Didas estava consciente do tráfico horrífico que íamos apanhar nos 170km que ligavam Sivasagar ao Babblers Inn, nas imediações de Tinsukia e do Maguri Bill.
Opta, assim, por nos conduzir por uma via alternativa, bem mais rural e pitoresca que cruza sucessivas terreolas de beira de estrada, elevadas face a arrozais sem fim que a debandada da monção, por volta de fins de Setembro, deixara a ressecar.
Pelo estado de Assam acima
Boa parte dessas aldeias e lugarejos são islâmicos. Só o estado indiano de Assam abriga mais de trinta milhões de pessoas. Destas, um terço são muçulmanos com uma profunda génese histórica, que resistiram aos fluxos da Partição da Índia de 1947 e à migração forçada para o Bangladesh ou o Paquistão.
Didas é hindu. Diz-nos que vários dos trinta e três distritos do estado têm, inclusive, maiorias islâmicas. E afiança que o aumento das suas populações pela alta natalidade mas, mais ainda, devido à fixação não documentada de bangladeshis vindos do outro lado da fronteira se tem intensificado.
Ao ponto de o governo de Delhi o considerar um dos seus problemas prioritários.
Tal como a apreciávamos pelas janelas do carro, a abundância de homens de barbas em jilabas e turbantes brancos e a sucessão de pequenas mesquitas locais confirmava o fenómeno.
Comparável à realidade de Cachemira mas em que, ao contrário do que acontece em Assam, a resistência independentista se mantém bem activa.
Três horas e meia após a partida, passamos por Tinsukia. Não demoramos a achar o Babblers Inn. Partha Sarathi Das, o proprietário, recebe-nos com lenços sedosos de boas-vindas e instala-nos. Almoçamos sem pressas. Por volta das três, saímos os três juntos.
Maguri Bill ou Maguri Beel: uma Deslumbrante Lagoa Assamesa
Amante da fotografia e da vida animal, Partha queria mostrar-nos as maravilhas do Maguri Bill, uma lagoa comprida e recortada, alimentada pelo rio Doom Dooma que a secura relativa do Inverno do Nordeste Indiano, mantinha então pouco profunda, salpicada de ilhas e ilhotas de vegetação.
Maguri Bill ficava represada aquém do caudal dos rios Dibru e Bramaputra e de uma das suas maiores línguas insulares, a de Dibru Saikhowa, por sinal, um parque nacional reputado da Índia e uma das suas mais amplas e ricas reservas da Biosfera.
Também próxima estava ainda a grande ilha de Majuli, que haveríamos de visitar.
Após se espraiar nessa vastidão lacustre, o Doom Dooma reassume o seu perfil fluvial serpenteante e desagua no Dibru. Não chegamos a testemunhar essa união.
Partha detem-se por momentos num tal de Kohuwa Eco Camp que servia de base às incursões à lagoa. Dali, caminhamos para junto de uma grande ponte de ferro de visual militar sobre o Dibru.
Partha apresenta-nos a um barqueiro local. Este, faz-nos embarcar. Mal nos vê recostados, zarpa contra a corrente.
Nesta altura do ano, a lagoa não está tão rasa quanto pode ficar. Mesmo assim, os barqueiros que dela vivem propulsionam as embarcações de madeira com varas longas.
Usam-nas como alavancas sempre que encalham em bancos de areia ou na selva densa de jacintos-de-água.
Os pescadores destas partes chamaram o cenário de Beel. Em tempos, proliferava no Beel que continuávamos a subir o Magur, uma espécie de peixe-gato muito procurado.
De acordo, o nome completo da lagoa passou a ser Maguri Beel (lagoa cheia de Magurs). Com o passar dos anos e a pesca, os peixes-gato terão diminuído. Várias outras espécies lá continuam a habitar, com predomínio das aves.
Um Remoto Paraíso Ornitólogo
À medida que o barco desliza, sucessivos bandos de patos, gansos, garças, cegonhas, corvos-marinhos e afins, todos com nomenclaturas curiosas reagem à nossa incursão. Alguns, nadam até ao limite da desconfiança. Só após desatam a esvoaçar.
Outros, mais intolerantes, levantam voo quando ainda estamos a umas dezenas de metros.
Limitamo-nos a acompanhar e a fotografar os movimentos dos bandos que se mantêm ao alcance das nossa lentes, com frequência de Bicos-Abertos-Brancos, um tipo de cegonha menor que a comum em Portugal, com um bico que, tal como o nome deixa antever, nunca se fecha por completo.
Tanto o Maguri Beel como o vizinho Dibru Saikhowa atraem uma horda de turistas ornitólogos obcecados por avistarem as espécies e os espécimes dos seus sonhos.
Acontece, todavia, que alguns deles chegam entusiasmados com a dimensão e a fama suprema do Parque Nacional Dibru Saikhowa mas depressa se desanimam com as dificuldades logísticas e a paciência lá impostas.
Nesses casos, acabam por se render à facilidade e ao imediatismo do Maguri Beel onde, numa simples manhã a bordo de um barco de madeira, detectam boa parte das espécies que pensavam exclusivos da Reserva Biológica.
Foi, aliás, essa a razão porque a BirdLife International – uma Rede Global de Organizações dedicadas à conservação de aves e dos seus habitats e diversidade – o declarou um IBA (Important Birding Site).
Os Pescadores e Recolectores Habitantes de Maguri Beel
Debaixo do tapete de jacintos-de-água e de nenúfares, o Maguri Beel também é lar de uma miríade de peixes e de criaturas anfíbias.
Avisados desta disponibilidade de alimento, os nativos mantêm instaladas redes de pesca em lugares estratégicos.
Improvisam-nas a partir de redes mosquiteiras ou de grandes sacos usados pelas plantações vizinhas do famoso chá de Assam. Usam ainda barreiras feitas de canas, bem mais ecológicas já que permitem a passagem dos peixes mais jovens.
E também os vemos recorrer a modelos de arremesso, com pesos nas pontas e que lhes concedem pescarias casuais. Alguns pescadores ficam instalados em tendas básicas que armam sobre secções de terra firme.
Essas tendas improvisadas permitem-lhes prolongar as suas pescarias e aumentarem os rendimentos. Uma pequena minoria detém casas de madeira, por norma (mas nem sempre), a salvo das inundações trazidas pelas monções.
Nas zonas baixas do Maguri Beel em que a água mal passa dos joelhos, observamos ainda homens e mulheres a recolherem e filtrarem grandes tufos encharcados de vegetação.
Partha vê-nos intrigados e esclarece-nos: “Andam a apanhar caracóis de água que vêm agarrados às raízes. As pessoas aqui adoram-nos.
Eles vendem-nos facilmente nos mercados.”
De Volta à Margem e ao Babblers Inn
Ao fim de uma hora e meia de deambulação embarcada, constatamos que o ambiente se rosava, à medida que o sol pousava sobre o horizonte dissimulado atrás de um manto denso de nuvens.
Em simultâneo, o reflexo do grande astro aterrava aos poucos sobre o Maguri Beel e tingia-o de tons de magenta condizentes com os dos muitos nenúfares que se mantinham abertos. Invertemos o rumo.
A favor da corrente, regressamos num ápice ao embarcadouro do Kohuwa Eco Camp. Partha instala-nos numa mesa exterior.
Serve-nos um pequeno lanche que inclui milkteas bem quentes. Àquela hora tardia, com tanta água em volta, uma cacimba invernal frígida tinha-se apoderado dos nossos corpos. Os chás açucarados disfarçam de imediato o desconforto e renovam-nos a disposição.
Regressamos ao Babblers Inn. Jantamos. Partha convida-nos para nos juntarmos a ele e ao seu padrinho de casamento, em volta duma fogueira. “And would you join us for some booze?” questionam-nos sem cerimónias, com a maior das vontades de que nos integrássemos.
Bebemos do que eles estavam a beber. Ficamos um bom tempo à conversa. Até que o calor do fogo e o álcool se aliam ao cansaço da viagem matinal e dos sucessivos despertares madrugadores.
Partha tinha marcado a alvorada seguinte para as cinco. Um sono precoce, embalado pelo afago da fogueira e do convívio, vinha a calhar.
Uma Nova Incursão Matinal
Despertamos àquela hora cruel mas essencial. Voltamos a sair os três rumo ao Maguri Beel. Um nevoeiro cerrado cobre a lagoa de mistério, sem sinais de ceder.
Partha sugere caminharmos em vez de embarcamos logo no ancoradouro da véspera. Atravessamos a ponte para o lado de lá do Doom Dooma, comunidade ribeirinha de Purani Motapung adentro.
Prosseguimos pela estrada de terra batida que dela se prolongava, ao largo de um mato verde ensopado coroado por estranhas plumas com jeito de penas de pavão que se destacavam contra a névoa.
Partha leva-nos à casa de corda e bambu de uma das famílias residentes. Tinham despertado fazia pouco. Preparavam-se para sair para os seus fazeres.
Partha saúda-os, apresenta-nos e questiona-os quanto a novidades da fauna da lagoa; queria saber, em particular, se sabiam se andavam por perto os búfalos que costumam deambular pelas suas margens.
Respondem-lhe que ainda não tinham dado por eles nessa manhã mas que ainda era cedo, e que era possível que estivessem mais para dentro do Maguri Beel.
Partha decide procurá-los. Instrui o barqueiro que nos acompanhava a resgatar uma embarcação enquanto nós prosseguimos estrada acima até uma zona mais rasa da lagoa em que – tudo assim indicava – conseguiríamos passar para o barco sem nos atolarmos.
Frente a Frente com uma Armada de Búfalos Asiáticos
Retomamos a navegação livre do fim de tarde anterior, entre redes de pescas suspensas, espécies de véus lacustres que o sol ainda difuso mas cada vez mais insinuante transformava em silhuetas e reflexos enigmáticos.
A disputa entre a névoa e o grande astro inundavam o pântano de um forte misticismo matinal. O guia e o barqueiro levam-nos ainda mais para dentro da lagoa. Mantemo-nos atentos às aves camufladas pela alvura flutuante. Equipado com binóculos, Partha vê mais à frente.
“Encosta ali!” diz, entusiasmado, ao barqueiro. Voltamos a desembarcar e cumprimos um ligeiro desvio ilusório. Quando apontamos uma teleobjectiva para a direcção que nos indicava, percebemos o motivo do seu sobressalto.
Uma grande manada de búfalos asiáticos partilhava uma zona alagada entre um prado verdejante e nova floresta de mato alto.
“Vamos aproximar-nos mas muito, muito devagar.” comunica-nos. “Por norma, eles só não toleram os movimentos bruscos na direcção deles ou demasiada proximidade. Se avançarmos a pouco e pouco, se ficarmos a uma boa distância, não nos metemos em sarilhos.”
Verdade seja dita que a formação de várias dezenas daqueles bovídeos hiperbólicos, donos de longos e afiados chifres deixava-nos intranquilos. Até porque o seu reflexo na água parada do lodaçal dava a ideia de serem o dobro.
Sabíamos que, onde quer que existem, os búfalos selvagens provocam um número considerável de vítimas entre os humanos. Estes, seriam da mesma espécie ou semelhante dos que naufragaram ao largo da ilha brasileira de Marajó e lá continuam a proliferar.
Também estávamos conscientes de que Partha explorava o Maguri Bill e com eles se confrontava com frequência.
De acordo, seguimo-lo.
Regresso à Base
Apontamos as objectivas. Rejubilamos tanto quanto possível quando os grandes machos líderes da manada se viram para nós e tentam intuir as nossas intenções.
Aproximamo-nos um pouco mais. Um dos machos-alfa ergue o focinho, a sondar o que a brisa lhe levava, e raspa uma das patas no solo.
A repetição do seu sinal por mais um ou dois espécimes chega para concluirmos que ali estávamos há demasiado tempo e que tínhamos imagens suficientes. Reembarcamos.
Invertemos o rumo orientados para o canal em que o Maguri Bill afunilava no canal que o levava até ao grande Dibru, do lado de cá do majestoso e mítico Bramaputra
Regressamos ao Babblers Inn. São dez e meia da manhã quando nos despedimos de Partha e da família.
As dez horas seguintes passamo-las a viajar de volta para Guwahati, a cidade também ela às margens do Bramaputra, em que tínhamos inaugurado aquele périplo já bem longo por Assam.
Got2Globe agradece o apoio na realização deste artigo às seguintes entidades: Embaixada da Índia em Lisboa; Ministry of Tourism, Government of India; Assam Development Corporation e Babblers Inn, Tinsukia.