Pouco passa das nove da manhã. No Mapuru a Paraita, o mercado de Papeete, o frenesim é absoluto.
Observamos uma multidão folclórica a instalar-se entre as bancas de fruta e a dificultarem a circulação dos clientes. No interior, a instalação sonora faz ecoar a sua péssima qualidade.
Ainda assim, um DJ improvisado passa os sucessos polinésios do momento como som de fundo para a locução.
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Bancas do Mercado Mapuru a Paraita repletas de plantas, vegetais e fruta tropical.
O Concurso de Misses Repleto de Mahus do Mercado Mapuru a Paraita
Decorre um concurso local de misses. As concorrentes surgem cercadas por representantes mais velhas das suas zonas da cidade e do restante Taiti.
Trajam vestidos típicos repletos de cor, folhos e outros complementos vistosos. Embelezam-nas ainda grinaldas, coroas e tiaras de plumerias, gardénias, hibiscos ou orquídeas.
Consoante o posicionamento de algumas destas flores nas orelhas, comunicam o seu estado civil e a sua disponibilidade amorosa. À primeira vista, parecem-nos todas mulheres. As aparências iludem. Encobrem a presença de alguns mahu. Os homens-mulher do Taiti.
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Grupo de mulheres e um mahu (vestido de creme) participam num concurso de misses realizado no mercado municipal de Papeete
A Descoberta Europeia do Fenómeno Social Polinésio Mahu
William Bligh, o mestre da famosa “Bounty” e o ainda mais reputado capitão James Cook estiveram entre os primeiros europeus a deparar-se com eles e a relatá-los com espanto.
Descreveram então, a sua realidade social, em parte, semelhante à actual: “São rapazes diferentes que recebem, desde a infância, uma educação distinta da dos jovens guerreiros … Para eles, não há guerra nem caça.
Depilam-se e trasvestem-se. Quando chegam a adultos, comem à parte dos homens, cantam e dançam com as mulheres e tornam-se, com frequência, empregados domésticos da nobreza…”
Durante o seu retiro taitiano, Paul Gauguin encantou-se com a sua suave excentricidade e pintou-os com redobrado prazer.
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Letreiro de uma loja de produtos dedicados à passagem de Paul Gauguin pela Polinésia Francesa e às suas obras que também retrataram mahus
Ainda no campo histórico, convivem duas explicações para a existência e a aceitação dos mahu.
Uma diz que os pais os começavam a considerar e a tratar como raparigas assim que percebiam algum indício inesperado de feminilidade.
A outra teoria defende que, quando as famílias tinham demasiados rapazes, passavam a tratar um dos mais novos como rapariga. Garantiam, assim, a ajuda necessária na lida da casa. O terceiro nascido era, por hábito, o alvo da experiência.
Nos tempos que correm, a primeira prática é ainda corrente.
Sem surpresa, os mahu preferem ser abordados no feminino, algo que a nação taitiana há muito se habituou a respeitar e até a admirar.
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Mahu entre mulheres, aguardam os resultados do concurso de misses
A Função Crucial dos Mahu na Realidade Polinésia
Como em tantos outros casos, a existência de Danu Heuea passou pela reprovação implícita do pai.
Hoje, apesar do sofrimento da juventude, esta cinquentona bem conservada, de pele dourada pelo sol tropical, desdenha e combate a discriminação. Danu desempenha um papel protagonista no concurso de misses e introduz e descreve as concorrentes.
Em tempos, apresentou um programa de TV chamado “Nós, as Mulheres”. Nos dias normais, é a responsável pela comunicação da câmara municipal de Papeete.
Tantos outros ocupam lugares essenciais em empresas ou organizações. São empregados de mesa, cozinheiros ou recepcionistas. Ou conquistaram cargos de responsabilidade nas relações públicas de hotéis e agências de turismo.
São também músicos e coreógrafos, alguns conceituados como Coco HotaHota e Tonio que lideram grupos de danças polinésias idolatrados nas ilhas.
À imagem de Danu, a maior parte dos mahu têm plena consciência de serem “efeminados” em físicos de homem.
Orgulham-se do seu papel intermediário entre a brutidão masculina e a doçura perfumada das mulheres, que em tudo procuram imitar.
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Apresentador do evento trajado a rigor com cocar e vestido tradicionais polinésios
O Desdém dos Mahu Pelo Substantivo Paralelo Rae Rae
Os mais velhos não gostam particularmente de ser confundidos com os Rae-Rae, os travestis sexualmente “predadores” que recorrem à prostituição no red district de Papeete para financiar as suas existências marginais.
Para seu desgosto, desde 1960 – quando a nova palavra surgiu – os dois termos intersectaram-se. Por toda a Polinésia Francesa, o termo rae-rae popularizou-se. Agora, define os travestis em geral, sejam ou não operados.
Os “retoques” médicos e a cirurgia provaram-se passos reais para um sonho que quase todos os mahu partilham: o de se transformarem em verdadeiras mulheres. É comum optarem por tratamentos hormonais que lhes concedem os tão desejados seios, por mais pequenos que sejam.
A derradeira operação, essa, é quase sempre demasiado dispendiosa. Não se faz no Taiti, o que torna obrigatória uma ruinosa viagem aos Estados Unidos.
Além da mudança física de sexo, a sua ansiedade recai também sobre um relacionamento. O comum mahu dá por si a aspirar com a vida com um homem.
Isto, mesmo que, na Polinésia Francesa, os missionários do Velho Mundo tenham escrito e selado a ordem natural das coisas. O casamento entre mahu e homens é considerado um tabu (a palavra é originalmente Polinésia) católico contra o qual é raro os mahu insurgirem-se.
O Fim do Concurso de Misses e o Romantismo do Elvis Rockos
No mercado Mapuru a Paraita, o concurso de misses prossegue, animado a ritmos de tambor e jambé tocados por machos polinésios musculados e tatuados que fazem suspirar tanto as donzelas como os mahu.
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Tocador de jambé exibe o tronco repleto de tatuagens tradicionais polinésias
São fontes inesgotáveis de testosterona, esculturas bronzeadas perfeitas moldadas pela alimentação proteica, pelas muitas horas de treino sobre canoas e outros exercícios tonificantes. Tudo aquilo que a natureza se esqueceu de conceder aos mahu, ou preferiu não fazê-lo.
No fim do evento, o mercado acalma. Parte das organizadoras refugiam-se num bar do piso superior onde um cantor encantador de nome Rockos canta sucessos de Elvis, faz algum tempo.
Sentadas junto ao palco, vários mahu partilham um petisco leve de peixe cru com leite de coco enquanto seguem as melodias.
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Mahu e amigas acompanhantes assistem a um espectáculo musical protagonizado por um cantor que entoa os clássicos de Elvis Presley.
Sucedem-se “Love Me Tender”, “Suspicious Minds” e “Heartbreak Hotel” que suscitam admiração e mais suspiros.
Quando o romantismo dá lugar ao Rock ‘n’ Roll frenético de “All Shook Up” as três amigas todas vestidas de azul e branco (dois dos seus trajes iguais), refugiam-se na varanda contígua.
Ali ficam a contemplar os derradeiros movimentos do mercado de Papeete. Passados minutos, duas delas voltam para o show.
A terceira, mahu, prefere o isolamento e a reflexão, como que a reexaminar se a sua vida de mulher em corpo de quase mulher lhe continua a fazer sentido.