A primeira impressão que fazemos da Casa Menezes Bragança é a de que o termo casa estava longe de lhe fazer justiça.
Da beira de um jardim relvado e verdejante, vemo-nos perante a fachada de um solar tropical portentoso, com dois pisos cobertos de um beiral e de um telhado, ambos feitos de telha portuguesa gasta pelo tempo.
Se, como esperado de um domicílio de campo, a altura é comedida, o seu comprimento espanta-nos. Só no primeiro andar, contamos doze janelas altas recortadas, cada qual com o seu varandim de um ocre condizente com as telhas.
No piso térreo, outras tantas, mais pequenas, encerradas por portadas de jeito mais hindu que luso.
Devemos ainda dizer que conseguíamos admirar apenas um segmento estendido entre um trio de coqueiros e um pinheiro asiático, todos mais altos que o cimo do telhado. Caminhamos um pouco mais.
Percebemos que o pinheiro escondia a entrada de serviço, situada a meio da fachada simétrica do edifício, o que equivale a dizer que, da entrada em diante, as janelas e tudo o resto se repetiam.
O olhar e o tom da interlocutora deixam-nos apreensivos. O remate, em particular, desarma-nos. Por pouco tempo.
Não queríamos aceitar que tínhamos percorrido aqueles 20km (sem contar com a distância para Portugal) em vão. Assim sendo, ripostamos com todos os argumentos e mais alguns, da nacionalidade ao propósito profissional.
Quando a senhora mantém o seu bloqueio, puxamos um trunfo mais alto da manga: se o problema estava em que não tinha instruções para abrir excepção, então que nos deixasse falar com a proprietária.
Dois minutos depois, algo contrariada, Dª Judite passa-nos um papel com um número de telefone. Não havia rede de telemóvel em parte nenhuma da casa, pelo que lhe dissemos que ligaríamos do exterior e regressaríamos a comunicar o resultado da chamada.
Instalamo-nos num prolongamento da mansão, entre o fim do jardim e a Igreja de Chandor. Durante uma boa meia-hora, ou não conseguimos ligar por falta de rede ou ninguém responde. Numa derradeira e desesperada tentativa, por fim, a chamada é atendida por Aida Menezes Bragança. Falava-nos de Bangalore.
Repetimos-lhe os argumentos já explanados a Dª Judite. Acrescentamos mais alguns. A interlocutora sensibilizou-se com a importância que dávamos à nossa visita e trabalho e anuiu. “Esperem só dez minutos para eu ligar lá para casa e falar com a Dª Judite. Depois, subam e façam as fotos que precisarem.”
Regressamos. Guiados por uma empregada da casa, investigamos as sucessivas salas e salões, um deles de baile, em qualquer caso, com recheios seculares intactos: lustres de cristal belgas e venezianos a pender do tecto.
Grandes mesas, cadeiras e cadeirões, toucadores de jacarandá e teca, estantes de uma das maiores bibliotecas privadas de Goa com cerca de 5000 livros em várias línguas. Canapés, palanquins e assentos-do-amor.
Escrivaninhas, bibelôs, porcelana de Macau, um serviço de jantar da Companhia das Índias Orientais e até um velho coco-do-mar trazido das Seicheles subsistiam, dispostos em jeito de museu domiciliar, sobre soalhos feitos de grandes tábuas ou pisos de azulejos com padrões bem distintos, a formarem sub-espaços independentes.
Dezenas de fotos de família e alguns quadros espelhavam a árvore genealógica dos moradores e parte da história prolífica da família e da Casa Menezes Bragança.
Antes da chegada de Vasco da Gama a Goa, como quase todos os goenses, os ancestrais dos Bragança eram hindus, dos mais poderosos na região. Integravam a casta superior brâmane e faziam parte do pachayat (concelho) de Chandrapur, a capital de Goa nos séculos XI a XIII. Nessa altura, usavam o sobrenome Desai.
Concretizado o domínio português, a partir de 1542, a missão jesuíta de São Francisco de Xavier, mais tarde também a Inquisição, determinaram a destruição dos templos hindus. Os Desai viram-se forçados a aderir ao cristianismo, a integrar a sociedade portuguesa e a emular os seus modos aristocratas.
Devido à supremacia económica, intelectual e social que já possuíam, durante os 300 anos que se seguiram, alguns Desai ocuparam lugares cimeiros na administração lusa.
Agradados com o contributo desta família e em justiça para com a posição dominante que ocupavam, os portugueses concederam-lhes o nome da última Casa Real, então escrita como Braganza. A Casa Menezes Bragança de Chandor foi erguida a partir do século XVI e aumentada e melhorada em três fases sucessivas, ao longo de trezentos anos.
No século XIX, os Bragança atingiram o ápice. Francisco Xavier Bragança, advogado, aristocrata goês, dono de plantações de arroz e de coqueiros instaladas em terras aforadas pela Coroa portuguesa, recebeu de Fernando II e Maria II, reis de Portugal os títulos de cavaleiro e, do Concelho Nobiliárquico de Lisboa, o escudo-real.
António Elzário Sant’ Anna Pereira, primo de Francisco Xavier, foi agraciado com título idêntico. A partir do século XVI, a transformação arquitectónica da mansão e a sua decoração deveu-se sobretudo à pompa e fausto em que se moviam estas duas personalidades.
Chegada à última década do século XX, Francisco Xavier Bragança falece. Sem filhos, nomeou o primeiro neto Luís Menezes de Bragança como herdeiro. Luís Menezes de Bragança revelou-se também ele letrado e influente e, quanto mais instruído, mais activo na contestação ao domínio colonial português.
Associado a outras figuras intelectuais, fundou o primeiro jornal em língua portuguesa de Goa, “O Heraldo”. Pouco depois, criou o seu próprio periódico: “O Debate” e um bissemanal denominado “Pracasha”. Nos três títulos mas não só, tornou públicas as críticas que reservava ao regime colonial português. Daí em diante, nada seria igual.
A família Bragança fragmentou-se. A casa deu origem a duas, cada qual pertencente a duas irmãs herdeiras dos Bragança, a ocuparem alas opostas do palacete.
Deixamos o lado dos Menezes Bragança sem sequer voltarmos a ver Dª Judite, demasiado atrapalhada com os seus afazeres judiciais. Despedimo-nos e voltamos ao átrio em que a mansão se dividia. Tocamos à campainha da porta do lado.
Dá-nos as boas-vindas uma criada da casa Bragança-Pereira que se apressou a chamar um dos filhos da dona. Armando, o nosso cicerone, já pouco português falava: “Eu não falo, mas a minha mãe fala. Ela fica sempre contente por ter visitantes portugueses. Vou buscá-la.”
Decorridos uns minutos, Dª Áurea Bragança Pereira, surgiu dos confins de um salão. Áurea era a única sobrevivente da 14ª geração dos Braganças. Desde 1948 que vivia na ala da mansão que herdara com quinze descendentes e consortes.
Conversa puxa conversa, concordamos em tirar uma fotografia da família presente. Entretanto, a anciã confessa-se mais fatigada que o habitual. Armando retoma o périplo.
Conduz-nos à capela e a um segredo algo surreal da casa. À margem dos incontáveis objectos em redor, a capela preservava o que se diz ser uma unha de São Francisco de Xavier, queratina removida do restante corpo que jaz na Basílica do Bom Jesus, em Goa Velha.
Quatrocentos e trinta e três anos após a fundação da colónia portuguesa de Goa, Salazar chegou a primeiro-ministro da recém imposta república portuguesa, com promessas constitucionais de liberdade civil e de expressão.
De acordo, Menezes Bragança, já membro do parlamento português, propôs uma moção ao Conselho que visava a auto-determinação de Goa. Salazar refutou-a sem apelo. Encerrou o jornal de Menezes de Bragança e ordenou que as suas actividades fossem monitoradas.
A postura intransigente de Salazar gerou em Menezes uma profunda depressão que levou à sua morte em 1938. Tristão de Bragança Cunha (1891-1958), cunhado de Menezes Bragança seguiu-lhe os passos até se tornar o Pai do Nacionalismo Goês.
Fundou o Comité do Congresso Nacional de Goa e publicou um panfleto intitulado Denacionalização de Goa que criticava o Estado Novo por, entre outros pecados, querer exterminar o uso do dialecto konkani. Ambas as publicações se provaram sérios denunciantes da opressão portuguesa.
Nesses tempos, Tristão de Bragança Cunha, Bertha de Menezes Bragança e outros membros do Comité tinham reuniões na Casa Menezes Bragança em que proferiam com frequência o grito Jai Hind que louvava a Victória da Índia. Tais reuniões suscitaram a comparência cada vez mais frequente e castradora da polícia portuguesa.
Ainda assim, os esforços dos Bragança e seguidores sensibilizaram vários políticos indianos influentes e independentistas para a Questão Goesa, entre eles Nehru, futuro ministro da Índia.
A Índia declarou a sua independência da Grã-Bretanha em 1947. Por diversas razões e controvérsias de que o venerado Nehru ainda é acusado, Goa permaneceu posse de Portugal até 1961, quando o exército indiano a liberou.
Apenas um ano antes do encerrar do Raj Britânico, Tristão de Bragança Cunha foi detido e sentenciado a oito anos de encarceramento no Forte de Peniche. Toda a sua família se viu perseguida pelas autoridades portuguesas o que levou à sua fuga para Bangalore, a capital agora tecnológica do estado de Karnataka.
Tristão da Cunha regressou à India em 1953 mas faleceu em exílio em Bombaim, em 1958, a apenas três anos da emancipação de Goa. Quando Aida regressou à Casa Bragança, em 1961, só algumas criadas a habitavam.
Boa parte do recheio mais valioso tinha desaparecido e as chuvas das monções danificado o telhado e parte das salas. As reformas políticas indianas de 1962, retiraram aos Bragança as terras granjeadas pela Coroa Portuguesa que até então tinham assegurado o sustento da mansão.
Com pouco ou nenhum apoio dos governos indiano ou goês para a custosa reconstrução e manutenção – só do lado dos Menezes Bragança trabalham seis homens e mulheres de 2ª a Sábado – mas conscientes do valor histórico da casa, ambas as famílias abriram portas ao público.
Segundo Dª Áurea, o lado Bragança-Pereira já há mais de 50 anos, a aceitar apenas doações voluntárias. A ala Menezes Bragança, durante os anos 80, a cobrar entradas fixas.
Enquanto depender apenas da Dª Áurea, a sua parte da Casa Menezes Bragança, demasiado repleta de emoções e recordações, nunca será vendida.