Após um dia inteiro a calcorrear e a explorar as praças, ruas e ruelas em grelha do bairro pioneiro de Las Palmas, eis que nos decidimos a ascender às alturas panorâmicas da cidade.
A orografia de Las Palmas nunca foi branda com os moradores dos bem mais recentes bairros San José e San Juan. De tal maneira que, em 2012, as autoridades da cidade se comoveram e inauguraram um elevador que permitia atalhar a subida íngreme.
O equipamento provou-se de pouca dura. Quando chegamos à sua base, o abandono em que o encontramos dita, sem ressalvas, o recurso à escadaria alternativa.
Ascensão às Alturas de San Juan, Las Palmas
Subimos o mais acima possível. Investigamos o corredor do último piso na esperança de conseguirmos uma perspectiva desafogada sobre o casario de Vegueta e de Las Palmas em redor. Dali, conseguíamos enquadrá-los, se bem que apenas uma secção, longe de nos satisfazer os anseios fotográficos.
Alguns moradores de lares próximos ao elevador percebem a nossa inquietude. Um deles, decide intervir. “Mas vocês estão à procura de quê, afinal? De vista lá para baixo? Ah, mas isso é bem melhor lá do topo do morro”.
Fazemos fé na sua mais que credível informação. Por fim, sossegados, passamos os olhos na ruela e nas casas que preenchiam a encosta.
A Família Pródiga do Sr. Miguel de San Juan
Um dos prédios, alaranjado e de arquitectura improvisada e impossível de catalogar, destacava-se dos demais. O mesmo interlocutor repara na atenção que lhe dedicamos. “Fui eu que desenhei e construí quase tudo. O que é que acham?”
Verdade seja dita que nos faltaram as palavras para lhe responder de forma condigna. O Sr. Miguel, à data com oitenta e sete anos, sente o nosso espanto. Opta por desenvolver. “E sabem uma coisa? Foi o melhor que fiz. Eu e a minha mulher temos dez filhos, quatro raparigas e seis rapazes.
Às tantas, começaram eles a ter filhos. Quando demos por ela, entre filhos, netos, bisnetos e tetranetos, éramos quarenta e um a viver ali. Aquele nosso prédio sempre foi um verdadeiro lar doce lar.”
De tantos habitantes da família do Sr. Miguel, logo apareceu uma sua neta, ao volante de um carro já velhote. Ia levar o avô à estação de serviço de que era também proprietário. Ao inteirar-se da nossa demanda, disse-nos para entrarmos no carro, que nos levaria ao cimo do morro. Assim fazemos.
Minutos depois, a neta do Sr. Miguel deixa-nos numa beira da estrada mal-amanhada mas, de facto, panorâmica.
O Rancho Folclórico no Cimo de San Juan
Por diante, para baixo, estendia-se boa parte do casario de Las Palmas, do sopé da colina que nos sustinha até à vastidão azul do Atlântico.
Admirávamos o cenário quando nos fez desviar o olhar um casal em trajes que nos pareciam de folclore, tradicionais. Nesse momento, detém-se uma carrinha. Saem mais sete mulheres, todas vestidas no mesmo estilo, duas delas a segurarem espécies de cavaquinhos.
A aparição daquele séquito deixa-nos intrigados. Questionamo-los a condizer. “Somos do rancho folclórico de San Juan, vamos a caminho de um encontro noutra povoação. Podemos fazer umas fotos, claro. Mas tem que ser rápido. Já estamos um bocado atrasados!”
Despachamos uma produção-relâmpago o mais depressa que conseguimos, com o colorido do grupo composto contra o azul celeste e o do mar. Logo, eles enfiam-se na carrinha que sai disparada.
Nós, voltamos à contemplação da secção de Las Palmas que tínhamos a leste, um aglomerado de casas e prédios em que predominavam o branco e tons quentes de pastel.
E de que, pelo seu tom cinzento e pela altura das torres, se destacava o cimo de uma grande catedral, dos poucos edifícios que quase passava a linha do horizonte para o nível do céu.
Às Voltas pela Velha Vegueta
Muitos disparos fotográficos depois, por ruas e ruelas do bairro de San Juan distintas das que tínhamos percorrido na subida, regressamos ao sopé alisado do morro e à secular Vegueta.
Quanto mais descemos rumo ao mar, mais imponente, elegante e impressionante se revela o bairro, com óbvio apogeu na praça que antecede o templo que antes víamos destacado, a Plaza de Santa Ana, nesse momento ocupada por um evento de competições infantis.
Encerrava-a, a leste, a Catedral Metropolitana de Santa Ana de Canárias, erguida entre 1500 e 1570, como expressão católica suprema da ilha de Gran Canária.
Mesmo se o exterior reformulado no século XIX é de estilo neoclássico, a sua enorme nave preserva-se gótica, sustida por colunas erguidas a emularem as palmeiras prolíficas naquela zona antes da chegada dos Conquistadores de Castela.
A Derradeira Conquista da ilha de Gran Canária
Em 24 de Junho de 1478, as tropas castelhanas recém-desembarcadas, incumbidas de submeter de uma vez por todas a resistência dos indígenas Canários, ergueram um acampamento nas imediações de um barranco que se viria a chamar del Guiniguada.
Aí mesmo, de maneira a guiarem as embarcações que os viriam aprovisionar, preservaram três enormes palmeiras. Dessa referência, ficou o nome embrião da capital da ilha, Real de las Tres Palmas de Gran Canária, hoje, a cidade mais populosa do arquipélago, com 375.000 habitantes.
Afectada pela forte resistência dos nativos e, como se não bastasse, por discórdias entre os castelhanos, a conquista arrastou-se.
Confirmou-se apenas em Abril de 1483, mês em que Guayarmina Semidá, a rainha indígena da ilha, se rendeu aos invasores e suscitou o suicídio de um chefe tribal influente e do seu xamã.
A Arquitectura Colonial Ímpar de Vegueta
Daí em diante, com o cunho da Coroa e a perspectiva quase infalível de grandes lucros, intensificou-se a construção da primeira povoação de Gran Canária.
Um hospital, a Ermita mudéjar de San António Abad, presente no lugar em que foi erguida a capela que serviu espiritualmente o acampamento de Real de Las Tres Palmas e predecessora da actual catedral.
Acompanharam-nas o palácio Episcopal, o Ayuntamiento, a Real Audiência, o Tribunal do Santo Ofício e a Diocese das Ilhas Canárias, à época, a única diocese.
Estes edifícios eclesiásticos e governativos, alternaram com outros, residenciais, dotados de pátios desafogados e verdejantes, de abundantes varandas de madeira, de tal maneira que uma das ruas emblemáticas do bairro que, de início, acolheu as famílias mais ricas e influentes da ilha se chama ainda Calle de los Balcones.
Tanto uns edifícios, como os outros, exibem uma riqueza arquitectónica única, uma mescla improvável de elementos góticos, renascentistas, neoclássicos e, como é frequente no sul de Espanha e nas Canárias, mudéjares.
Com o tempo, essa amálgama de edifícios e estilos formou a unidade urbanística que, passo após passo, nos continuava a deslumbrar.
Calle del Castillo acima e abaixo, passamos várias vezes pela Plaza del Espíritu Santo.
Como passamos pela sua ermida dedicada ao Cristo del Buen Fin e a fonte desenhada pelo artista gran canário Manuel Ponce de León y Falcón, nascente de águas que refrescam o pequeno jardim repleto de plantas tropicais, mas não o Elixir da Juventude que o descobridor tanto fez por encontrar em terras, hoje, da Florida.
A Casa Colón e as Passagens de Colombo por Las Palmas
Na direcção da Av. de Canárias e do Atlântico, entramos em ruas delimitadas pelas fachadas amareladas da Ermita de San António Abad e pela vizinha Casa neogótica de Colón, cada qual com o seu brasão intrincado.
Por ali, um músico de calle toca melodias de pífaro que reforçam o encanto colonial de Las Palmas, o também porto em que Cristóvão Colombo ancorou em três das suas quatro expedições, sendo que, na primeira, terá, inclusive, orado pouco antes de zarpar rumo ao ocidente desconhecido.
Na Casa Colón, inteiramo-nos da importância que as Canárias – a Gran Canária em particular – e os seus voluntariosos emigrantes tiveram na colonização das Américas de que Colombo fez Novo Mundo.
Mesmo se numa escala local, não tardamos a chegar a uma latitude de Las Palmas distinta de tudo o que até então havíamos constatado.
Contornamos o mercado de Vegueta e atravessamos a carretera del Centro, para o outro lado da autoestrada GC-5 que estabelece uma fronteira rodoviária do bairro.
O Casario Colorido e Surreal de San Juan
Umas centenas de metros acima, ao longo da Calle San Diego de Alcalá e de um núcleo urbano distinto, perscrutamos o casario oposto, uma perspectiva lateralizada do bairro elevado de San Juan em que nos tínhamos cruzado com o Sr. Miguel e com o grupo folclórico.
Pois, dali, San Juan preenchia todo o morro sobranceiro a Vegueta numa profusão multicolorida de casas e prédios de geometria elementar e rígida, que nos parecia um cenário de desenhos animados ou resultado de uma brincadeira de legos.
A visão suscitou-nos a estranheza de como, o fluir das Eras, tinha gerado “cidades” tão contrastantes dentro da mesma capital.
Abaixo, em jeito de resistentes vegetais do dealbar de Las Palmas, uma linha quebrada de palmeiras ondulava ao sabor do vento.
Deixamos o ocaso assentar a oeste do cerne ainda mais alto da Gran Canária.
Quando o arrebol se começa a instalar, já estamos de volta às plazas de Vegueta, entregues a cañas e a inevitáveis papas canárias arrugadas.