A sedução já vinha de há mais de um ano. No início de 2019, à descoberta de Lanzarote, chegámos ao extremo norte da ilha atrasados para visitarmos o seu famoso Mirador del Rio.
Conformados com o percalço, descemos na estrada que percorre o cimo das falésias contíguas.
Quando atingimos o limiar do Risco de Famara, a mais de 500 metros de altura e perscrutamos o Atlântico abaixo e por diante, a visão de La Graciosa e restantes ilhas do arquipélago Chinicho deixa-nos incrédulos.
Mesmo diminutas face às massivas Lanzarote e Fuerteventura, de tal maneira que, mesmo próxima, La Graciosa nos cabia na amplitude de um só olhar, a extensão insular que ali admirávamos gerou-nos de imediato uma inquietude.
Ao longo dos dezasseis meses que se seguiram, entregues a planeamentos das próximas viagens, essa visão voltou-nos à mente vezes sem conta.
Com a hipótese de regressarmos para um novo itinerário nas Canárias, fizemos questão de que passasse pelo norte de Lanzarote e de que incluísse La Graciosa. Assim aconteceu.
Já a a bordo do ferry Liñeas Romero, quanto mais Orzola se desvanecia, mais nos aproximávamos da península aguçada que encerra o cimo de Lanzarote, da Punta Fariones e dos Fariones, os grandes rochedos também eles pontiagudos que lhe inspiraram o baptismo.
Na sua iminência, o oceano a norte batalha com as águas do Estrecho del Rio, o canal, apesar do nome, marinho que separa Lanzarote de La Graciosa.
Habituado a ver-se nessa contenda, o comandante manobra a navegação com o jeito ganho em incontáveis de passagens por ali, suaves, num jeito oscilado de ser.
Contornamos a punta. Já com Graciosa à vista, internamo-nos no canal junto à base estriada de Lanzarote que, feita de falésias tão elevadas e brutas, tornava o barco uma casca de noz.
Com o Mirador de Rio bem nas alturas, o comandante faz o barco cruzar o Rio. Aponta-o ao porto de Caleta del Sebo, a capital de La Graciosa.
O sábado desenrola-se. Damos com a cidade num óbvio modo de descompressão. O molhe que contornámos para entrar, serve de pouso a uma comunidade irrequieta de jovens pescadores que celebram a nossa entrada com uma mímica bem-disposta.
Desembarque Crepuscular na Pequena Capital de Caleta del Sebo
Já atracados ao lado de uma floresta de mastros e bandeirolas, examinamos a baía em frente. Um corrupio de banhistas entrega-se aos derradeiros banhos do dia na praia de areia da povoação. Em simultâneo, uma comunidade de convivas tagarelas bebe cañas e saboreia petiscos do mar nas esplanadas arejadas em redor.
Para trás do casario do oeste da cidade, o sol ora espreitava, ora se sumia entre uma caravana de nuvens baixas propulsionadas pelos Alísios. Foi já sob o escuro Atlântico que cruzámos a baía a carregar as malas, umas ao ombro, outras puxadas a esforço sobre o areal até ao apartamento que por ali tínhamos reservado.
Voltamos a sair uma hora depois, com o rumo do restaurante “El Marinero”, uma das suas Mecas gastronómicas. Lá nos empanturramos com Entrantes de sardinhas, camarões, com polvo e o gofio e papas arrugadas quase incontornáveis um pouco por todas as Canárias.
Findo o repasto, mesmo já sem malas, voltamos a arrastar-nos para o apartamento. Tínhamos toda uma nova ilha por descobrir. Para variar, íamos explorá-la de bicicleta.
Uma Semi-Volta em Bicicleta a La Graciosa
Bem menos cedo que o que desejávamos no dia seguinte, batemos a porta da La Molina Bike.
Doña Demelza, saúda-nos a pensar que ia encontrar visitantes algo mais novos. Mesmo assim, algures entre o nosso à vontade e a vontade de pedalarmos, deixa-se impressionar. “Vocês têm ar de aventureiros, já estou a ver que, para fotografarem, se vão querer meter pela areia, pelos caminhos pedregosos e isso tudo. Olhem… vou-vos dar bicis das todo-o-terreno, aquelas com os pneus mais grossos.”
Mesmo conscientes que, num dos poucos lugares com capital em que não existe asfalto, as bicicletas artilhadas nos cansariam a dobrar, sentimo-nos privilegiados. Agradecemos a benesse, despedimo-nos da sorridente Demelza, sumimos entre o casario branco de Caleta del Sebo.
Deixada para trás a povoação, com excepção para uma sequência de pequenos hortos dos moradores, a ilha depressa se nos revelou como veio ao mundo.
Como seria de esperar no arquipélago das Canárias, La Graciosa é vulcânica, na prática geológica, um maciço vulcânico insular salpicado por cinco vulcões. Mesmo se com alturas contidas, são estes vulcões que, aqui e ali, apimentam o circuito de volta a ilha.
Umas boas pedaladas depois, vimo-nos numa encruzilhada de estradas de areia entre dois deles, La Aguja Grande (266m) o mais elevado da ilha, na companhia da cratera Aguja Chica e da vizinha Montanha del Mojon (185m).
Curiosos quanto ao que nos reservaria a costa de lá de Graciosa, seguimos na sua direcção, ao mesmo tempo, do norte da ilha. Rejeitamos a Playa Baja del Ganado. Em vez, apontamos à de Las Conchas e ao sopé do vulcão ocre da Montaña Bermeja.
A Conquista e Omni-Revelação da Montaña Bermeja
Na sua confluência, achamos um parque de estacionamento para bicicletas mais preenchido do que esperávamos. Estimámos que o areal amarelo da praia ao lado em duo com um delicioso mar turquesa ali atraísse boa parte dos ciclistas entretidos com a volta à Graciosa.
Vontade de nos entregarmos de imediato àquele Atlântico soprado pelos Alíseos não faltava mas, com o trilho e o desafio da conquista da Montaña Bermeja (157m) a terem início a uns poucos metros, não tínhamos como resistir.
Pé ante pé, pelo trilho já marcado na sua crista ascendemos ao cume colorado e pejado de líquenes verdes-claro ou de um amarelo muito torrado.
Além dos líquenes agarrados às rochas, encontrámos o cimo decorado com uma inesperada obra de arte, quatro estatuetas, esculpidas no que nos parecia arenito, com formas, se humanas retorcidas, quase amorfas.
Apuramos mais tarde que, chegou a acompanhar estas esculturas uma cruz com a inscrição de 1499, o ano em que se considera ter terminado a conquista do arquipélago das Canárias, iniciada em 1402.
Jean de Béthencourt e o Encanto com a Pequena Graciosa
Reza a história, que terá sido o descobridor Normando Jean de Béthencourt a baptizar La Graciosa.
Após várias semanas no mar, contadas desde a partida do porto de La Rochelle, Béthencourt deliciou-se com a visão da ilha quase rasa aos pés da gigantesca vizinha Lanzarote. Chamou-a, assim, de La Gracieuse, título que foi adaptado para castelhano.
Béthencourt vinha determinado a se abastecer de urzela, um líquen de que se extrai uma cor comparável ao violeta. Acabou por conquistar Lanzarote e Fuerteventura e por colonizar boa parte do arquipélago das Canárias.
Não vemos sinal nem da cruz nem, entre os abundantes líquenes que temos em torno, da valiosa urzela. De qualquer maneira, os cenários em redor depressa nos reclamaram a atenção e suscitaram um inevitável êxtase visual.
Para norte e leste, La Graciosa estendia-se numa vastidão arenosa preenchida por dunas baixas salpicadas de vegetação xerófita.
Para sul e sudeste, o pequeno deserto local cedia à ditadura do solo vulcânico e de um cinzento quase negro.
Deste solo pardo, à distância, víamos despontar as outras elevações da ilha, quanto mais para sul, mais difusas na calima (névoa poeirenta) que ali chegava do Sara.
E em Redor de La Graciosa, a Extensão do sub-Arquipélago Chinijo
Quando nos virávamos para norte e noroeste, com o mar pelo meio, contemplávamos diversas ilhas inóspitas e inabitadas: a Isla de Montaña Clara, ali em frente. A maior distância, a Isla de Alegranza.
Vislumbrávamos ainda dois outros ilhéus, o Roque del Oeste – também conhecido por Roque del Infierno – nas imediações da ilha de Montaña Clara, o Roque del Este.
Este conjunto, acrescido da nossa anfitriã La Graciosa (a maior ilha com 27km2), forma o sub-arquipélago canário de Chinicho que nos manteve uma boa meia-hora num absoluto deleite sensorial.
Interrompemo-lo pela noção do tempo que nos sobrava para circundar a ilha e pela urgência de recuperarmos o mergulho adiado na Praia de Las Conchas que, logo ali abaixo, se insinuava num dourado-turquesa.
Dito e feito. Regressamos à base da montaña Bermeja, cruzamos o areal. Com cuidado redobrado, mergulhamos por baixo das vagas que os alísios continuavam a espicaçar.
Com a volta à ilha por completar, regressamos às bicicletas ainda por secarmos.
Pedalamos até ao seu litoral norte, espreitamos a beira-mar ventosa das Playas Lambra e Del Ambar.
Em vez de circundarmos a totalidade do litoral norte, atalhamos caminho para Pedro Barba, a segunda povoação da ilha, mesmo se composta sobretudo por segundas casas de habitantes da Graciosa e outras de veraneantes forasteiros.
Não demorássemos a avistar a linha branca do seu casario, contra os penhascos imensos de Lanzarote, em fundo.
Na sequência, subimos, a esforço, entre os Morros Negros e as vertentes leste das Aguja Grande e da Chica. Tentamos estender o empenho de maneira a conquistarmos a ilha a sul de Caleta del Sebo.
Regresso a Tempo de um Novo Ocaso em Caleta del Sebo
Tal como Doña Demelza nos avisara, a estrada para a Punta de la Herradura e a sua Montaña Amarilla revelaram-se demasiado arenosas até para as as bicicletas supostamente todo-o-terreno que conduzíamos.
Exauridos, a vermos o sol precipitar-se sobre o Atlântico à nossa frente, sem termos tempo de atingirmos o destino planeado da Playa de la Cocina, invertemos caminho para a Caleta del Sebo.
De volta ao pueblo, devolvemos as bicis especiais a Demelza.
No templo que nos restava até ao escuro se reinstalar, caminhámos por entre as ruelas e pela beira-mar quase rasa que confronta as falésias descomunais de Lanzarote.
La Graciosa ainda hoje nos encanta.