Ao fim de vários dias passados nos fundos da Tasmânia, saímos, por fim, apontados a norte.
Em jeito de despedida da cidade, decidimos subir aos 1271 metros do monte Wellington, o cume da cordilheira homónima que barra a expansão do casario da capital e a separa da vastidão insular acima no mapa.
Monte Wellington Acima
Vinte minutos de curvas e contracurvas num cenário meio silvestre, meio rochoso atingimos o cimo, bem identificado por um miradouro com arquitectura destemida. Deixamos o carro.
Subimos a um varandim de madeira sobranceiro. Dali, apreciamos a profusão de calhaus magmáticos rosados que se estende encosta abaixo.
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Laivos de nuvens surgem de mais abaixo da base da encosta do Monte Wellington, a sul norte de Hobart.
Vemos laivos de nuvens ascenderem, de mais abaixo na vertente, sub-reptícios, como que a quererem surpreender os intrusos da sua montanha. Mais que os novelos gasosos, é a meteorologia do monte que nos apanha desprevenidos. Percebemos, sem lugar para dúvidas, como era fulcral para Hobart o abrigo orográfico da cordilheira.
Sem ela, sobretudo durante o Inverno austral, Hobart ficaria exposta aos caprichos dos ventos de sul e sudoeste, provenientes do oceano Antárctico.
Mesmo se os ventos prevalentes sopram de norte, vindos do sempre amornado continente australiano, sempre que as excepções se dessem, os moradores da cidade enregelariam.
Era o que nos estava a acontecer aos poucos, a razão porque nos rendemos às evidências e aos tremeliques cada vez mais intensos. Recolhemos ao interior do edifício envidraçado.
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Edifício envidraçado do miradouro do monte Wellington protege os visitantes do vento furioso que varre o cume.
Protegidos das rajadas frígidas e furiosas, apreciamos o panorama por algum tempo mais: o recorte do longo estuário do rio Derwent e, para diante, as terras mais lisas da Península de Tasman que tínhamos explorado por aqueles dias.

Visitantes sobre o varandim do miradouro do Monte Wellington, bem acima de Hobart.
Das Alturas às Planuras das Midlands
Corremos de volta ao estacionamento. Enfiamo-nos no carro. Dali, descemos rumo às planícies de Midlands.
Tal como o nome deixava antever, identificamo-las na iminência do meio da ilha, dominadas pelos tons de verde e amarelo das plantações de cereais, compartimentadas por sucessivas sebes.
As Midlands tornaram-se rurais logo nos primeiros anos da colonização. Essa realidade e a opulência conseguida pelas famílias de colonos agricultores salta à vista no número de vilas e vilarejos de pedra e de antigas povoações guarnição e correio que ainda abundam.
Oatlands, por exemplo, abriga a maior colecção de arquitectura georgiana da Austrália, com 87 edifícios históricos só na rua principal. Algumas dezenas de quilómetros para norte, Ross irradia charme colonial.
E uma tranquilidade só quebrada pelo grasnar dos corvos e pelo soar do sino da igreja. Nem sempre assim foi.

Caixas de correio antigas de Ross, Midlands da Tasmânia.
A Guarnição Secular de Ross
Ross foi estabelecida por volta de 1812 para proteger dos aborígenes os viajantes que percorriam a ilha de alto a baixo. Nessa altura, a relação com os nativos mantinha-se mais conflituosa que nunca. A guarnição acolhia as carruagens durante a noite. Mantinha os passageiros em segurança.
Ross ainda abriga uma das pontes mais fotografadas da ilha da Tasmânia. À imagem de tantas outras estruturas da ilha, construíram-na os condenados. Até o supervisor dos pedreiros era um deles.
O Desterro e a Obra de Daniel Herbert
Ainda na Grã-Bretanha, Daniel Herbert tinha um pai militar e um emprego. Nem assim resistiu a um dos tachos bem mais lucrativos que lhe eram propostos. Durante um assalto numa estrada, acabou capturado. Reincidente em roubos violentos, foi condenado à morte. Viu a pena ser mudada para degredo para a vida.
Alguns anos de desterro tasmaniano depois, as autoridades decidiram recompensar o seu trabalho exaustivo nos 186 painéis que decoram os arcos da ponte de Ross. Concederam-lhe o perdão.
Mesmo se toda a vila nos parece pitoresca, animada por lojinhas de artesanato e casas de chá aconchegantes, a ponte com a arte de Daniel Herbert preserva-se o monumento dos monumentos.

Sol doura a ponte mais emblemática de Ross, uma povoação histórica das Midlands da Tasmânia.
Ainda em Ross, deparamo-nos com um cruzamento com quatro possíveis sentidos para a vida: a Tentação, representada pelo hotel-pub Man O’Ross; a Salvação, oferecida pela igreja católica; a Recreação, proporcionada pelo edifício cultural da câmara local e, por fim, a Condenação da velha cadeia.
Na manhã seguinte, com o tempo para Taz a escoar-se, esquivamo-nos às quatro hipóteses.
Retomamos a estrada 1. Percorridos uns poucos quilómetros, desviamos para leste, apontados à costa oriental da Tasmânia, conhecida como Sun Coast graças ao seu clima suave.
Às Curvas, pela World Road Kill Capital
A estrada, estreita e sinuosa, ondula acima e abaixo de sucessivas colinas. Mas, mais que o seu traçado excêntrico de montanha-russa, é a quantidade de cadáveres animais sobre o asfalto que nos comove.

Árvores ressequidas numa encosta árida das Midlands da Tasmânia.
A proliferação de espécimes com hábitos nocturnos – com predomínio para os marsupiais – e a falta de protecções que barrem as suas travessias sobre o alcatrão, fez da ilha da Tasmânia a World Roadkill Capital, título atribuído e reconhecido entre os povos anglófonos.
As vítimas dos veículos tasmanianos podem, inclusive, ser divididas entre espécies e sub-espécies.
Reconhecemos cangurus, wallabies (pequenos cangurus) e pademelons (cangurus ainda mais pequenos) equidnas, raposas, e opossums (gambás), estes últimos dos mais temidos pelos condutores, por o seu físico robusto provocar enormes danos nos motores e carroçarias.
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Sinal alerta para o cruzamento de equidnas, animais endémicos da Austrália demasiadas vezes vítimas dos carros.
A lista de vitimas não se fica por aí. Os atropelamentos são uma causa substancial para a quase extinção dos famosos Diabos da Tasmânia.
A Condenação Demoníaca do Diabo da Tasmânia
Num daqueles desenhos animados apresentados pelo saudoso Vasco Granja, Bugs Bunny é acossado por um deles. Recorre a um dicionário para perceber que estranha espécie o ameaça: “ … aqui está, Diabo da Tasmânia: besta forte, assassina, dotado de maxilares poderosos como uma armadilha de aço.
É insaciável, alimenta-se de tigres, leões, elefantes, búfalos, burros, girafas, polvos, rinocerontes, alces, patos … ao que o predador acrescenta: “E coelhos!” “Coelhos? Não diz nada aqui.” responde Bugs Bunny. Com a sua paciência a esgotar-se, o Taz decide-se a impor a sua vontade e completa o dicionário com um lápis.
No mundo real, o Diabo da Tasmânia revela-se um fraco caçador. Necrófago, omnívoro, alimenta-se sobretudo de animais já mortos.
Os seus atropelamentos acontecem, em grande parte, quando devoram os cadáveres sobre as estradas. Como se não bastasse o infortúnio, os “demónios” viram-se assolados por uma epidemia de tumores faciais que, em certas zonas da Tasmânia, os diminuíram em quase 80%.
Após intenso lobby, o governo da Tasmânia obteve autorização da Warner Bros para vender cinco mil peluches do Taz e usar o lucro no combate à epidemia do tumor facial.
Os cientistas e ambientalistas classificaram a oferta de sovinice. É algo de que é difícil discordar, se tivermos em conta que a imagem do animal rende, todos os anos, milhões de dólares à companhia.
Nos últimos tempos, foram feitos esforços adicionais para controlar o número de mortes. Ao mesmo tempo, este mamífero marsupial parece ter reagido ao tumor. Tudo indica que a criatura sobreviverá à sina a que parecia condenada.
E a Extinção Fulminante do Tigre da Tasmânia
O principal predador de outros tempos do Diabo Tasmaniano, o Tigre da Tasmânia, não teve a mesma sorte. O seu visual exótico seduzia os caçadores. Como se não bastasse, o thylacine predava o gado.
Os colonos vitimaram-no em sucessivas caçadas e vinganças. Em 1936, menos de um século após o início da povoação da Tasmânia, já o tinham extinguido.
Como é da praxe nestes casos, subsistem defensores de que alguns espécimes furtivos ainda se escondem na ilha da Tasmânia profunda. Prosseguimos o nosso itinerário de olhos bem abertos.
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Condutor detém-se na berma de uma estrada do ocidente da Tasmânia para deixar mais um calçado velho num estendal há muito dedicado.
Do interior rural, avançamos para o litoral leste por um percurso sinuoso que desvenda apenas negócios caseiros de beira de estrada e – a mais inesperada das visões – uma secção de estendais de calçado velho instalados nas suas bermas que os condutores aumentam por piada, e por reverência à tradição inaugurada por um agricultor da região.
A estrada B34 prossegue para norte ao longo do litoral ventoso do leste. Quando chega ao meio da ilha, corta para uma península descaída no mapa.
O Domínio Peninsular de Freycinet
Entra no Parque Nacional Freycinet, um território protegido em que abundam tanto as praias selvagens de areia branca e mar revolto como enseadas tranquilas de águas azuladas que dão para penhascos imponentes e encostas florestadas. Duas destas enseadas quase se tocam na Wineglass Bay.
O duo transformou-se numa paisagem de eleição da ilha da Tasmânia. Determinados a investigar a sua proximidade turquesa, vencemos os mais de 600 degraus que conduzem a um miradouro dedicado. Em vão. Nos últimos tempos, a vegetação crescera.
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As águas azuladas e gélidas da baía mais arredondada e popular do PN Freycinet.
Daquele alto intermédio, só avistávamos a baía arredondada de Wineglass Bay. Em vez de nos arranharmos de morte a ascender a colina entre arbustos espinhosos, entregamo-nos ao trilho íngreme e longo que descia.
Na baía, deparamo-nos com um mar demasiado gélido e traiçoeiro para nos recompensarmos com um mergulho. E com um wallaby desconfiado.

Wallaby intrigado sobre o areal da Wineglass Bay, PN Freycinet.
De Freycinet à Capital do Norte: Launceston
Recuperamos as forças a passearmos pelo limiar da rebentação. Quando o areal se rende às falésias rochosas, revertemos caminho para a via principal da ilha da Tasmânia. Uma vez mais a conduzirmos por ela acima, damos entrada em Launceston.
Chegamos já sobre o anoitecer, de rastos. Quando procuramos um Irish Pub local com alguns dos quartos mais baratos da cidade, um carro de polícia manda-nos encostar. Na atrapalhação de acharmos a morada, tínhamos falhado um pisca. O agente que nos aborda tem tudo menos cara de australiano.
Examina os nossos nomes e nacionalidade nos passaportes. Nós, inspeccionamos o seu baptismo na identificação do uniforme. A nosso pedido, informa-nos que nasceu em El Salvador. “Desculpem lá mas tenho que vos passar um bilhete de aviso. Não têm nada a pagar mas tentem não cometer mais infracções.”
Se tinha que ser, que fosse. Acabamos a falar espanhol e a rir à gargalhada. Ao virar da esquina, damos com o pub. Jantamos. Apesar de algum expectável ruído de convívio alcoolizado, dormimos a bem dormir. Chegada nova manhã, saímos à descoberta de Launceston.
Launceston é a segunda maior urbe da ilha. Ainda a anos luz da capital no que diz respeito ao desenvolvimento e ritmo de vida, a cidade só há pouco reagiu ao frenesim turístico do resto da ilha da Tasmânia.
As suas atracções resumem-se a alguns restaurantes regionais e ao chamariz injustificado de uma tal de Cataract Gorge que nem apreciada de cima, de teleférico, nos enche as medidas.

Gazebo integrado no cenário verdejante da Cataract Gorge, em Launceston.
A Costa da Desilusão
Sabíamos que a Tasmânia guardava lugares especiais. Desejosos de os antecipar, abandonamos Launceston.
Almejamos a costa norte da ilha, a virada à Grande Ilha aussie. Lá chegados, percorremos a estrada cimeira rumo a oeste. Umas dezenas de quilómetros depois, percebemos que a proximidade com a ilha-mãe fizera daquele litoral, o principal antro industrial de Taz.
Lá se sucediam enormes tanques de combustíveis e de outros químicos, refinarias e distintas unidades de armazenamento e processamento de produtos, todos à beira de um mar bem mais tranquilo que o da costa leste e o da sul.
Aguentamos aquele panorama repelente por uns quarenta minutos. Sem sinal de que viesse a mudar, por alturas de Devonport, flectimos para sul, na senda da Tasmânia selvagem de todos os sonhos.
Não estávamos longe. Fica para um próximo artigo.