Por fim, a lancha zarpa da marina de Maputo.
Aos poucos, o horizonte de gráfico de barras formado pelos prédios da grande urbe moçambicana passa a miragem tremelicante.
Logo, desvanece-se entre os azuis opressores da paisagem, o do oceano Índico e o celeste acima.
A baía torna-se imensa. Nós que a cruzarmos a motor, somos uma espécie de excepção, entre a frota de dhows de velas esticadas na direcção de um mar de nuvens movidas ao mesmo vento.
A hora da partida tinha sido tudo menos inocente. “Quanto mais para perto da península de Santa Maria mais areado aquilo está” confessa-nos, algo apreensivo, um tripulante.
“Se não passamos por lá com a maré bem cheia, podemos ficar encalhados.”
Escutamos o desabafo. Fazemos fé na experiência e perícia do homem do leme.
À medida que a profundidade diminui, as águas translúcidas tornam-se de um incrível tom de esmeralda. Acompanham-nos golfinhos.
Avistamos tartarugas e, mais próximo que nunca, outros dhows, cada qual vestido do seu triângulo colorido.
A Evasão dos Sul-Africanos na Deslumbrante Baía de Maputo
Temos mais com que nos preocuparmos que o assoreamento da baía. Enquanto serpenteamos a sul de Inhaca, percebemos que não somos os únicos.
A beira-mar está à pinha de convivas anfíbios, encorpados, com peles brancas e cabelos claros.
Partilham acampamentos, para o que estamos habituados, hipersofisticados. Equipados de grelhadores eléctricos, bombas de encher insufláveis, mesas e cadeiras dobráveis, gazebos balneares usados como protectores portáteis e providenciais do sol tropical inclemente.
Naquele reduto, as lanchas suplantam os dhows.
Tal como noutras partes meridionais de Moçambique, os sul-africanos destacam-se entre os moçambicanos. Pela sua mera presença, mas, sobretudo pelo empreendedorismo com que a revestem.
Uma das razões porque os sul-africanos por ali se concentrarem é o facto de lá abundarem lodges e resorts erguidos e explorados por seus conterrâneos.
Com a mestria e determinação que os empresários do turismo da África do Sul partilham na nação arco-íris, na Namíbia, Botswana e noutros países vizinhos.
Sem surpresa, estávamos a caminho de um deles.
Quando passamos a Ponta Torres, inauguramos a travessia do Canal de Santa Maria, conhecido pelos velejadores por “Devils Gate” devido às suas vagas, correntes, rochas e areias traiçoeiras.
A Península de Machangulo das Dunas e o Machangulo Lodge
Ficamos com o extremo norte dos mais de dez mil hectares da Península de Machangulo por diante.
E, a sul, com a vasta Reserva Natural (antiga Reserva de Elefantes) de Maputo. Sabemos, então, que estamos prestes a chegar.
A praia de Machangulo prolonga-se.
Antes de atingir o seu limiar leste e fazer esquina com o verdadeiro litoral do Índico, vemos dela elevarem-se dunas enormes.
O timoneiro cruza para a sua base. Sem que o esperássemos, uma comitiva expectante acena-nos e dá-nos as boas-vindas.
Percorremos os passadiços e escadarias do Machangulo Lodge até aos edifícios que os proprietários instalaram naquelas alturas arenosas.
Um Lodge no Cimo das Dunas Gigantes de Machangulo
Admiramos a vista incrível da cabana em que nos alojam.
Com o sol já a descair para os lados de Maputo e do Atlântico, apressamo-nos a inaugurar a descoberta.
Subimos ao que pensamos ser o zénite das areias.
Dali, damos com novos cimos e vales, com um alto supremo que concede uma vista picada sobre a praia de Machangulo e sobre outras, mais distantes, da ilha de Inhaca e dos seus ajustes sinuosos ao oceano.
Concentramo-nos no imediato.
Lá em baixo, sobre a beira-mar reluzente em tom de canela, um casal debate-se com o emaranhado de uma longa rede piscatória.
Ele, a remover da água os fios de nylon e as boias que os compartimentavam.
Ela, a puxar e a esticar o conjunto ao longo do areal.
Essa tentativa tinha rendido uns poucos espécimes.
Com a rede desembaraçada, o homem reentra no canal e volta a esticar a rede, de maneira a armadilhar os peixes que seguiam o fluxo da maré.
Aventuramo-nos na direcção oposta, entre novos morros resvaladiços em que a humidade retida irrigava uma cobertura de arbustos verdejantes, mas ásperos.
O afastamento permite-nos perceber como o Machangulo Lodge tinha instaladas, no meio dessa quase-floresta cerrada, as suas cabanas e outros edifícios mais amplos, todos com telhado de colmo, bem como o pórtico o identificava.
Atingimos novo cimo. Sobre o limiar curvo da península de Machangulo, onde o canal de Santa Maria liga a Baía de Maputo ao Índico.
Daí, vemos o sol precipitar-se para lá do Ocidente.
Dunas Abismais e Praias de Sonho em todas as Direcções
Na direcção oposta, o ocaso arroxeava caravanas de nuvens velozes.
Um casal forasteiro passeava-se pela curva que a maré vazante tinha quase dobrado. Bandos de aves reuniam-se aquém do alcance das vagas. Salpicavam a areia encharcada dos seus vultos.
Não tarda, o anoitecer substituiu todo esse quadro crepuscular pela abóboda celeste sarapintada.
Sobre Machangulo e Inhaca, umas meras luzinhas humanas comprovavam como, malgrado a iminência de Maputo, o quão retiradas da civilização continuavam aquelas paragens.
Na manhã que se seguiu, bem cedo, passamos para norte do canal. Entregamo-nos a uma incursão à vizinha Inhaca a que, em breve, dedicaremos o seu próprio artigo.
Machangulo Abaixo, pelo Litoral Índico da Península
A meio da tarde, estávamos de volta a Machangulo. Determinados a, até ao fim do dia, explorar a costa índica a sul do canal de Santa Maria.
Nesse novo rumo, passamos por pescadores, dentro de água, até aos joelhos, a lançarem as suas linhas o mais possível para dentro do oceano.
Logo, por uma secção do areal repleta de pequenas lombas, miniaturas das verdadeiras dunas acima.
Caminhamos entre a rebentação e a sua base quando, percebemos que continuamos com companhia.
À distância, centenas de caranguejos avermelhados deixavam o mar para a secção do areal ainda batida pelo sol.
Quando deles nos tentamos aproximar, descem, à pressa. Somem-se para dentro das ondas.
Detemo-nos a apreciá-los e ao seu bailado lateralizado.
Sem a ameaça do nosso movimento, tornam-se tantos que alaranjam o areal encharcado pela frente.
Machangulo ainda nos revelaria outras excentricidades.
Adiante, dois pescadores moçambicanos encerravam o dia. Enchiam um saco de alças com os peixes que haviam pescado.
Cada qual, segurava na sua alça e partilhavam, assim, o peso do sucesso por igual.
O Veleiro Encalhado “Blue Wave”
Uma península em forma de duna, a Ponta Abril, interrompe a longitude do areal.
Para passarmos para o lado de lá, vemo-nos forçados a contorná-la a meia encosta.
Ora, quando nos preparamos para o fazer, surpreende-nos a visão de um barco naufragado, mastros para cima, quase na mesma inclinação da frente da duna.
Com a maré uma vez mais a descer, as vagas só chegavam ao fundo do casco enferrujado. O nome mal se lia.
A esforço, percebemos “Blue Wave”. Uma investigação posterior confirma-o.
O iate encalhou no recife ao largo da Ponta Abril, em Janeiro de 2017. Contam os moradores de Machangulo que o proprietário, capitão Alex, ainda se hospedou com uma equipa de salvamento, num tal de Bemugis Place, um lodge e restaurante da costa oposta, determinado a libertá-lo.
Em Outubro desse ano, muita maré cheia depois, tinha conseguido, erguer o iate e colocá-lo sobre uma plataforma. De pouco terá adiantado. O barco tinha perdido toda e qualquer condição de navegabilidade.
Pelo menos, em 2021, por lá continuava, a providenciar sombra aos pescadores adeptos da Ponta Abril.
Desse promontório, a península de Machangulo estende-se sem fim à vista, continuada pelo que resta do litoral sul de Moçambique, até à Ponta do Ouro que marca a fronteira com a África do Sul.
Sem pretensões de caminharmos noite adentro, invertemos marcha.
Encontramos o sol a desfazer-se em amarelo, cortado pela floresta arbustiva atrás da Ponta. Damos com os caranguejos ainda a usufruírem da derradeira luz.
Ao atingirmos o cimo de Machangulo, volta a assombrar-nos a Baía de Maputo em fogo.