A meio da manhã, tal como combinado, Daliso e Wezi ancoram nas águas rasas em frente ao aeroporto de Likoma, na iminência de cabanas e paneiros da comunidade piscatória local.
Wezi, o anfitrião do Nkwichi Lodge, vem ao nosso encontro.
Com ajuda de Daliso, o timoneiro ao seu serviço, passamos as malas para o barco. Os carimbos de saída do Malawi já os tínhamos resolvidos. Era suposto iniciarmos, de imediato, a navegação.
Ditava o parco desenvolvimento do lado moçambicano que Wezi tivesse que se abastecer de uns poucos mantimentos, ainda em Likoma.
Daliso faz-nos avançar ao largo do cerne da ilha e da sua rua de terra batida, principal, pejada de pequenos comércios.
Uma recente e dramática subida das águas fazia com que o lago Malawi a tivesse invadido e inundado vários edifícios, como fez mais para sul, em Nkotakhota, em redor de Liwonde e do PN Liwonde. Também dificultava o desembarque.
Por fim, Wezi consegue-o, num ponto improvisado por Daliso. Contados cinco minutos, reembarca com sacos de café e outros produtos.
Daliso, aponta-nos a Cobué, uma povoação da margem leste do lago.
Cruzamo-lo durante uma hora, embalados por vagas estendidas, próprias de um oceano amainado.
Escala Burocrática Obrigatória, em Cobué
Vemos a torre sobranceira da igreja de Cobué definir-se, acima de árvores e de telhados mais próximos da costa.
Pouco depois, desembarcamos na povoação, sob o olhar de jovens moradores que mergulham de um pontão semi-afundado.
Wezi guia-nos até à emigração. Encontra-a fechada.
Esperamo-lo à sombra da arcada do edifício, enquanto procura os funcionários.
Passam outros cinco minutos. Aproveitamo-los para espreitar a igreja da povoação.
Regressa com dois responsáveis em uniformes militares.
Hermínia saúda-nos e processa os carimbos, tendo em conta a raridade de visitantes, intrigada quanto a de onde vínhamos e com o que por ali fazíamos.
“Ah, vão até ao Nkwichi? Que sorte a vossa. É bonito por lá. Bom, se voltam a Likoma, vemo-nos daqui a uns dias. Divirtam-se.”
Agradecemos os desejos. Despedimo-nos.
Cumprimos outra hora de navegação costa abaixo.
Apenas mexida quando, obrigados a contornarmos uma secção salpicada de rochedos anfíbios, ficamos expostos a uma ondulação mais vigorosa.
Ancoragem e Entrada no Recôndito Nkwichi Lodge
Pelas duas e meia da tarde, por fim, Daliso flecte para a enseada protegida que o Nkwichi Lodge usava como ancoradouro.
No interior, a vegetação tropical revelava-se cerrada e sombria. Mal conseguíamos perceber as cabanas e edifícios que compunham o lodge.
Até que Wezi nos convoca para um pequeno périplo.
Por um trilho de selva, leva-nos ao chalé que nos tinham atribuído, o mais espaçoso “Niassa”.
De imediato, encantamo-nos com a criatividade e harmonia orgânica da sua estrutura.
Quase toda erguida em materiais naturais, adaptada aos caprichos do arvoredo em redor, aos dos rochedos e lajes.
Incluindo um duche e uma banheira exteriores envoltos de uma paliçada que deles pareciam emanar e um espaço de refeições na base de um embondeiro grandioso.
Um outro trilho conduz-nos do chalé à praia principal, situada numa enseada ampla.
Mais para dentro da época estival, contava com um areal alvo imenso que condizia com a água translúcida do lago.
Por aquela altura, na ressaca da época das chuvas, com o lago transbordado, boa parte da areia tinha-se sumido.
Descobria uma camada de seixos polidos que dificultava a entrada no lago, mas, sob uma perspectiva fotográfica, tinha a sua própria beleza.
Almoçamos na praia, sobrevoados em permanência por um casal de águias-pesqueiras guinchantes que defendiam o território e pescavam a refeição da família asada.
Na sequência, cirandamos à descoberta da área do lodge.
Retém-nos a comunidade local de macacos, entregues a um banquete de marulas, maduras e com um gosto doce que lhes era irresistível.
Às quatro e meia da tarde, reencontramos Wezi.
A Caminhada Inaugural, às Alturas na margem Lago Niassa
Leva-nos numa caminhada às alturas de Nkwichi, a uma crista de relevo destacada da selva.
Com uma vista desafogada sobre a encosta e a margem abaixo, a vastidão do lago e, na lonjura, vislumbres da ilha de Likoma de que tínhamos vindo e da sua vizinha Chizumulu.
Acompanhamos o sol a assentar sobre o lado de lá do lago e o Malawi.
Partilhamos vinho e aperitivos. E, em inglês, um pouco mais sobre nós. Wezi confirma-se malawiano.
Os seus pais, que eram de Nkhata Bay, tinham-se separado quando tinha cinco anos.
A mãe mudou-se para Lichinga (Moçambique). O pai, para Inglaterra.
Ele, Wezi, acabou por se juntar ao pai.
Por lá estudou e ganhou a vida, por exemplo, em Bolton, onde trabalhou em pubs.
Só que Wezi sempre sentiu falta da Natureza pura e da vivência tranquila do Malawi e de Moçambique.
Aproveitou a hipótese de trabalhar para o Nkwichi Lodge que, para mais, lhe permitia estar a umas poucas horas de Lichinga.
A Origem Empreendedora do Nkwichi Lodge
O lodge, esse, já existia desde 1994.
Neste ano, os irmãos Patrick e Paul Simkin, que há muito viviam no sul de África, detectaram aquele lugar inexplorado pelo turismo, durante uma expedição de canoagem, numa partilha do lago com os pescadores da região.
No seu dialecto ChiNyanja, os nativos tratavam-no por mchenga nkwichi, literalmente “areias rangentes”
Os areais brancos e desafogados convenceram os irmãos Simkin do potencial incrível da zona a sul de Cobué.
De acordo, fundaram a Manda Wilderness, um projecto englobante que tinha como fim usar os proveitos de um lodge e de outros apoios na melhoria das vidas das pessoas da região.
Esse propósito foi aniquilado pela entrada em cena da pandemia, em 2020.
Um longo revés que levou, inclusive, a que os novos proprietários se decidissem por encerrar o lodge.
Inconformado, Wezi propôs-se ficar à frente de um novo modelo self-catering e simplificado de exploração, dependente de menos funcionários.
Muito graças à sua acção, o Nkwichi lodge continuava a pagar a uma equipa de trabalhadores fixos e colaboradores e a acolher visitantes, como nós, privilegiados por a partir dele desbravarem aqueles confins noroeste de Moçambique.
Se a comunidade local já passou por dias melhores sob a égide da proactiva Manda Wilderness, devemos sublinhar que o histórico da região é, sobretudo, de agrura, deslocamento e desintegração.
O Passado Bélico Conturbado da Região
Recuemos até ao cenário da Guerra de Independência de Moçambique.
Em 25 de Setembro de 1964, aquela mesma Cobué foi um dos palcos dos dois primeiros ataques da FRELIMO às forças portuguesas.
A guerra alastrou-se.
Intensificou-se nas margens do lago e no interior do Niassa, junto com Cabo Delgado, uma das províncias em que, devido viabilidade de retirada para a Tanzânia, a FRELIMO controlou as zonas de selva e rurais e em que os ataques de guerrilha se tornaram mais frequentes.
Ameaçados pelo conflito, muitos dos nativos viram-se obrigados a cruzar o lago, a refugiar-se no Malawi.
Encontramos vários deles ainda a viverem em Likoma, a esquecerem, aos poucos, a língua portuguesa.
Em 1975, Moçambique proclamou a independência.
Apenas dois anos depois, deflagrou a Guerra Civil Moçambicana. E mesmo se só chegou ao Niassa, em 1983, o seu alastrar na província voltou a travar o regresso dos refugiados da Guerra da Independência.
Como testemunhámos repetidas vezes, este longo e aturado imbróglio político-militar acabou por contribuir para o convívio e união de famílias malawianas com moçambicanas.
Amiúde, entre pessoas das mesmas etnias e que já antes partilhavam os mesmos dialectos africanos.
Uma Segunda Caminhada, de Visita à Aldeia Mala
Na manhã seguinte, re-energizados por um pequeno-almoço ao sabor das vagas, voltamos a seguir os passos do anfitrião.
Por um trilho que alternava entre selva, savana e praia chegamos à Mala, uma aldeia de pescadores instalada em redor da península, a partir da qual se disseminavam os rochedos que, na viagem de Cobué, nos tinham forçado a afastarmo-nos da costa.
Barco artesanal, ao largo da Aldeia Mala, MoçambiqueTambém Mala possuia os seus areais alvos, desafogados e bem mais intactos que os do lodge.
Como o víamos, mesmo se entregue a um modo de vida elementar, sustentado pela pesca, umas poucas plantações e criações de animais domésticos, Mala revelava-se, numa vertente natural e paisagística, uma espécie de Éden lacustre com que não contávamos.
Numa sua mercearia, dois miúdos sorridentes jogavam Ntxuva sobre um tabuleiro rústico.
Adiante, Wezi apresenta-nos ao chefe da aldeia, que interrompe uma reparação de redes de pesca para nos dar as boas-vindas.
Logo lado, dois jovens irmãos tagarelam em redor de um almoço, dependente do amanho de peixes a que uma jovem mulher se dedica. Acolhem-nos com o mesmo sorriso aberto e feliz do chefe.
Entre eles, falam o dialecto local. Connosco, os dois rapazes falavam português.
A moça, essa, nativa do Malawi, noiva do irmão moçambicano mais velho, só o conseguia em inglês.
Esta confusão de Babel, a que se junta a das fotos que pedimos para lhes tirarmos, gera trapalhadas e risadas que transformamos num surto de boa-disposição.
Até que Wezi nos sensibiliza para o regresso.
Inauguramo-lo por um trilho distinto que, a espaços, trocamos pela beira-lago ensopada. O cicerone informa-nos de uma escala.
Quando nos detemos, Patrick, Daliso e outros funcionários do lodge ultimam um almoço memorável, sob um embondeiro gigantesco, com interior obviamente oco que abrigava centenas de morcegos.
Um Lago Niassa Agitado e Exuberante
O fim da tarde traz nuvens e uma ventania que conferem ao Nkwichi Lodge um dramatismo destoante. Apesar das vagas vigorosas, fazemo-nos ao lago.
De máscaras e tubos de snorkeling, apostados em apreciarmos os peixes coloridos que se refugiavam da comoção lacustre entre as rochas.
No seguimento da longa caminhada do dia, essa missão deixa-nos derreados. à falta de mais garrido nos peixes, surpreende-nos um ocaso peculiar, com uma faixa estreita de céu, oprimida entre o lago e a mancha de nuvens.
O mergulho solar propagava tons quentes reflectidos na enseada que nos servira de porto.
Nessa noite, para variar, temos fogueira na praia sem o habitual tecto de estrelas.
Fogueira na Praia do Nkwichi Lodge, MoçambbiqueA aurora livra-nos das nuvens e do vento. Concede-nos um retorno solarengo e prazeroso a Likoma.
Uma vez mais, validado, em Cobué, pelos carimbos obrigatórios da moçambicana Hermínia.
Como Ir
Voe de Lisboa para Maputo, com a TAP – flytap.com por a partir de 800€ ida-e-volta. Voe com a LAM para Lichinga. O Nkiwchi Lodge encarregar-se-á de organizar a viagem de Lichinga até ao lodge.
Onde Ficar:
Nkwichi Lodge: nkwichi.com
Email: [email protected]
Telf. : +254 72 254 0733