Nenhum ponto das longilíneas e dezoito ilhas Faroé dista mais de cinco quilómetros do mar.
Pois, aquando da sua fundação, os viquingues conformaram-se com a localização de Kirkjubour, quase no fundo de Streymoy, a maior das ilhas.
Kirkjubour dista apenas 11km de Torshavn. Cumpri-los passa por ascender a grande encosta do leste que abriga a capital faroesa. Avançar por um vasto planalto ervado e, logo, pela meia-encosta de um dos vários fiordes profundos que sulcam o mapa e a paisagem da nação.
Aventurosa, a estrada acompanha a linha de água sinuosa do rio Sanda. A determinada altura, flecte para sul, torna-se esguia e tangente ao limiar de outro grande fiorde, o Hestfjordur. Aos poucos, desce para o sopé de Streymoy, o oposto ao da capital em que tínhamos iniciado o percurso.
Era a terceira vez que abordávamos Kirkjubour. As duas primeiras vimo-las inviabilizadas por meteorologias demasiado desfavoráveis, de ventos poderosos e nebulosidade baixa e escura que descarregava chuva sem fim.
Nessa derradeira ocasião, damos entrada na povoação numa manhã de céu quase limpo e sol radioso, uma benesse boreal, mesmo que estivéssemos no início de Julho, em pleno Verão destas latitudes nórdicas.
A via Gamlivegur deixa-nos frente a um mar escuro e alisado e junto ao âmago histórico da povoação, paredes meias com a igreja de Olav, com a quinta quase milenar de Kirkjuboargardur (a Quinta do Rei), há muito considerada a maior e mais antiga das Faroé. Deixa-nos ainda nas imediações das ruínas da catedral de Saint Magnus.
Hoje, Kirkjubour está reduzida a um testemunho histórico, um legado habitado e vivo da sua era de esplendor medieval.
Estima-se que as ilhas Faroé tenham tido como habitantes pioneiros eremitas celtas, chegados, com animais de criação, de ilhas ao largo da actual Escócia, as Shetland, as Orcadas ou as Hébridas, desconhece-se ao certo qual a exacta procedência.
Sabe-se que, nesse lapso de tempo, as Faroé ficaram conhecidas como Na Scigirí ou Skeggjar, que se traduziriam como as ilhas dos Barbudos, de acordo com as longas pilosidades dos cenobitas que as partilhavam.
Outros visitantes frequentavam as ilhas do arquipélago faroes de quando em quando. Terá sido o caso de Saint Brendan, um monge originário da actual Irlanda.
Uma conclusão hoje mais ou menos consensual é a de que, a certo ponto, o arquipélago foi ocupado por colónias de viquingues em busca de refúgio.
A saga Faerayinga (das ilhas Faroé) narra que os primeiros a desembarcarem chegaram de terras norueguesas no final do século IX, início do X, em debandada das suas aldeias que o governo tirânico e centralizador do rei Harold I – também conhecido por Harold dos Cabelos Belos – havia tornado demasiado arriscadas.
Como há muito acontecia, esses recém-chegados organizaram-se em clãs. E, como era também hábito, os clãs entraram em conflito. Os habitantes das Ilhas do Norte quase aniquilaram os do sul. Obrigaram-nos a medidas de sobrevivência extremas. Kirkjubour surgiu, de forma inesperada, dessas medidas.
Deixamos o carro. Cruzamos o convívio de um grupo de caminhantes regressados de uma expedição pelo litoral em redor que, tendo em conta os seus ares de cansaço, teria sido longa.
Logo ao lado, deslumbra-nos num ápice, a beleza e grandiosidade do Roykstovan, um dos edifícios de madeira ainda habitados mais antigos à face da Terra (século XII, provavelmente o mais antigo) de madeira escura, com molduras vermelhas e telhados de turfa frondosa.
Qualquer estrutura de madeira é prodigiosa nas Faroé, onde as árvores são raras, nos tempos ancestrais da colonização, inexistentes. A da quinta de Kirkjuboargardur terá sido trazida da Noruega a reboque de embarcações, possivelmente de drakkars.
Circundamos a grande casa, atentos a pormenores arquitectónicos que qualquer forasteiro do sul europeu, classificaria como excêntricos.
Colunas com cabeças de dragões de língua de fora, escudos com leões de machado em riste, outras criaturas asadas que temos dificuldade em definir.
Uma escultura de madeira do que nos parece um chefe tribal de elmo. E um estranho disco-símbolo moldado em volta de um outro felino.
Cada vez mais deslumbrados, passamos para o interior, toda uma casa-museu de madeira amarelada e encarniçada pelo tempo, com divisões acessíveis por portas ínfimas se tivermos em conta o imaginário viquingue e a estatura e altura das gentes nórdicas, aquecidas por peles sob grandes elmos cornudos.
A sala imediata, vimo-la dotada de longas mesas de repasto e de fumo, com bancos corridos a condizer, equipada com um fogão secular, repleta de cordas, instrumentos agrícolas e peças decorativas, sob a supervisão de um crânio de vaca sobranceiro.
Num piso superior, fechada, mas visível através de um orifício amplo, em jeito de provocação, damos ainda com um escritório biblioteca presidido por fotografias históricas da família, descendente dos primeiros moradores da quinta, que já abrigou dezoito das suas gerações.
Esta linearidade leva-nos de volta à contenda do clã das ilhas do norte vs clã das ilhas do sul.
Ainda de acordo com a saga Faerayinga, Sigmundur Brestisson, um dos líderes do sul, navegou em fuga até à Noruega. Na pátria-mãe, recebeu a ordem real de conquistar todo o arquipélago em nome de Olav I, o rei responsável pela cristianização do povo norueguês.
Sigmundur Brestisson, não só o conseguiu como estendeu essa cristianização aos habitantes ainda pagãos do arquipélago faroês sob domínio norueguês, até 1380, quando a Noruega se uniu a Dinamarca.
Nesse processo, Sigmundur Brestisson estabeleceu que a residência episcopal da diocese das ilhas Faroé, se situaria em Kirkjubour.
Enquanto polo religioso da colónia, a povoação depressa se expandiu até um limite de 50 lares. Aumentava de ano para ano quando, já em pleno século XVI, uma enxurrada gerada pela pior das tempestades sofridas pelo arquipélago, arrastou para o mar a maioria dessas casas.
Lá se manteve, até aos nossos dias, a base da catedral de Saint Magnus, projectada como o maior templo cristão das Faroé e que, mesmo incompleta, subsiste como o maior edifício medieval da nação.
Durante algum tempo, acreditou-se que a catedral mandada erguer por um tal de bispo Erlendur nunca tinha sido finalizada. Dados arqueológicos recentes contradisseram essa teoria. Após a Reforma de 1537, a Diocese das Ilhas Faroé foi abolida e a catedral de Saint Magnus deixada ao abandono. Em 1832, foi lá achada uma pedra runa deixada pelos colonos viquingues.
A partir de 1997, as autoridades decidiram levar a cabo restaurações faseadas. Estes trabalhos evitaram o colapso da estrutura. Concederam-nos o privilégio de a vermos por dentro, de admiramos o firmamento enquadrado na pedra da grande nave e, no seu fundo, o “Golden Locker” que guarda a relíquia do Santo Patrono da Islândia, Thorlak, junto de relíquias de outras santidades nórdicas.
As mesmas autoridades, anseiam, com reticências, que a UNESCO venha a classificar a catedral como Património Mundial.
Enquanto isso, logo ao lado, quase sobre o mar e cercada pelo cemitério murado de Kirkjubour, resiste, imaculada a predecessora igreja de Saint Olav, concluída antes de 1200 e, assim, a igreja mais antiga das Faroé, até à dita Reforma de 1537, o assento do Bispo Católico do arquipélago.
Os descendentes das gentes mais antigas de Kirkjubour estimam o seu passado como algo quase sagrado. Alguns dos setenta moradores de agora da povoação, muitos, donos do apelido Patursson levam essa herança a extremos incríveis.
Tróndur Patursson, pintor, vidreiro, escultor e aventureiro é um dos mais reputados artistas faroeses. Quando não ocupado com a sua produção e com exposições, a espaços, Tróndur, entrega-se, inclusive, a expedições de reconstituição da história primordial das ilhas Faroé.
Em 1976, em parceria com Tim Severin, levou a cabo uma travessia transatlântica numa réplica de uma embarcação de casco de couro baptizada de “Brendan” em homenagem ao monge irlandês que se crê ter realizado a mesma viagem séculos antes dos viquingues ou de Cristóvão Colombo.
De maneira a gerarmos um melhor imaginário desses tempos de navegações agrestes, percorremos o pontão de rocha que se prolonga da ala sudeste da igreja de Saint Olav, Hestfjordur adentro.
Dali, admiramos a povoação actual num formato panorâmico condigno, dispersa no sopé de uma falésia pedregosa que o curto Estio já tinha tido tempo de ervar e salpicar de flores amarelas. Percorrida por cavalos de crinas lustrosas ao vento.
No regresso ao arredor também ele ervado da igreja de Saint Olav, passeamo-nos entre as sepulturas e lápides da velha povoação, de olho nos registos das suas vidas idas.
Desde os nossos dias, aos que viram nascer a quase milenar Kirkjubour.