Província de Mérida: é aqui que os Andes têm o seu último estertor na extremidade norte da América do Sul.
Pouco depois, fundem-se com a Cordillera de la Costa, a cadeia transversal de montanhas que esconde o Mar das Caraíbas.
A região interior, situada junto à fronteira com a Colômbia, é a Meca nacional dos andinistas e adeptos das caminhadas de altitude em geral.
Tínhamos já percorrido muitos quilómetros nas calles arrumadas da sua capital homónima quando constatamos que, graças a um dos muitos portugueses empreendedores que se instalaram na Venezuela, também inspirava os gulosos deste mundo.
Manuel da Silva. Um Emigrante que deu Mais Sabor à Venezuela
Manuel da Silva Oliveira chegou do Porto ainda jovem. Chegou com experiência de barman e cozinheiro e abriu um restaurante em Mérida.
O negócio corria de vento em popa quando, um dia, um vendedor lhe perguntou se não queria ficar com uma máquina de gelados. “Don Manolo” – como é desde há muito tratado – percebia de comida e de bebida. De sorvetes nem por isso. Ainda assim, quando o caixeiro viajante lhe explicou como era simples a preparação, acabou por comprar a máquina.
Numa primeira fase, limitou-se a seguir as instruções. Misturava o leite com as essências químicas de chocolate, de morango e do mantecado.
Os gelados ficavam prontos num ápice. Começaram a satisfazer a população da cidade.
Mas as essências nem sempre estavam disponíveis e a máquina não misturava, em condições, matérias-primas naturais.
Depois de alguma discussão com o vendedor, Manuel da Silva Oliveira conseguiu que lhe trocassem a máquina por outra e ainda a oferta de uma batedeira especial, muito mais indicada para misturar com o leite os ingredientes necessários. Essa mudança e a sua perseverança ditaram um futuro que nunca se atreveria a prever.
A Montra de Sabores Recordista da Gelataria Coromoto
Os anos passaram. Don Manolo fartou-se de trabalhar para as empresas proprietárias das máquinas que lhe ficavam com uma boa parte do lucro. Abriu a sua própria geladaria. Aos três ou quatro compostos a que a Venezuela estava habituada, juntou várias outras frutas, frescas e secas.
Seguiram-se os vegetais e os licores, todos com a facilidade decorrente de Mérida ser o pomar e a horta da Venezuela. Depois, vieram os mariscos, os peixes e sabe-se lá mais o quê.
Inaugurada em 1981, a geladaria Coromoto depressa reuniu um portefólio impressionante. Com o tempo, ultrapassou as 800 criações de gelados. Foi reconhecida pelo Guiness Book como a geladaria com mais sabores do mundo. Esse estatuto surgia bem assinalado a luzes garridas de néon sobre a entrada do estabelecimento. E atraiu viajantes de todo o mundo.
Mas a fama do negócio não travou o envelhecimento do seu mentor. Manuel Oliveira da Silva perdeu a juventude de outros tempos e, com ela, a paciência para a rotina.
Passou a gestão do negócio a José Ramirez. O sotaque português do castelhano venezuelano desapareceu detrás do balcão e das montras refrigeradas. O seu bigode manteve-se e os sabores nunca pararam de aumentar. À data deste texto, a gelataria Coromoto vendia mais de mil.
José Ramirez dispensa dar-nos a provar os sabores convencionais: “Vejam lá quais vos apetece experimentar e digam-me. Já vejo se estão preparados para todos!”
Sabores de Gelados Literalmente para Todos os Gostos
Passamos os olhos pela lista infindável que decora as paredes. Deixamo-nos espantar. Cebola, esparguete e queijo, alho e milho seriam em qualquer lado do mundo consideradas sobremesas suspeitas. Na Coromoto, o estranho vai mais além. “Sardiñas en Brandy” e “Esperanza de Viagra” fazem-nos rir sem cerimónias e sabem muito melhor do que o esperado.
De uma forma suavemente doce, o “Pabellon Criollo” consegue ser fiel a um dos pratos emblemáticos da Venezuela. Logo ao lado, alguém se engasga e pede um copo de água urgente. Tinha acabado de testar “Chilli”.
Colherada a colherada, tentamos decifrar os mistérios semânticos por detrás de “British Airways”, “Besos Andinos”, “Perdona, Querida”, “Diário Frontera” e “Samba Pa Mi”, desafiamos também a extravagância de “La Viño Tinto”, “Estornillador” e “Arroz con Pulpo”.
A geladaria Coromoto vende bolas de mais de 80 sabores por dia. Apesar da muita curiosidade, não chegamos sequer a provar metade. Esperava-nos uma aldeia das redondezas igualmente refrescante.
Ascensão às Alturas Andinas de Mérida
Na manhã seguinte, apanhamos o teleférico emblemático da cidade em direcção ao Pico Bolivar (4980m), um trajecto para o tecto da Venezuela que nos dizem ser também ele recordista mundial tanto no que diz respeito à extensão (12,5 km) como à altitude a que chega (4765m).
Ao nível de Mérida, fazia-se sentir um calorzinho agradável. Com meros dez minutos de ascensão no teleférico da cidade, ultrapassamos os 3.000 metros. À sombra, o frio torna-se incómodo.
Só a estação terminal de Pico Espejo (4765m), a umas poucas centenas de metros do Pico Bolivar (4978m) traz de volta o aconchego dos raios solares.
Lá em baixo, no vale amplo e verdejante da Sierra Nevada, destaca-se o casario de Mérida.
Para cima, estão os cumes pontiagudos dos Andes e, no sopé oposto, Los Nevados, um pequeno povoado pitoresco, isolado da civilização pela inexistência de verdadeiras vias de comunicação.
E a Descida Íngreme para o pueblito Branco de Los Nevados
É para lá que descemos a pé, depois de rejeitarmos fazer o trajecto de mula ou jipe, de maneira a pouparmos dinheiro e as costas e a podermos apreciar e fotografar os cenários.
Temos como companhia uma família francesa de “marinheiros” em terra. Um casal com dois filhos que, cansado da vida monótona e chuvosa de Nantes, trocou a segurança e a casa, por um veleiro fundeado em Papeete, Taiti. E que, de lá, passou a zarpar para o mundo sempre que o dinheiro ganho como dentistas o permitia.
O percurso de algumas horas, em grande parte a descer, prova-se pouco exigente e visualmente agradável. Enfeita-o a vegetação de altitude a que os locais chamam de Páramos.
A determinada altura, surge um novo vale, coberto por um tapete multicolor de campos cultivados. E logo em seguida, a aldeia que buscávamos.
Vislumbrámo-la tal e qual a tínhamos descoberto num ou dois livros fotográficos que homenageiam aquele interior esquivo da Venezuela, com a torre bicuda da sua igreja a sobressair das casas caiadas.
O nome deixava pouca margem para a imaginação. Los Nevados, assim foi baptizada devido aos nevões que, em tempos, a cobriam com uma segunda camada de branco.
A Los Nevados em Que já Não Neva
Em conversa com um cowboy local, confirmamos que há muito tal não acontece. “Amigos, já nem me lembro da última vez… os meus pais, sim, falam muitas vezes nisso, entre eles e com o pessoal mais velho de cá”.
Nada que espante. O aquecimento é supostamente global. Tendo em conta a altitude da aldeia, 1000 e tal metros e a sua posição quase equatorial no mundo, difícil seria que ali continuasse a nevar.
Hoje, perdida no tempo, Los Nevados revela-se um típico refúgio rural da província de Mérida, inclinado como poucos, com mercearias lúgubres e uma tasca intimidante em que a luz natural não entra.
Vaqueros de roupas gastas, crianças e velhotes corajosos sobem e descem as suas duas calçadas íngremes atarefados com afazeres que nos intrigam.
Durante toda a tarde, descobrimos a aldeia e os arredores serranos. Ao jantar, a tal família francesa maravilha-nos com estórias e mais estórias das suas navegações pelo mundo, incluindo fugas a piratas malaios e indonésios e a tempestades sem nação.
Essa noite, dormimo-la numa pousada campestre local. Mal o sol aparece sobre os cumes, voltamos a desafiar a privacidade rural de Los Nevados.
Com o princípio da tarde, decidimos todos regressar a Mérida no único transporte partilhado que nos podia salvar da dolorosa caminhada serra acima: um velho jipe sobrecarregado com enormes pedras mós.
Jornada Vertiginosa pela Serrania e o Regresso à Base Urbana de Mérida
Nunca, numa viagem, o desconforto da falta de espaço e dos solavancos nos haviam parecido tão secundário. O percurso faz-se ao longo de uma estrada de terra quase sempre escavada na encosta e que espreita os precipícios da Serra Nevada.
Só por si, o cenário já tinha pouco de tranquilizante. Como se não bastasse, o peso dos oito passageiros e das mós faziam o jipe adornar mais que o normal para o lado dramático.
Esse adornar, deixava-nos entre a apreensão e o pânico. Nem as piadas lançadas pelo condutor e um amigo, ambos necessitados de diversão. “Agarrem-se bem senão vai dar farinha!”, aliviaram a tensão.
Aos poucos, deixamos para trás o trecho conquistado à montanha. Completámos o resto do percurso bem mais rápido e sem sobressaltos.
Chegamos a Mérida duas horas antes do pôr-do-sol. A Coromoto ainda estava aberta.
Entramos. Pedimos alguns dos sabores que pareciam poder ajudar-nos a descomprimir do tormento recém-vencido.
Entre as escolhas contaram-se “Cerelac” e “Diário Frontera”.
Los Llanos, a região pantanosa e repleta de anacondas do interior da Venezuela foi a nossa próxima.
Também por lá encontramos portugueses perdidos.