Há muito que deixámos de vislumbrar o casario baixo de Akureyri e só ínfimos retalhos do riacho que acompanha o trecho setentrional da Ring Road por que seguimos se mantêm libertos do sufoco invernal.
A alvura não abafa um bruar crescente nem a névoa que vislumbramos a esvoaçar ao longe.
Ao fim de muitos quilómetros de vertigem, o rio Skjálfandafljót sofre, ali, o mais dramático dos tropeções geológicos a que o submete o seu percurso do domínio supremo de Bárdarbunga à baía de Skjálfandi.
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Um dos muitos rios e riachos que percorrem a Islândia.
A Cascata DIvina da Islândia de Godafoss
Cruzamos a ponte que o atravessa e estacionamos. Caminhamos sem tacto nem fé sobre neve islandesa com 40 cm de altura e, apesar da sensação de eminente colapso, atingimos a margem elevada.
Daquela posição algo traiçoeira, desvendamos o esplendor semi-congelado e estalactítico de Godafoss, a cascata dos deuses.
O anfiteatro desta catadupa tem cerca de 30 metros. Ligeiramente amortecida antes da queda de 12 metros, a água do Skjálfandafljót parece solidificar a olhos vistos e retoca uma escultura que o frio molda desde os primeiros dias de Novembro.
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A queda de água em que o chefe Thorgeir Ljósvetningagodi se livrou dos antigos deuses pagãos.
Faça que temperatura fizer, Godafoss será sempre um monumento natural incontornável da Islândia. O seu nome mitológico tem justificação num dos livros mais antigos e reputados da história da ilha. Narra o Íslendingabók que, por volta do virar do primeiro milénio, a sua população teve que decidir se preservava o paganismo norueguês ou abraçava a cristandade.
Depois de um dia e uma noite de meditação silenciosa debaixo de uma manta de peles, um legislador e chefe de nome Thorgeir Ljósvetningagodi – ele próprio até então pagão – escolheu converter-se à cristandade.
No regresso à sua quinta em Ljósavatn, lançou nas águas revoltas da queda d´água os ídolos divinos que descartara.
O itinerário prossegue por Sprengisandur e conduz-nos ao reduto vulcânico de Myvatn. Exploramos a sua superfície lunar ora encharcada ora gelada e continuamos para leste.
A Busca Frustrada de Detifoss, a Rainha das Quedas d’Água da Europa
A determinada altura, detectamos um conjunto de indicações rodoviárias. Apesar de enormes, só o seu topo permanece a descoberto da neve acumulada.
Percebemos que Detifoss, a catarata mais volumosa da Europa está apenas a 24 km para norte. Mantemos o alento de a alcançarmos.
Mas, uma placa
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Placa de indicação da queda de água mais volumosa da Europa, quase totalmente soterrada pela neve.
à entrada do desvio informa que não existe serviço invernal de limpeza de neve e que a via secundária pode estar intransitável.
Bastam uns minutos para nos debatermos com camadas de neve invencíveis. Rendemo-nos às evidências. Voltamos à Ring Road.
Passagem Incontornável pela Lagoa de Jokullsarlon
Contornamos vários dos fiordes profundos que recortam a costa leste, incluindo o que abriga Seydisfjordur. Naquelas paragens, mais a chuva do que a neve irriga inúmeros véus de noiva que escorrem do topo de falésias verdejantes.
Esta profusão intensifica-se com a proximidade do extremo oriental do glaciar Vatnajökkull, eterna fonte de vida da ilha do fogo e do gelo.
Exploramo-lo a partir da lagoa Jokullsarlon, de onde os seus icebergs mais aventureiros zarpam para o Atlântico. Depois, viajamos até Skaftafell.
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Retalhos de gelo recém-soltos do glaciar Vatnajökull, na lagoa de Jökursarlón.
Chove a cântaros. Um aviso no parque de estacionamento improvisado dá conta que a continuação da estrada é restrita a empregados do parque nacional. Entregamo-nos, assim, ao trilho escorregadio e ao aguaceiro durante quase 2km.
Quando chegamos à confluência com o fim real da via asfaltada, percebemos que éramos os únicos visitantes semi-encharcados e a respeitar a indicação.
A Obra de Arte Geológica de Svartifoss
Para compensar, o alvo fluvial que se segue está iminente. Acercamo-nos e percebemos, numa escala mais digna, a sua excentricidade poligonal. Ao contrário das quedas d’água antecedentes, o fluxo de Svartifoss prova-se insignificante.
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Caudal diminuto de Svartifoss precipita-se junto ao que resta de uma vasta cama de neve e gelo que se manteve nos meses anteriores.
Como aconteceu noutras partes raras do mundo, a solidificação da lava deu-se ali em condições improváveis. Gerou paredões em arco, compostos de estranhas colunas hexagonais e em permanente risco de derrocada.
Volta a chover. Primeiro só a cântaros. Depois, a cântaros, também sob a forma de um granizo pontiagudo. Batemos em retirada.
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Svartifoss, uma queda de água que se precipita sobre uma falésia feita de colunas hexagonais esculpidas pela solidificação rápida de lava.
Passamos incontáveis granjas agrícolas em alternância com as vastidões aluviais deixadas por sucessivos degelos dos glaciares a norte. Faz sol, neva, chove, volta a nevar e a fazer sol.
Também se sucedem os cenários deslumbrantes porque passamos. Mesmo assim, temos dificuldade em respeitar o limite de 90 km/h da interminável Ring Road.
Skogafoss, uma Queda de Água Admirável da Base e do Cimo
Estamos a caminho de Skogafoss quando, escondido numa berma baixa, o primeiro carro da polícia que víamos fora de Reiquejavique nos manda encostar. “Boa tarde. São de onde?” pergunta-nos o agente alourado enquanto examina os documentos. “Portugal? As coisas por lá não andam propriamente bem, pois não? “ continua com um sarcasmo elegante.
“Por cá, já passou o pior mas sabem que as multas nem com a nossa crise baixaram. São caras! Vão-se lá embora mas olhem que é só desta vez. Já devem ter reparado que a Islândia tem coisas em que vale muito mais a pena gastar dinheiro”.
Afastamo-nos da autoridade a uma velocidade teatral. Por algum tempo, conseguimos manter-nos na linha.
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Visitantes aproximam-se da base de uma das quedas de água mais acessíveis da Islândia, a pouca distância da beira da estrada e do mar.
Pouco depois, entrevimos Skogafoss encaixada entre falésias recuadas. Seguimos à margem do curso pedregoso a que dá origem e, acompanhados do lado de lá de uma vedação por um cavalo tresloucado, atingimos a sua base sombria.
Sentamo-nos. Admiramos o salto de 60 metros sobrevoados por andorinhões-pretos. Quando aquela talassoterapia nos parece suficiente, fazemo-nos a um trilho de cabras íngreme.
Conquistamos um miradouro erguido sobre o último estertor do rio Skógá, numa clara fronteira de plano entre a franja da costa sul e as terras altas do interior.
A Vizinha Esguia e Dançante de Seljalandfoss
Seljalandfoss não fica longe. Encontramos a sua queda serpenteante também de 60 m numa arriba perpendicular à estrada. Começamos por a contemplar de uma plataforma lateral.
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Um visitante tenta abrigar-se da irrigação forte provocada por uma mudança súbita do vento, junto a Seljalandsfoss
Não tarda a instalar-se nova intempérie. O vento, a água da catarata e a mistura de neve e de chuva aliam-se e criam um turbilhão que nos fustiga sem piedade.
Deixamos o posto de observação. Abrigamo-nos no único lugar a coberto, atrás do seu caudal vertical, dentro da base côncava da falésia.
Tão depressa como se foram, o sol e o céu limpo retornam. Voltamos ao carro, desejosos de recuperar o calor corporal. Fazemo-lo de frente para Seljalandfoss que a luz boreal em permanente oscilação tingia de diferentes tonalidades.
Até que, uma inesperada interferência visual nos surpreende. A meio caminho entre o carro e a falésia, uma criatura verde de aparência extraterrestre faz acrobacias, fotografado por um colega terráqueo.
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Um estudante nativo vestido de extraterrestre em frente à queda de água de Seljalandfoss
A certo ponto, metade dos visitantes presta-lhe mais atenção que à queda d’água.
O ser verde mostra-se pouco preocupado. E intrigados. Uma vez que o carro a que regressa após o fim da sessão está mesmo ao lado do nosso, não resistimos a questioná-lo. “E.T. eu? Não!!” responde-nos com boa disposição. “Sou dos de cá. Islandês e tudo.”
Esta macacada deve-se a um projecto da minha universidade em que tive a má ideia de me meter. Chama-se Green Channel. Depois vamos processar as imagens com software de TV. Mas tenho que fazer estas figuras em mais lugares símbolo da Islândia. Já viram bem a minha sorte?”
Antes do retorno a Reiquejavique, ainda passaríamos por outras quedas de água. A mais emblemática destas finais, Gullfoss, impressionou-nos pela sua configuração, em camadas, não tanto pelo volume do caudal do rio Hvitá.
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Uma depressão geológica invadida pelo caudal volumoso do rio Hvitá;, em certos momentos pós-chuva ou degelo, bem mais impressionante que na imagem.
O Inverno chegava, ao fim. Dentro em pouco, o intensificar do degelo alimentaria com fartura de água as infindáveis torrentes islandesas.