Por aquela altura, por mais peso que carregássemos, que não era pouco, um trecho de 1.6 km, como o que separava Braga (Bhakra) de Manang, provava-se um mero aquecimento.
Deixamos Braga integrados no mini-pelotão internacional em que seguíamos.
Vinte minutos de galhofa depois, estávamos a dar entrada em Manang. Cedo como era, chegávamos com tempo para escolhermos o alojamento com minúcia. Uma vez que a oferta abundava, separamo-nos.
Investigamos preços e condições de um ou dois hotéis. Logo, voltamos a encontrar-nos e comparamos o que tínhamos.
Voltamos a conseguir um hotel solarengo que só nos cobrava a alimentação desde que lá fizéssemos pelo menos o pequeno-almoço e jantar. No que dizia respeito aos banhos, nada melhorou face aos dias anteriores. O recrutador nepalês voltou a prometer-nos duches quente de manhã e ao fim do dia.
De facto, o nosso, à imagem de outros quartos, tinha duche. Mas, como acontecia há vários dias, faltava também àquele hotel uma solução para o congelamento nocturno da água canalizada da montanha. Assim sendo, à hora a que nos levantávamos e por umas boas duas horas não corria nada das torneiras, quanto mais água quente.
Juntamo-nos ao grupo na sala de chá e refeições aconchegante do hotel. Devoramos milkteas, aveias fumegantes e pães tibetanos ainda crocantes. Falamos de tudo um pouco e adiamos os planos do que quer que fosse.
Partilhávamos a noção de que Manang marcava uma primeira fronteira. Dali, até Thorong La, o zénite montanhoso do Circuito do Annapurna, não voltaríamos a ver uma povoação digna do estatuto de cidade. Nem de vila.
Ou sequer de aldeia. Apenas lugarejos que asseguravam aos forasteiros o essencial à sobrevivência.
Os Primeiros Passos Pela Alameda Comercial de Manang
De acordo, o passeio inocente ao longo da alameda terrosa de Manang, depressa se transformou numa sequência de pesquisas e testes do que não tínhamos comprado em Pokhara.
Os moradores de Manang conheciam bem a ansiedade com que os caminhantes chegavam à sua terra. E o efeito tranquilizante que as suas lojinhas repletas de luvas, meias, corta-ventos, sacos-cama e outros equipamentos neles tinham.
Numa, compramos aquecedores químicos para as mãos e pés. Noutra, meias ainda mais quentes que as que tínhamos. E um termo de qualidade que hà muito nos fazia falta. Noutra ainda, pares de grampos de metal para colocar nas botas. Esta compra, em particular, vir-se-ia a revelar providencial.
Desafiados por Josua, o alemão bem-disposto que nos acompanhou parte significativa do circuito, compramos ainda um naco generoso do popular queijo de iaque da região.
Passamos em frente ao salão de projecções de Manang. Anuncia três filmes para igual número de dias, todos eles alinhados em termos conceptuais com o que ali entretinha os estrangeiros: “O Lado de Selvagem” de Sean Penn. “Sete Anos no Tibete” de Jean-Jacques Annaud, com Brad Pitt. E, por fim, “Evereste” de Baltasar Kormákur.
Damos com a sede da Himalayan Rescue Association Nepal e, nas imediações, com a Safe Drinking Water Station da cidade. Aproveitamos e renovamos a que guardávamos. Na sequência, cirandamos Manang acima e abaixo, atentos às suas curiosidades, sem pressas ou compromissos.
Ainda estávamos no primeiro dia daquela inusitada aclimatização citadina, mesmo tendo em conta que, de cidade convencional, Manang pouco tem.
O Regresso Antecipado ao Aconchego do Hotel
A meteorologia não tardou a ditar a sua ordem. Nuvens pesadas tomam o céu. Do nada, um vento húmido e gélido varre o vale de Marsyangdi e borrifam-no de uma chuva quase sólida. Um pastor recém-aparecido dos fundos da povoação conduz um rebanho de cabras felpudas rua acima, na direcção dos currais do seu refúgio.
Era o sinal por que esperávamos. Apontamos ao sentido oposto do gado. Recolhemos ao hotel.
Sem que o esperássemos, o retorno antecipado presenteou-nos com mesa e cadeiras mesmo ao lado da disputada salamandra da sala de refeições. Ao fim do dia, nevou um pouco, o suficiente para tingir a noite de Annapurna de branco.
Ainda estávamos algo moídos das caminhadas de aclimatização dolorosas a partir de Bhakra. Assim, por volta das oito e meia, a pressão mal-disfarçada dos donos do hotel para que os hóspedes recolhessem aos quartos, satisfaz-nos os subconscientes como uma canção de embalar.
O Percurso de Aclimatização Inaugural de Manang
A nova aurora revela uma atmosfera ainda nevoenta e fria. Conscientes da urgência de forçarmos os corpos para a travessia árdua que se avizinhava, aceitamos o desafio de Josua de cumprirmos uma das caminhadas de aclimatização recomendadas.
Voltamos a atravessar toda a Manang. Chegados ao seu limiar noroeste, descemos na direcção do rio Marsyangdi.
Atravessamo-lo por uma longa ponte suspensa. Do lado de lá, vêmo-nos bem acima do caudal esverdeado do lago Gangapurna. Em vez de buscarmos as suas margens, continuamos a ascender. Primeiro por um trilho que conquistava grandes paredões de cascalho, sobras da erosão dos sucessivos degelos e dilúvios.
Umas centenas de metros para diante, o trilho mete-se num pinhal de encosta. Era suposto ziguezaguear por essa encosta acima mas, parece-nos tão desusado como mal mantido. E engana-nos bem enganados.
Um Mau Caminho, Escorregadio e Demasiado Íngreme
Quando damos por nós, estamos a escalar uma vertente escorregadia. De início, revela-se inofensiva. Entretanto, ganha uma inclinação surpreendente e uma vista sobre o abismo bem mais assustadora do que pensávamos ser possível.
Não vínhamos a contar com aquela pseudo-escalada de quatro-patas e as máquinas fotográficas dependuradas do pescoço só atrapalhavam. Aos poucos, com paciência, algum sangue-frio e as intervenções preciosas de Josua que tinha vivido no Equador e chamava àquilo um passeio, atingimos o topo em segurança.
Descomprimimos do apuro. Momentos depois, damos com a continuação do trilho que tínhamos perdido na base da encosta. Rogamos pragas as autoridades de Manang e ao abandono a que o tinham votado.
Prosseguimos pela grande montanha de Gangapurna (7455m), em partes forrada de pinhal, noutras, de um feno e tojo queimados pelo frio.
O Destino Final da Caminhada: o Glaciar Gangapurna
A ascensão revela-nos uma orla elevada. Do seu cimo repleto de vegetação, desvendamos uma parede-glaciar da montanha, uma espécie de queda de gelo que se prolongava pelo desfiladeiro sinuoso abaixo, num caudal sólido mas móvel, de blocos verticais afiados e das fendas que os separavam. Súbita, a visão deixa-nos num óbvio êxtase visual.
A apreciação do cenário não parece chegar Josua que nos desafia a descermos para a beira do glaciar. Só que o vento aumentava. Convocava nuvens que nos deixaram a suspeitar de tempestade. Chamamos Josua à razão e concordarmos na emergência de inaugurarmos a descida.
Então, já pelo trilho correcto, o regresso flui sem incidentes. Concede-nos panoramas amplos do casario de Manang, estendido numa secção alisada da falda oposto, elevada sobre o Marsyandi.
A Consulta Médica de Toca-e-Foge, em Manang
Ao reentrarmos na cidade, percebemos que nos havíamos adiantado à tempestade. Lembramo-nos ainda que éramos os únicos do grupo que não tínhamos ido à consulta médica aconselhada a quem se propunha a continuar o Circuito Annapurna para o lado de lá de Thorong La.
A uns meros metros da Himalayan Rescue Association, decidimos que estava na hora de a resolvermos.
Entramos. Queixamo-nos às senhoras nepalesas na recepção da falta de sinalização no trilho de que voltávamos. Esclarecemos que essa falta nos havia conduzido a um falso caminho que poderia vitimar caminhantes menos preparados.
As senhoras recebem o queixume com sorrisos sarcásticos que nos soam a inércia. Mal veem sair o paciente que nos antecedia, despacham-nos para o isolamento anti-protesto e gélido do consultório.
Um jovem médico enfiado num blusão de penas massivo, dá-nos as boas-vindas e convida-nos a sentar. À sua frente, tem um oxímetro de dedo, um medidor de tensão e um grande caderno Sayapatri Deluxe, que lhe serve de livro de registos.
Começa por nos anotar os dados essenciais: nacionalidade, idade, peso. Pergunta se tínhamos tido sintomas de mal de altitude nos dias que precederam Manang. Respondemos os três que não. Que nem sequer durante as ascensões de aclimatização ao Ice Lake (4600m), à gruta de Milarepa (4150m) ou aquela de que regressávamos, também ela acima dos 4100 metros.
Ao inteirar-se deste historial, o médico parece-nos convencido a abreviar a consulta. Coloca-nos o oxímetro nos dedos. Ao verificar 99% de O2 e um batimento cardíaco normal, corre connosco o mais depressa que consegue.
Josua volta ao hotel. Nós, ficamos a filtrar e a fotografar o fim de dia mágico de Manang, a deambularmos pelas suas ruelas de pedra e madeira. O mesmo rebanho de cabras do dia anterior, volta a cruzar a alameda principal.
De Novo à Descoberta de Manang, à Luz do Derradeiro Sol do Dia
Com o sol a dar nas vertentes a norte, grupos de moradores partilham o calor a conversarem bem juntinhos num banco à porta de um restaurante.
Uma fila de mulheres fiéis, dá voltas à parede de orações na base da estupa budista branca e dourada que abençoa a cidade. Deixamos aquele âmago solarengo da povoação determinados a encontrar outros recantos iluminados.
Nessa romaria, passamos por uma nova estupa, dotada de estandartes budistas coloridos com que o vendaval marginal da povoação parecia chicotear as distantes Annapurnas.
Prosseguimos sem rumo. Mesmo se os caminhantes estrangeiros a invadem dia após dia e se misturam com os seus 6500 habitantes, Manang preserva uma vida rural original, à margem dos guias, dos carregadores, dos hotéis, lojas e restaurantes.
Numa ruela sombria, frígida a condizer, damos com uma fila de cabras à espera da sua vez de entrarem para os currais.
Uma mulher faz dois cavalos passarem por debaixo do portal norte da cidade. Seguem-na três raparigas cada qual a carregar uma bilha de gás às costas, dentro de cestos tradicionais de verga.
Por ali mesmo, uma outra camponesa de mãos sujas empurra um iaque teimoso para um qualquer destino que não chegámos a apurar.
Retornamos ao centro mais aberto, frequentado e iluminado de Manang. Ali, entre galinhas oportunistas, à entrada do depósito de querosene da cidade, um jovem pai diverte-se a jogar à bola com o filho anda tropeção.
O velho sol não tardou a cair para trás das Annapurnas. Tirou à cidade e tirou-nos a nós o cobertor que nos emprestara. Só o devolveu no fim da manhã seguinte.