É meia-noite. Há horas que não passa ninguém nas ruas de Kuusamo.
Malgrado a falta de hóspedes e de clientela da cidade, o bar estranho do hotel Sokos inaugura uma nova noite de karaoke. Uma barista de serviço anima-a, a cantar temas populares finlandeses no impenetrável dialecto suomi.
As letras das canções sucedem-se no ecrã, repletas de consoantes repetidas e de tremas. As melodias atraem duas ou três almas perdidas nas salas do edifício.
Levitam-se das mesas e movem-se em câmara lenta, uma técnica desenvolvida ao longo dos anos para dissimular os efeitos do álcool. Aos poucos, ganham à vontade. Juntam-se à interpretação do último êxito e escolhem o que vão cantar de seguida.
De modo a prepararem-se para o tema em fila, emborcam mais um vodka ou a bebida alternativa da moda, a Valkovenäläinen, uma mistura semi-doce de Kahlua 228 com vodka e leite.
Este espectáculo duvidoso repete-se. Enriquecem-no casais de meia-idade migrados do restaurante Torero contíguo, onde o imaginário hispânico é servido em doses industriais.
Até que o horário do bar força o seu adiamento.
Rumo à Vastidão Frígida do Parque Nacional Oulanka
Na manhã seguinte, mudamo-nos para o campo finlandês. Instalamo-nos à entrada do Parque Nacional Oulanka com planos de percorrer parte do trilho de floresta mais famoso da Finlândia, o Karhunkierros.
As nuvens passam cinzentas. Arrefece a olhos vistos e a neve que cai a espaços reforça o branco do cenário. O caminho serpenteia entre as coníferas da taiga finlandesa. Acompanha o rio homónimo que resiste ao congelamento devido à força das águas escuras.
Atravessamo-lo, algo cambaleantes, sobre pontes suspensas. Voltamos a avançar entre as árvores e damos com áreas conquistadas por vastos pântanos enregelados.
O Encanto Solitário de Juuma
Juuma surge como uma ténue recompensa civilizacional na imensidão árctica circundante, com o seu núcleo de casas de madeira vermelha na margem do lago Ala-Juumajarvi, junto a uma rampa de embarque onde um barco de serviço repousa sobre gelo.
Quatro ou cinco carros surgem estacionados na proximidade mas o Kavhila Cafe da povoação parece nunca ter aberto e só detectamos sinais de vida numa das habitações.
Em tempos pré-históricos, o território da Finlândia foi atropelado e alisado por vagas de gigantescos glaciares.
Ao contrário do que se possa pensar, revela-se plano, esburacado por incontáveis lagos deixados para trás pelo degelo.
Ruka: a Estância de Neve Possível da Alisada Finlândia
A algumas dezenas de quilómetros da nossa base, Ruka (Rukatunturi) chega apenas aos 500 metros de altitude mas tornou-se no principal centro de desportos de neve da região e um dos mais importantes do país.
Como tinha voltado a acontecer no fim de semana anterior, a estância acolhe com frequência provas dos campeonatos mundiais de esqui de fundo, de saltos, de outras modalidades praticadas sobre a neve.
Recebe mais de 65000 forasteiros que lá afluem para participar nas provas ou apoiar os competidores.
Investigamos a vila, exploramos a sua curiosa zona comercial. Subimos ao ponto mais alto apostados em apreciarmos a vista pintada de branco em redor.
Os Retalhos que a Rússia Levou e as Renas Finlândia
Dali, contemplamos a Rússia e o Parque Nacional Paanajarvi – o prolongamento do Oulanka – à imagem de boa parte do território suomi, tomado pela União Soviética à Finlândia por a Finlândia ter alinhado pelas forças do eixo durante a 2ª Guerra Mundial.
Essa perda é, ainda hoje, a grande frustração nacional. Dela falam, sem grandes complexos, finlandeses de todas as idades. É até comum encontrarmos estabelecimentos com mapas do território original ou fotos dos seus lugares emblemáticos.
No regresso ao acampamento de Oulanka, passamos por mais aldeias e por campos frígidos de beira de estrada em que pastam manadas de renas.
A existência finlandesa destes cervídeos pouco tem que ver com a impingida pelo imaginário natalício. Todos os espécimes têm donos e identificam-nos coleiras e chapas coloridas.
De tão habituadas que estão aos proprietários, as renas ignoram já quase por completo a presença humana. Há décadas que não existem renas selvagens na Finlândia.
Chegados ao conforto da base, jantamos guisado de rena – noutros dias carne de alce – uma especialidade da Lapónia pouco apreciada no sul da Finlândia. “Alguns miúdos do sul vêm cá e fazem fitas porque não querem comer o Rodolfo” desabafa Satto.
Outros, infernizam os pais porque notam a diferença de sabor em relação à carne de vaca.”
PN Oulanka e o Paanajarvi, em Tempos Também Finlandês
Novo dia, nova incursão nos domínios remotos da região. A temperatura cai a pique. As estradas ficam de novo cobertas de um gelo perigoso.
Sari Alatossava conduz-nos com à vontade mas, apesar dos pneus especiais de Inverno, repletos de espigões perfuradores, é surpreendida por duas vezes quando o Land Cruiser derrapa e quase inverte o sentido na estrada.
O susto é relativo. Depressa recuperamos o diálogo em que a anfitriã nos explicava a sua improvável relação com Portugal.
Ora, segundo nos conta, em 2001, Sari cumpriu um intercâmbio Erasmus na Faculdade de Letras do Porto porque o queria fazer num país pequeno e gostava muito dos livros de Saramago.
Acabou a namorar com português com família madeirense disseminada pela África do Sul, por Malta e pela Finlândia.
Já a pé, com a neve a cair mais abundante que nunca, Sari guia-nos ao longo de novo trilho de floresta. O caminho é suave e curto. Ainda assim, desvenda-nos o cenário agreste e selvagem do Canyon de Oulanka que o rio Oulankajoki continua a aprofundar.
Uma vez mais, avistamos a Rússia à distância. Sari queixa-se de que, agora, as expedições finlandesas de rafting têm que se acautelar com a posição da fronteira para não trespassarem o território do grande urso.
E de que os Russos são como a maior parte dos povos dos países grandes: “têm sempre que conseguir o que querem e, para isso, passam por cima de tudo e de todos.”
De volta ao ponto de partida, avançamos para norte e cruzamos o Círculo Polar Árctico. Espera-nos Salla “In The Middle of Nowhere”.