Por estes lados, o Verão dura todo o ano mas os festivais raramente são de música.
O fim de semana vislumbra-se. A noite afirma-se e o Morion Park & Arena de Boac acolhe uma multidão ávida de diversão.
As tendas de comes, bebes e artesanato começam por reter e entreter os convivas. Têm o alto patrocínio da corporação e cerveja São Miguel, criada, em 1890, num bairro homónimo de Manila. Não no país hermano, como também pensávamos.
Entretanto, os animadores desculpam-se em tagalog (o dialecto filipino). Segundo nos explicam, por interromperem um êxito pop nacional que fazia vibrar os velhos altifalantes e o povo. Mesmo difuso, o som recomeça a chegar de um palco semi-iluminado sobre a vedação.
A mudança provoca uma pequena migração em massa que as autoridades se veem obrigadas a controlar. A esforço, os agentes distribuem as pessoas pelas bancadas limítrofes enquanto lhes impedem a passagem para um campo cimentado e para a base das colunas romanas de gesso que o decoram.
Gerry Jamilla, o nosso cicerone, termina à pressa o seu halo halo, uma popular sobremesa filipina feita de gelado, gelatina, leite condensado, feijão e pedaços de fruta.
Ajuda-nos a conseguir uma boa posição no meio do povo e avisa-nos que não nos podemos levantar demasiado para não gerarmos sombras indesejadas.
Depois, some-se na confusão.
Uma Representação Pascal Bíblica Mas Muito Popular
Uma voz off convoca os actores participantes para o palco. Assim que a chamada termina, a assistência em peso ignora a presença das autoridades e invade a área cimentada central, barra a iluminação dos holofotes e disputa os lugares de honra não oficiais, nem sequer permitidos.
Com esse abuso, frustram centenas de outros espectadores que há horas guardavam os seus assentos.
Estamos numas Filipinas provincianas. A nação mais latina da Ásia é um paraíso oriental da corrupção institucional e do laxismo. Não nos passou pela cabeça que os organizadores tentassem recuperar a situação.
A confirmá-lo, dois ou três agentes desesperados acabam por ajudar os infractores a acomodarem-se, enquanto os prejudicados dedicam aos rivais uma vaia monumental.
As coisas acalmam. Um grupo de bailarinos de visual cândido dá início ao seu número: uma dança etérea que representa a criação do mundo até ao paraíso de Adão e Eva. Prossegue com representações teatrais dos momentos altos da Bíblia.
O público é crente como poucos mas não deixa que a fé interfira com a boa disposição. De cada vez que um aspecto ou interveniente revela vulnerabilidade satírica, há um adolescente que manda uma boca no escuro e desencadeia risadas contagiantes, censuradas pelos mais velhos.
O rei Herodes, Pôncio Pilatos são vítimas de apupos intensos e até bolas de papel lhes chovem em cima. Para bem dos seus actores, a peça fica-se pela condenação de Cristo.
Lugar à Reencenação Histórica da Via Crucis
Na tarde de sexta-feira, como mandam as regras, é reencenada a Via Crucis. Animam-na centenas de Moriones (mascarados de soldados de romanos), dois ladrões e um Jesus voluntário que os centuriões apoquentam e chicoteiam até à Cruz com um realismo impressionante.
Para lá do drama, encanta-nos constatar que Maria Madalena e restantes santas mulheres são desempenhados por ladyboys, rapazes efeminados que abundam na ilha de Marinduque como por todas as Filipinas.
Apreciamos ainda a descontração com que é encerrado o acontecimento chave do Cristianismo. Os espectadores inquietos da Crucificação tomam o Monte das Oliveiras local.
Ali, fazem-se fotografar martirizados pelos centuriões, ou sob a ameaça das lâminas a fingir das suas espadas.
Algumas horas, quilómetros depois, encontrámos ferimentos a sério e uma atmosfera em tudo distinta. “Agora preparem a mente”, diz-nos Gerry. “Vocês lá na Europa não têm nada parecido com isto. Tentem levar tudo como mais uma das vossas experiências étnicas.”
De Boac a Gazan: a Auto-Flagelação Impressionante dos Antipos
Ao chegarmos à paróquia de Gasan, começamos a ver homens de tronco nu e corpos manchados de vermelho que brilham sob o sol escaldante do meio da tarde.
Logo, subimos a uma escadaria e damos com o cemitério da cidade ocupado por antipos – assim chamam os filipinos aos seus dedicados auto-flageladores. Vêmo-los divididos por distintos clãs, à sombra de jazigos, acomodados entre campas ou sobre elas, com vista para coqueirais frondosos.
Açoitam-se com um pequeno chicote que agrupa ripas de bambu diminutas e produz um teq teq característico. Não é este o único instrumento que os tinge de vermelho.
De início, o sangue é libertado com recurso a lâminas partilhadas. Assim que o fluxo parece estancado, os antipos pedem a colegas que lhes voltem a golpear os corpos quase sempre magros.
Reparamos ainda que, malgrado ser levada a cabo por expiação e solidariedade religiosa para com o sofrimento de Cristo, a flagelação tem lugar em modo de convívio. Serve de pretexto para longas conversas.
Nem todos os antipos aguentam a violência infligida.
O sol continua a subir no horizonte e o calor tropical aperta. Instala-se um cheiro orgânico que provoca náuseas em alguns dos fiéis. Um deles perde mais sangue do que era suposto. E os sentidos. Acaba assistido por outros antipos que o deitam no solo ervado e ventilam.
Horas depois, o número de baixas tinha aumentado mais que o esperado. Certos grupos interrompem a sua auto-punição.
Regressam ao centro de Gasan onde a Sexta Feira Santa se aproxima do fim.
Cortejo das Papoas, Andores e, os quase Esquecidos Antipos
Aos poucos, a noite instala-se. Um cortejo de andores iluminados percorre avenida já repleta de crentes, intercalado por uma sub-procissão de papoas, mulheres de luto pela perda de filhos, que caminham debaixo de tufos vegetais.
Como calculávamos, os antipos não se tinham sumido de vez.
Quando a parada católica parecia ter já terminado, o fundo da rua revela um séquito cabisbaixo e sofrido que a população solidária observa e, aqui e ali, a fotografa.
Com sua derradeira passagem, a Sexta-Feira Santa dá lugar à Páscoa. Nos dias que se seguem, esta improvável nação católica celebrará a magia da Ressurreição.
O sangue filipino que homenageia Cristo só voltará a ser derramado no ano seguinte.