A tarde já vai no fim quando nos fazemos à estrada de terra que dá a volta ao parque nacional Monument Valley.
Admiramos as formações geológicas Mittens e Merrick Butte, depois Elephant Butte e as Three Sisters. Ao longe, entre as duas últimas, vislumbramos também o que parece ser um cowboy a fazer empinar um cavalo no limite de um precipício.

Um dos pontos de vista mais emblemáticos – e explorados por John Ford- do Monument Valley.
Deparamo-nos, então, com o John Ford Point, um dos pontos de vista preferidos do realizador que filmou “Cavalgada Heróica” e seis outros dos seus clássicos do Oeste no Monument Valley.
Logo ao lado, jovens guias de etnia navajo tomam conta de um estábulo e dos cavalos que usam nas montadas que organizam.
Os Índios Navajo que Ganham a Vida como Cowboys
Kenan Chico aborda-nos. Veste uma camisa axadrezada, lenço ao pescoço, chapéu de abas negro e mantém uma postura firme que condiz com a do Duke.
Ganhamos coragem para lhe fazer a pergunta que se impõe e a resposta, pausada e ponderada, justifica o visual cowboy do índio: “esses tempos passaram há muito e as culturas misturaram-se.
Uma boa parte dos navajos usa roupa de vaqueiro: os jeans e as botas de montar etc. etc.

Kenan Chico e dois navajos mais novos junto ao estabulo do John Ford Point.
Não quer dizer que não preservemos a nossa identidade. Além disso, nós aqui não temos outra hipótese. Quem chega ao John Ford Point quer ver cowboys e calhou-nos a nós desempenhar o papel. O maior de todos ainda é ali o Adrian. Se tivesse vivido na época certa, o John Ford tinha-o filmado era a ele.” remata com um humor tímido.
O Enquadramento Monumental do John Ford Point
Chega ao promontório um grupo de turistas coreanos. Adrian dá início a novo take. Avança até ao limite da meseta e volta a fazer empinar Pistol, o seu cavalo negro. A acrobacia deixa os visitantes a suspirar pelos Westerns grandiosos.

Adrian faz empinar Pistol, o seu cavalo negro.
Fechada a cena, o jovem navajo regressa ao convívio com os amigos e exclama: “estes são os que vibram mais. Estes e os japoneses entram mesmo em êxtase!”.
Ainda íamos a meio do itinerário de 27 km e a tarde aproximava-se do fim. Retomamos, assim, o circuito e a identificação das restantes formações.
Encontramos as Three Sisters, a Camel Butte, e o exuberante Totem no seu equilíbrio quase religioso.
Procuramos rastos de víboras nas ondas das Sand Springs e examinamos o Artists’ Point, de onde se observa uma nova composição criativa de pequenas mesetas e pináculos.

A agulha destacada da Merrick Butte, uma das formações caprichosas do Monument Valley.
A North Window sugere um enquadramento semelhante mas mais contido e, como o nome indica, The Thumb, um polegar que aponta para o firmamento escurecido em que aparecem os primeiros astros.
Instalamo-nos em frente das Mittens e admiramos os diferentes tons com que o crepúsculo tingia aquele Arizona navajo, cowboy e monumental.

Uma das formações mais emblemáticas do Monument Valley.
Por Terras da Nação Navajo
No dia seguinte, dedicamos algum tempo a Kayenta, a estranha porta de entrada para o Monument Valley.
Segundo o dialecto diné (os navajos chamam a si próprios Diné, ou povo Diné), Kayenta significa buraco pantanoso.
Mesmo se o lugar é, hoje, sobretudo seco, subsiste isolado à entrada de uma das áreas geológicas, étnicas e cinéfilas nobres dos Estados Unidos e retém os visitantes como se de um pântano se tratasse.
Com 5300 habitantes, Kayenta não forma uma cidade, nem sequer o equivalente ao que poderíamos considerar uma vila. Consiste num aglomerado de negócios tipicamente americanos – incluindo os mais populares – instalados entre um ou outro hotel, estações de serviço, e trailers distribuídos ao longo da junção das highways 160 e 163.

Acampamento de atrelados e afins sobre a vastidão avermelhada do Monument Valley.
Apesar deste estranho perfil, e do logótipo McDonalds destacado nas alturas, Kayenta é a única povoação governada em jeito municipal da Nação Navajo, o maior território indígena semi-autónomo dos E.U.A. (71.000 km²) de Arizona, Utah e Novo México) que abriga mais de 300.000 habitantes.
A Nação Navajo: uma Sobrevivência Bipolar
Tanto Kayenta como a Nação Navajo, em geral, suscitam sensações dispares.
A figura sobranceira de John Wayne a cavalgar num desfiladeiro exuberante ao pôr-do-sol e o Marlboro Man que contempla um horizonte de penhascos imponentes são imagens produzidas in loco que encheram muitos milhões de ecrãs e enriqueceram o imaginário cowboy partilhado pelo mundo.
Mas a Nação Navajo também preserva a condenação de um povo que foi vencido pelos colonos brancos e viu a sua civilização ceder sem apelo.

Adrian, um dos indigenas Navajo que desempenham o papel de cowboys no John Ford Point, para satisfação dos admiradores de Westerns.
A par do significado icónico e do valor histórico dos cenários, detectamos em Kayenta evidências da pobreza, da depressão, da má alimentação (culpa da fast food que até ali chegou) e do alcoolismo que hoje assolam todas as comunidades nativas dos Estados Unidos.
No tempo que lá passamos, a busca de uma alimentação menos danosa acaba por nos proporcionar experiências curiosas. Quando procurávamos escapar ao cerco dos piores restaurantes franchisados, demos por nós no supermercado escondido e mal fornecido da terra, os únicos forasteiros a fazer compras entre uma multidão de navajos que abasteciam os seus lares.
Mais tarde, almoçamos num pequeno restaurante chinês e devoramos chop sueys entre índios obesos com visuais orgulhosos de vaqueiros.
Margaret B. – Uma Anciã Navajo Carismática
Ainda na proximidade do Monument Valley Park, paramos numa loja de beira de estrada para apreciarmos a arte navajo e acabamos a tentar dialogar com Margaret B.Gray, uma matriarca índia de porte altivo que, apesar do nome, só articula umas poucas palavras inglesas.

Margaret B. Gray, uma indígena navajo vendedora de artesanato
Com o aumento gradual dos visitantes, a venda de artesanato nativo provou-se um negócio atractivo e mais de 60% das famílias da nação têm pelo menos um elemento que o produz. Algumas conseguem vender os seus bens em lojas privilegiadas como a do Centro de Visitantes.
Outros, em tendas montadas junto às principais formações geológicas do parque.
Outros ainda apostaram em negócios distintos. Ignoraram a antiga inimizade com os usurpadores das terras indígenas e, como Kenan Chicko e Adrian, ganham a vida nas suas peles.
Da Tundra Alasquense à Integração da Nação Navajo nos E.U.A.
Crê-se que as tribos Athabaskan que deram origem aos navajos migraram para o sudoeste dos E.U.A. em 1400 d.C. vindas do leste do Alasca e do noroeste do Canada. Ao entrarem em contacto com a civilização Puebla, adoptaram as suas técnicas de cultivo e as produções agrícolas.
Dos colonizadores espanhóis – que lhes chamaram pela primeira vez navajos – assimilaram o hábito de criar animais em manadas e rebanhos para alimentação e para trocar por outros géneros. Seguiu-se a aprendizagem da tecelagem e da produção de roupas e mantas.
Por volta de 1860, os espanhóis perceberam que os navajos possuíam milhares de cabeças de gado, vastas áreas cultivadas e um passado de expansão territorial, de redefinição da sua identidade e da ligação com os vizinhos Pueblos, Apaches, Utes e Comanches que oscilava entre as incursões bélicas e o comércio.
Mas os apaches estavam também no caminho dos conquistadores. Cumprindo a tradição, estes, inauguraram um longo período de ataques e pilhagens aos índios.
Alguns anos mais tarde, os Estados Unidos expulsaram os espanhóis e os mexicanos da zona.
Assumiram a anexação do território navajo com recurso a uma rede estratégica de fortes. Irados devido à construção de caminhos de ferro, à exploração mineira e à invasão, em geral, os navajo retaliaram como nunca.

Bandeira alusiva à Navajo Nation esvoaçaa acima de uma das Mittens
Em simultâneo com a carnificina da Guerra Civil Norte-Americana, os anos de 1860-61, revelaram-se de tal maneira castigadores para os colonos e militares que ficaram conhecidos como “The Fearing Time”.
A Tortura Infame da Long Walk
A reacção não se fez esperar. Com base no Novo México, as forças da União comandadas por Kit Carson queimaram sistematicamente os cultivos dos navajo e levaram-nos primeiro à rendição e logo à condenação da Long Walk.
A Long Walk redundou numa deportação infame em que cerca de 9.000 homens, mulheres e crianças tiveram que caminhar no deserto durante quase 500 km até Fort Summer, onde o governo dos Estados Unidos tinha instalado Bosque Redondo, a primeira grande reserva índia. Após 18 dias de marcha, contaram-se mais de 200 mortos.
Daí em diante, as autoridades militares conseguiram manter e controlar os navajos nessa e noutras reservas que aumentaram de dimensão até ao seu território original.
Muitos nativos foram integrados no exército como batedores mas as permanentes agressões dos colonos civis e o preconceito impediram um melhor relacionamento entre os dois povos.
Nos dias que correm, esse fosso étnico e cultural continua por resolver.

Bandeira alusiva à Navajo Nation esvoaça acima de uma das Mittens.
A Relação Complexa dos Navajo com os Soberanos Estados Unidos da América
Como parte da Nação Navajo, o Monument Valley Navajo Tribal Park nunca foi integrado na rede norte-americana de National Parks.
De acordo, todos os dez dólares pagos pelos visitantes revertem para o sustento do povo navajo que, após uma longa disputa com os governos federais, conquistou igualmente uma legislação (assente no código tribal), um Conselho e Tribunal Supremo próprios – instalados na capital Window Rock – bem como o direito de dispor de forças de autoridade autónomas.
Malgrado a relação bipolar que os nativos norte-americanos sempre mantiveram com Washington, os navajo conquistaram, aliás, uma curiosa reputação militar.
São famosos os seus code talkers recrutados pelos Marines durante a 2ª Guerra Mundial para o teatro do Pacífico, com o fim de transmitirem mensagens tácticas secretas via telefone ou rádio, com base nos dialectos indígenas.
Para muitos nativos, esta e outras colaborações nunca tiveram a recompensa devida. Alguns anos antes, os Estados Unidos tinham negado aos Navajo assistência social porque os indígenas viviam numa sociedade comunal.
Mais recentemente, o financiamento federal da sub-nação indígena tem-se provado insuficiente para suprir a interioridade e as lacunas que a vitimam.
Durante a segunda metade do século XX, a mineração de urânio e de carvão representaram uma fonte de rendimentos significativa.
A procura de urânio diminuiu e, mais grave que isso, a população navajo desinformada acerca dos malefícios da radioactividade sofreu graves danos ecológicos e biológicos que, em 2005, levaram ao cancelamento da extracção.

Formações geológicas do Monument Valley, vistas do ar.
Sabe-se, hoje, que as terras ocre da Nação Navajo abrigam os recursos minerais mais importantes de todos os domínios nativos dos Estados Unidos mas os navajos continuam a depender de outras actividades.
O artesanato e o turismo complementaram-se e se muitas famílias contam com artesãos, alguns dos seus elementos também se vestem de cowboys para representarem os protagonistas em falta.