta.
Ainda celebram as suas independências.
Um painel com um busto negro impera, destacado sobre a placa pós-colonial identificativa da propriedade: “Empresa Estatal Agro-Pecuária Dr. António A. (Agostinho) Neto.”
Não longe, damos com o edifício verde-gasto que acolhe a escola local.
Lá decorre uma partida de futebol aguerrida, disputada pela miudagem num descampado de terra.
Do lado de lá do muro que o delimita, desenrola-se uma corrida de pneus, guiados, descida abaixo, por quatro ou cinco rapazes munidos de varas.
Lagoa Azul, um Pedaço Deslumbrante de Atlântico ainda Norte
Volta após volta, já circulávamos na roça havia mais de uma hora. Vem-nos à mente o itinerário do norte da ilha que era suposto cumprirmos até ao fim do dia. Regressamos ao jipe.
Apontamos ao litoral norte de São Tomé.
Passamos por Guadalupe. Logo, atalhamos para a Lagoa Azul, uma enseada encaixada num apêndice de terra peculiar, encerrado por um promontório ervado de que desponta um farol miniatura homónimo.
Revela-se, ao mesmo tempo, deslumbrante e aconchegante a praia que ali desvendamos, com a sua amostra de areal revelado pela maré-vaza, abaixo de um entorno de calhaus e rochedos de origem vulcânica.
Banham a praia águas atlânticas translúcidas, de um tom turquesa intenso, mais resplandecente que os verdes da erva e dos tamarindos e de outras árvores em redor. Confronta ainda o areal um embondeiro portentoso e, até que a época da queda chegasse, frondoso.
Deleitavam-se na lagoa tépida alguns expatriados, de folga das missões que os levaram a São Tomé. Entretanto, junta-se-lhes uma família santomense, chegada da banca que por ali serve peixe e banana grelhados.
Prendamo-nos com uma curta pausa de deleite balnear. Sob o sol quase equatorial – a Linha do Equador passa sobre o Ilhéu das Rolas, secamo-nos em três tempos. Voltamos à estrada.
Apontamos a Neves, a capital do distrito de Lembá. Lá nos detemos por breves instantes para comprar petiscos. Prosseguimos para sudoeste.
O Projecto Hoteleiro da Roça Monte Forte
No lugarejo seguinte, visitamos a Roça Monte Forte, à data, um projecto de alojamento em que se empenhava um tal de Sr. Jerónimo Mota que nos recebe de braços abertos, trajado com uma camisola da selecção das quinas, comemorativa da derrota com a Grécia na final do Euro 2004.
Jerónimo mostra-nos o edifício principal, todo ele de madeira, com excepção para o telhado, uma vez mais de telha portuguesa clássica.
O anfitrião faz-nos sentar no átrio, em cadeiras de esplanada Super Bock. Serve-nos sumos naturais.
Findos os refrescos, conduz-nos pelo alpendre e pelas varandas, cada qual com vistas privilegiadas sobre a encosta verdejante e o limiar do Atlântico Norte.
Jerónimo passa-nos uma folha de agenda, com a morada e os contactos escrevinhados numa caligrafia contorcionista que, por muito que tentássemos, falharíamos sempre em imitar.
Cumpridas as despedidas, acompanha-nos de volta ao asfalto.
A Estrada de Monteforte a Anambó
Segue-se Esprainha. E Monteforte, a povoação, agora de nome todo junto.
Ao passarmos pela ponte sobre o rio Água Monte Forte, constatamos uma manada de vacas estendida sobre o caudal raso, dividida entre beber da água e devorar as folhas tenras de árvores recém-caídas.
O vaqueiro que as guarda, de sorriso fácil, acerca-se.
Informa-nos que a manada é da Roça Diogo Vaz e ri-se a bom rir quando o alertamos, na brincadeira que, a passarem tanto tempo no rio, os animais se transformariam em hipopótamos.
A estrada torna-se ainda mais sinuosa.
Envolve-a um manto denso de folhas secas de visual outonal, mesmo se o Outono ainda está por visitar São Tomé. Enfia-se numa floresta tropical densa que se insinua ao mar.
Do Padrão dos Descobrimentos de Anambó ao Fim da Estrada
Na beira-mar verdejante, húmida e vulcânica de Anambó encontramos o padrão dos descobrimentos que marca o lugar em que desembarcaram, em 1470, João de Santarém e Pêro Escobar, os descobridores portugueses de São Tomé.
Descemos toda a costa de Santa Clotilde e, entretanto, a de Santa Catarina.
Ali, a via avança na base de uma encosta abrupta, pouco mais de dois metros acima do nível do mar.
Atravessamos um túnel pitoresco que um avanço da falésia impôs ao itinerário.
Uns quilómetros adicionais para sul, cruzado o rio Bindá, a estrada confronta-se com a vastidão selvagem do Parque Natural Ôbo e desiste.
Força-nos a inverter caminho.
Com o sol já desaparecido para o lado oposto da ilha, só interrompemos o regresso em Ribeira Funda.
Fazemo-lo deslumbrados com a alegria com que alguns miúdos, de pelota, repetiam mergulhos acrobáticos para o rio profundo, percorrido por patos. Mais que isso, de cor suspeita.
Toda a acção e a diversão a decorrerem em frente à mansão colonial de uma antiga fazenda. Algures no norte, noroeste exuberante de São Tomé. Sem sinais do extremo oposto da ilha.